Não seria uma frase minimamente esperada num auditório onde se sentavam cerca de 200 pessoas de várias sensibilidades da esquerda. Mas quando Ana Drago anunciou que tem “uma dívida de gratidão” para com Luís Montenegro, a sala espantou-se, e depois riu-se. Foi assim que uma das fundadoras da nova associação Causa Pública quis explicar, neste primeiro encontro das esquerdas, a motivação para tentar voltar a juntá-las.
Tudo começa com uma ideia, que diz ser o principal “triunfo” da direita de Montenegro: a ideia, resumida na controversa e famigerada frase do atual líder do PSD, nos idos de 2014 — “a vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor” — de que há uma “sensação de desmotivação” porque “vivemos acima das possibilidades, porque não se pode dar tudo a todos”.
Ou seja: a ideia de que existem algumas ideias de esquerda que são “desejáveis ou simpáticas”, mas que não são concretizáveis, diz Ana Drago. Daí que este ajuntamento das esquerdas se tenha criado, para contrariar o que acreditam ser um preconceito — e apresentar medidas concretas que provem que a esquerda tem caminho para fazer.
Este primeiro fórum, que este sábado decorreu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e juntou duas centenas de pessoas para ouvir e debater com nomes associados a vários partidos de esquerda, tentou começar esse caminho. Para já, a associação, presidida por Paulo Pedroso e cuja liderança inclui também nomes como Alexandra Leitão ou Ana Drago, acredita que o balanço é encorajador: logo no início do dia celebrava-se o facto de ter sido preciso mudar de sala para um auditório maior, porque a organização tinha contado com menos pessoas; a meio, o mesmo problema levava o economista Ricardo Paes Mamede a perguntar se seria preciso deslocar uma das iniciativas para uma sala com microfones disponíveis, para que se pudesse ouvir as intervenções.
E se no palco estavam nomes como os de Leitão, Drago, Pedroso, Paes Mamede, Pedro Delgado Alves, do histórico socialista João Cravinho ou do antigo dirigente sindical e ex-secretário-geral da CGTP Manuel Carvalho da Silva, na plateia também se misturavam pessoas de várias áreas da esquerda, incluindo os socialistas Pedro Costa, Isabel Moreira e Maria Begonha (vinda diretamente da Comissão Nacional do PS) e o ex-secretário de Estado Hugo Mendes, que esteve envolvido na sucessão de polémicas da TAP e recentemente lançou um livro em que defende as soluções de Pedro Nuno Santos para a companhia (e critica as de António Costa).
“Patos desalinhados”. Mendes e Pinheiro voltam para atacar Costa e defender Pedro Nuno
A descrição possível para esse conjunto, descreveu Paulo Pedroso a partir do “palco”, é a de um “conjunto de amigos críticos da esquerda portuguesa”. A plateia riu-se e Pedroso explicou melhor: amigos críticos são aqueles que “apoiam”, mas também dão “opiniões honestas que podem ser desagradáveis de ouvir” (sobre assuntos como “a vida e a morte da geringonça” e o que “aconteceu e não aconteceu” na vida política desde então, enumerou).
Cravinho, Paes Mamede e farpas a Medina
Essas opiniões honestas foram sendo dadas nas diferentes mesas de debate (quatro ao longo da tarde) sobre os tópicos em que a Causa Pública quer focar-se e sobre os quais conta apresentar soluções. E incluíram desde farpas ao atual Governo a preocupações com a extrema-direita. Logo ao princípio da tarde, João Cravinho abria as hostilidades, ao lado de Ricardo Paes Mamede, com críticas e sugestões sobre o modelo de desenvolvimento português e um recado dirigido ao Executivo: “O fundo soberano [que será criado com este Orçamento do Estado] constituído por excedentes orçamentais é uma ideia magnífica, com a condição de se saber o que se quer fazer com o fundo soberano”, atirou, provocando risos na plateia.
De resto, houve pontos comuns no diagnóstico: Cravinho falou numa economia que conta com uma “fraca qualidade de gestão” e de empresas sem capacidade de adaptação à era digital, com consequências como “a migração em massa de talento” nos últimos quatro anos, e sugeriu um “programa de participação alargada no mercado global de trabalho remoto”; Paes Mamede referiu vários constrangimentos para o desenvolvimento da economia, desde logo começando pela “força como o país tem sido governado“.
E diagnosticou problemas, falando da “armadilha” de um país que destruiu postos de trabalho menos qualificados mas não consegue competir com as economias mais avançadas. Soluções? Poderão passar por uma aposta clara no desenvolvimento de áreas empresariais específicas, mas também em acabar com o “medo” dos governos de gerir as empresas públicas (“têm sido fundamentais no desenvolvimento de outros países”).
A tarde prosseguiu com debates sobre os desafios climáticos e as políticas de saúde e fechou com um painel, constituído por José Reis, antigo secretário de Estado de António Guterres, e o deputado Pedro Delgado Alves sobre o Estado de Direito e a qualidade da democracia.
Não estavam exatamente sozinhos: a plateia envolveu-se e partilhou preocupações depois de ouvir Delgado Alves falar de um “défice democrático na UE” — “há más decisões que, por acontecerem a nível europeu, têm um escrutínio muito menor” –, dos perigos do “populismo” e da colaboração entre “extremistas da direita” ou da dificuldade em defender uma posição com “nuances” no conflito israelo-palestiniano sem ser alvo de “ataques”. Ao lado, José Reis ia assinalando preocupações com as dificuldades de acesso à Justiça, e o curto envolvimento dos portugueses com o sistema judicial.
O “caminho escorregadio para o gulag” e a (pouca) inspiração de Lenine
A ideia, acabaria Ana Drago por concluir depois de inesperadamente lembrar Montenegro, é tentar discutir ideias de esquerda e “alargar o campo do possível” para chegar a um “futuro diferente”, evitando que qualquer defesa de uma distribuição de rendimentos ou de regulação do Estado seja vista como “uma espécie de caminho escorregadio em relação ao gulag“, gracejou. É preciso fazê-lo com “prata da casa” e conhecimento que já existe e tem sido “desperdiçado”, defendeu.
Desse “conhecimento” faz também parte Alexandra Leitão, mais um nome forte do pedronunismo — e desejado por parte da esquerda para uma hipotética corrida presidencial — que tinha sido, horas antes, responsável pela abertura do fórum. Com uma declaração de intenções: esta será uma “associação de cidadãos empenhados na construção de uma perspetiva de sociedade e de um caminho para Portugal”, fundado em “visões de esquerda”. Tudo tendo em vista objetivos como o reforço do Estado social, do elevador social, dos serviços públicos e da ligação da população ao sistema judicial.
José Reis explicou também: a ideia é levar a cabo umas quantas “utopias realizáveis”, tendo em conta que a “capacidade para uma mobilização progressista”, de gente “inquieta”, existe. É assim, e focada em temas como a inclusão social através do emprego, o défice produtivo do país, a falta de “autonomia” em relação à “ortodoxia europeia” ou a crise das democracias que a associação quer “fazer política”, assumiu.
A fechar, Pedroso resumiu por sua vez os propósitos da nova associação de esquerda: agir sobre “constrangimentos” que travam o desenvolvimento do país, em vez de “carpir as mágoas das pessoas de esquerda”. “Como dizia Jorge Sampaio, não estamos aqui pela lamúria”, atirou o antigo ministro do PS, defendendo que a sociedade deve estar envolvida na dinâmica política e na criação de “agendas autónomas”.
“Os portugueses sabiam que queriam ir para a Índia. Precisamos de ter projetos mobilizadores”, argumentou, falando de um projeto que quer agora provocar uma “interação” entre as instituições públicas e a participação cidadã — transformando estes debates em medidas concretas. Depois, gracejou, dirigindo-se à plateia, que citaria a ideia de um pensador em que não se costuma inspirar muito, “se calhar ao contrário” de parte de uma plateia com origem em várias partes da esquerda: a frase era “a vitória das ideias necessita das organizações”, o autor era Lenine.
Para já, o próximo fórum fica pré-agendado para daqui a seis meses, mas os seus membros continuarão a trabalhar nas propostas e alternativas que querem lançar, até porque, por entre todas as definições do que a associação é e quer ser, Pedroso lançou também uma não-definição: “Não somos e não queremos ser uma comissão de festas“. Falta passar à ação.