O assunto nunca foi completamente pacífico dentro do Bloco de Esquerda. Mas agora, com a corrida à liderança do partido a aproximar-se — a convenção que fechará o ciclo de Catarina Martins está marcada para 27 e 28 de maio –, estão a ficar cada vez mais evidentes as fraturas internas a propósito da posição quanto à guerra na Ucrânia e à invasão russa, que já motivaram acusações de “querer desculpar Putin” ou de “falar com rodriguinhos para não perder votos” entre as listas adversárias. E a inclusão do Bloco na delegação parlamentar que aterrou esta terça-feira em Kiev para estar com Volodymyr Zelensky veio aumentar a tensão.
O gatilho mais recente foi a vinda de Lula da Silva a Portugal e as declarações polémicas que o Presidente brasileiro fez sobre Ucrânia e Rússia. Para os críticos da atual direção e da candidatura de Mariana Mortágua, a reação “evasiva” de alguns dirigentes, sem uma defesa clara de Lula e uma demarcação das posições do Governo português, “comprometeu” o partido com “uma posição inaceitável” neste ponto sensível, como se lê numa nota escrita pela moção E.
Isto porque, para os críticos liderados pelo ex-deputado Pedro Soares, as declarações públicas da direção, ao afirmar que “a posição bloquista sobre a guerra na Ucrânia é a mesma do Estado português”, colam o Bloco às posições da NATO.
O desconforto não é de hoje, como se lê nesta nota dos críticos: “Já antes tal acontecera aquando de várias votações no Parlamento Europeu”, garantem. E sentenciam: estas posições “rompem com a história do Bloco e com a generalidade das suas resoluções políticas relativamente à NATO anteriores à guerra na Ucrânia”.
Ou seja: para os críticos, o partido devia pôr-se inequivocamente ao lado de Lula e criticar a NATO e a União Europeia — como o Presidente brasileiro fez — sem margem para dúvidas. Para este grupo, uma posição “inequívoca” de condenação da Rússia “não é contraditória” com uma crítica ao que diz ser um “discurso belicista de ambas as partes, da Rússia aos EUA, passando pela NATO e pela UE”. Nem com a prioridade defendida por Lula a dar a um processo negocial para chegar à paz.
Os críticos exigem, assim, uma “clarificação” da posição da direção do Bloco, deixando claro que rejeitam as “afirmações dúbias” que dizem estar a ouvir da boca de Mortágua e companhia. E reafirmam a sua solidariedade com as declarações de Lula, por serem “críticas do caminho belicista que tem estado a ser seguido”.
Numa nota anterior, já tinham saudado Lula e “as suas declarações em busca ativa pela paz”. Para os críticos, como argumentavam na altura, a visita do chefe de Estado brasileiro a Portugal seria “uma lufada de ar fresco no bafiento respirar de uma espécie de pensamento único que vê na guerra aquilo que nunca é uma solução”.
Mas a discordância face às declarações feitas a propósito da vinda de Lula é apenas a ilustração de um desentendimento de fundo no seio do Bloco. E, ao que o Observador apurou, existe nesta altura outro motivo para irritação no seio do partido: a inclusão da bloquista Isabel Pires na delegação de parlamentares que se deslocou esta terça-feira a Kiev (num grupo que inclui Augusto Santos Silva e representantes de BE, PS, PSD e IL, mas não do PCP) traduzirá o “alinhamento” do Bloco, no entender dos críticos, com a posição militarista de NATO, EUA, UE e até do Estado português.
“Não se trata da solidariedade com o povo ucraniano, trata-se de participar numa delegação que vai dizer a Volodymyr Zelensky que Portugal/UE fará todos os esforços militares para o prolongamento da guerra, como convém aos EUA/NATO”, comenta uma fonte bloquista. A visita foi surpresa, mas o Observador sabe que a inclusão do Bloco em substituição do Chega — que Santos Silva excluiu dos grupos que o acompanham em viagens oficiais — foi comunicada dentro do partido na semana passada e votada na Comissão Política bloquista.
De acordo com as informações apuradas pelo Observador, a ida a Kiev foi aprovada por maioria com o voto contra do histórico Mário Tomé (que subscreve a moção dos críticos) com as abstenções de Bruno Candeias e Ana Sofia Ligeiro (ambos elementos que não alinham com a atual gestão do Bloco mas romperam com a única moção alternativa). Entretanto, do lado dos críticos, a irritação cresce, assim como a incompreensão com uma suposta falta de “solidariedade” para com as declarações de Lula da Silva.
Bloco teme “caça às bruxas”. Críticos não querem “rodriguinhos”
Este é, de resto, um assunto que separa as duas listas que concorrem à liderança do Bloco e que já é considerado delicado no partido há muito tempo. Como o Observador escrevia em março do ano passado, um mês depois do início da invasão russa, a direção chegou a transmitir numa reunião tensa da Comissão Política que acreditava que existia um “ambiente político de caça às bruxas” a partir da invasão da Ucrânia e que isso representaria uma dificuldade para o Bloco.
Ou seja, os bloquistas estavam conscientes de que o dossiê político queima, ou não estivessem a assistir aos efeitos negativos que teve a posição assumida pelo PCP, que em muitos documentos oficiais não menciona sequer responsabilidades da parte da Rússia, ou quando o faz equipara-as às de NATO, EUA e UE. Dentro do PCP há, de resto, quem critique o Bloco por assumir uma posição mediaticamente menos polémica: a direção bloquista também critica EUA, UE e NATO, mas faz uma condenação mais assertiva da Rússia e sobretudo do regime oligarca de Vladimir Putin.
No único debate entre moções bloquistas que foi transmitido para o público geral, o assunto também deu discussão: nessa altura, no início deste mês, Pedro Soares criticava o que dizia ser “uma atitude um bocadinho ambígua” sobre a NATO e os Estados Unidos por parte da moção A, de Mariana Mortágua. E acusava mesmo a adversária de abordar o assunto com “rodriguinhos, por medo de perder votos”.
Mortágua viria, nesse ponto, lembrar as críticas que a sua moção deixa à economia “mafiosa” russa e ao seu regime oligárquico, atirando uma acusação de volta: os críticos, disse, arranjam forma de “diluir ou desculpabilizar a Rússia”. Soares remataria dizendo que não há “comparação possível” entre o poder do imperialismo americano e todos os outros “que querem disputar a hegemonia mundial”.
Moções com poucas diferenças de fundo
Lendo as duas moções, é possível detetar algumas nuances, embora na verdade ambos critiquem fortemente a NATO e os Estados Unidos. Na moção de Mariana Mortágua, é criticado o papel da NATO noutras “agressões” e reconhecida a tal “hegemonia global dos EUA”, donos do imperialismo “mais perigoso”, mas isso “não altera a natureza imperialista da agressão russa à Ucrânia, que o Bloco condenou com a mesma clareza com que, ao longo dos anos, denunciou o regime de Putin”.
Nesta moção atira-se ainda um recado a outros setores da esquerda (ao PCP?) pela “incompreensão da natureza imperialista da Rússia”, que tem “enviesado a política de muitos setores de esquerda“. E é importante, prosseguem os atuais dirigentes do Bloco, que não se cometa o mesmo “erro” com a China, mesmo que esta se diga socialista: “O facto de os EUA tomarem a China como inimigo principal do seu poderio económico e militar não torna defensável este regime de partido único militarizado que se projeta em ambição económica sobre vários continentes. Tal como no tempo da Guerra Fria, o sentido da liberdade dos povos não pode combater uma superpotência apoiando outra”.
Para a moção de Mortágua, a solução passa por uma “viragem democrática” na UE para que se afirme autonomamente, assim como pela realização de uma “conferência de paz para a Ucrânia” que ajude a travar a “corrida armamentista”.
Do lado dos críticos, em teoria, há pontos em comum: os EUA são referidos como “o maior fator de instabilidade” que recorre à “agressão”, à “chantagem belicista” e ao “conflito comercial”, evidente no confronto com a China. “Rejeitamos o alinhamento com uma das partes. O nosso combate é anti hegemónico e ecossocialista”.
Também aqui se defende que os países europeus têm de ser mais autónomos e submeter-se menos às imposições e vontades da NATO e dos Estados Unidos, deixando de optar por “militarização e corrida armamentista” como solução para conflitos. Nesse ponto, dizem que o Bloco se “posiciona contra a guerra” e deixam claro que rejeitam “com veemência da agressão”, para depois exigirem da mesma forma a “todas as potências envolvidas” que “em vez de alimentarem a guerra cessem imediatamente os combates e avancem para negociações de paz”.
“Condenamos e sabemos da responsabilidade direta da Federação Russa na invasão da Ucrânia. Não temos qualquer dúvida sobre o papel agressivo dos EUA e da NATO e a submissão da generalidade dos governos europeus aos seus desígnios expansionistas para o domínio global na disputa com potências emergentes”, atiram os críticos, resumindo assim a sua posição: “Queremos Putin fora da Ucrânia e a NATO fora da Europa”.
E rematam: “O Bloco não pode ficar ligado a qualquer decisão que branqueie essa submissão (caso da votação de resoluções no Parlamento Europeu). Referências genéricas aos “imperialismos” obliteram o papel hegemónico dos EUA e da NATO”. Para os críticos, além de atacar Putin, Mortágua tem de ser mais direta a criticar o imperialismo norte-americano e as posições da UE e, assim, de Portugal. Um equilíbrio difícil de fazer, num tópico que queima à esquerda.