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O início de 2025 trouxe novidades no campo de batalha para a Ucrânia. As Forças Armadas do país iniciaram, durante este fim de semana, uma fulminante ofensiva na província russa de Kursk, perto da fronteira ucraniana, colocando pressão nas tropas russas e norte-coreanas que defendem a região. No terreno, a situação é complexa, há vários relatos e ainda não se sabem bem quais terão sido as consequências da operação militar de Kiev, que garante não querer ficar com nenhum território da Rússia.
A ofensiva ocorre numa altura em que a Rússia continua a fazer progressos no leste da Ucrânia. Esta segunda-feira, o Ministério da Defesa russo garantiu que controla a integridade da localidade de Pokrovsk, um importante centro logístico para as tropas ucranianas. Moscovo prossegue na dianteira, sendo que Kiev está a ter dificuldades em travar os avanços do adversário no Donbass. Os ataques em Kursk servem, por isso, como uma forma de tentar dividir as atenções das tropas leais ao Kremlin.
Numa guerra também feita de perceções, o objetivo da liderança da Ucrânia é igualmente demonstrar que o país ainda tem capacidades para enfrentar diretamente a Rússia — e que está longe da derrota completa. Sendo ainda capaz de atacar, os ucranianos pretendem essencialmente enviar também uma mensagem de força ao Presidente eleito norte-americano, Donald Trump, que está a quinze dias de tomar posse e que estabeleceu como uma das promessas eleitorais terminar o conflito em 24 horas.
Temendo sentar-se à mesa das negociações numa posição de desvantagem face aos representantes do Kremlin, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenksy, deseja fortalecer diplomaticamente o país que lidera. Em agosto de 2024, quando tropas da Ucrânia entraram em Kursk pela primeira vez e fizeram avanços consideráveis no teatro de operações, existiu uma sensação de triunfo para Kiev, ao mesmo tempo que Vladimir Putin parecia ter sofrido uma “humilhação” — era a primeira vez que tropas de outro país tinham entrado na Rússia desde o final da Segunda Guerra Mundial, sendo que os russos não conseguiam travar a ofensiva ucraniana.
Mas também é certo que muitos dos objetivos estratégicos iniciais da ofensiva ucraniana de agosto de 2024 acabaram por não se concretizar. Conjeturava-se que, por exemplo, a Rússia transferiria tropas da linha da frente para Kursk; ora, Moscovo não o fez e a Ucrânia continuou a sofrer vários revezes no campo de batalha. Além disso, o Kremlin recorreu à Coreia do Norte para enviar homens para a região russa fronteiriça da Ucrânia.
Não são claros ainda quais são os objetivos desta ofensiva ucraniana — e se resultarão na plenitude. A Rússia está a tentar defender-se e Vladimir Putin já enviou um experiente general da sua confiança, Yunus-Bek Yevkurov, para Kursk. Independentemente do desfecho, a Ucrânia parece não desistir de tentar provar que ainda tem força no campo de batalha.
Uma ofensiva começada na manhã deste domingo, as “três vagas de ataques” e a resposta russa
O think tank Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) fez uma análise do primeiro dia da ofensiva em Kursk. Segundo aquele órgão norte-americano, as tropas ucranianas voltaram à ofensiva “em pelo menos três áreas” às 6h00 (mais três horas em Kursk) deste domingo. Embora as forças de Kiev ainda se mantenham em Kursk, a Rússia recuperou, desde agosto, alguns territórios. Antes deste fim de semana, a Ucrânia mantinha-se à defesa, ao passo que os russos levavam a cabo uma contraofensiva.
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Isso mudou este domingo e as tropas ucranianas levaram a cabo “três vagas de ataques”. As informações foram depois confirmadas por bloggers militares russos, de acordo com a CNN internacional: “O inimigo colocou reservas na ofensiva na região de Kursk”. Nesse ataque, segundo as mesmas fontes, as Forças Armadas da Ucrânia usaram “poderosos sistemas de guerra eletrónica” que dificultaram o trabalho dos drones russos. “Há batalhas com armas ligeiras. A nossa artilharia e tanques estão a lutar contra o inimigo.”
Entre as tropas russas, segundo os bloggers, a ofensiva não foi propriamente uma surpresa, se bem que ainda não seja completamente claro quais serão os objetivos. Como escreve o ISW num relatório divulgado já esta segunda-feira, existem dúvidas se não é apenas um “exercício de diversão” das tropas da Ucrânia, ou se são um prenúncio para uma ofensiva ainda maior.
NEW: Ukrainian forces resumed offensive operations in at least three areas within the Ukrainian salient in Kursk Oblast and made tactical advances on January 5. (1/3) pic.twitter.com/WFLEhLH5eY
— Institute for the Study of War (@TheStudyofWar) January 6, 2025
Isso não significa, segundo o Instituto para o Estudo da Guerra, que não tenha havido apreensão entre as tropas de Moscovo. “As fontes russas expressaram preocupação sobre a capacidade militar russa para reagir aos esforços combinados da Ucrânia entre guerra eletrónica, ataques de longo alcance e operações terrestres“, lê-se no relatório desta segunda-feira.
Como é prática habitual, e tal como aconteceu em agosto de 2024, a Ucrânia manteve-se quase em silêncio sobre a sua ofensiva em Kursk. O chefe do gabinete de Volodymyr Zelensky, Andriy Yermak, escreveu no Telegram que a Rússia estava a “ter o que merecia”. No mesmo sentido, Andriy Kovalenko, líder do Centro contra a Desinformação, confirmou que as tropas russas estavam “muitos ansiosas porque estavam a ser atacadas de várias direções”.
Por seu turno, o Ministério da Defesa da Rússia confirmou, num comunicado, os ataques ucranianos. Esta segunda-feira, noutro documento, assegurava que a Ucrânia não estava a obter qualquer êxito no campo de batalha. “As ações determinadas dos militares — com apoio da aviação e da artilharia — abortaram a tentativa de ofensiva do exército ucraniano. A maior parte das forças inimigas foi aniquilada nas proximidades de Khotor Berdin”, frisou a Defesa russa, ressalvando, contudo, que a “operação para neutralizar as Forças Armadas ucranianas estava em progresso”.
No domingo, Vladimir Putin foi rápido a reagir para impedir o sucesso da ofensiva. Segundo o jornal britânico Telegraph e a imprensa russa, horas depois de a Ucrânia começar a ofensiva, Vladimir Putin decidiu que Yunus-Bek Yevkurov, um general de topo e que trabalhou na salvaguarda dos interesses dos grupos mercenários russos em África, seria enviado para Kursk para vigiar as operações.
Na sua conta de Telegram, o governador de Kursk, Alexander Khinshtein, deu mais detalhes sobre um encontro que manteve este domingo de manhã com o general. “Não vou entrar em detalhes da conversa, mas posso dizer uma coisa com certeza: o governo da região de Kursk fará todo o possível para ajudar as nossas Forças Armadas na luta sagrada contra o nazismo. O inimigo será derrotado. A vitória será nossa.”
Estas informações foram negadas entretanto pelo comandante do exército ucraniano, Mykhailo Drapaty. Em declarações à Agence France-Presse, a alta patente militar assegurou que a Ucrânia estava a fazer avanços. “Na região de Kursk, estamos de forma confiante a infligir perdas“, sublinhou.
Pressionar Putin, enviar uma mensagem a Trump e dar uma nova perspetiva sobre as chances ucranianas: o objetivo de Zelensky
As últimas demonstrações do Ocidente são de apoio a esta ofensiva. Numa nota enviada à Reuters, o gabinete da alta representante para a Política Externa e para a Política de Segurança, Kaja Kallas, assinalou que a Ucrânia tem o direito de se defender, segundo Direito Internacional. “Esse direito estende-se além das suas fronteiras. A guerra injusta de Moscovo contra a Ucrânia incluiu numerosos ataques russos que são originários da região de Kursk. Por isso, as forças militares russas são alvos legítimos de acordo com o Direito Internacional.”
Menos diplomático foi o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken. Ainda que não tenha comentado diretamente esta nova ofensiva, o chefe da diplomacia dos Estados Unidos salientou que a manutenção de Kursk é “importante” para a Ucrânia, explicando que pode servir como uma moeda de troca em futuras negociações. “Certamente é um fator que vai surgir numas negociações.”
Este será um dos principais objetivos de Volodymyr Zelensky. Como explica à Radio Free Europe o analista militar russo Yan Matveyev, será difícil para Ucrânia “ocupar vastos territórios na região de Kursk”, incluindo a própria cidade que serve de capital à província russa fronteiriça com território ucraniano. Assim, mais do que um objetivo puramente expansionista, Kiev está “a tentar aumentar a sua influência antes de negociações”.
O contexto é fundamental, como interpreta o Telegraph. Esta ofensiva “ambiciosa” estará a deixar o Presidente russo preocupado — e pode pôr em causa a estratégia que tem seguido nas últimas semanas. Recentemente, para ganhar vantagem na mesa das negociações, a Rússia tem avançado no leste de território ucraniano, assistindo-se a uma intensificação das hostilidades. Por exemplo, nos meses de novembro e dezembro, a Ucrânia perdeu o controlo de mais de mil quilómetros quadrados de território.
O objetivo do Kremlin é demonstrar ao Presidente eleito norte-americano que a Ucrânia não tem quaisquer chances de vencer o conflito, sendo uma causa perdida que não vale a pena Donald Trump apoiar. Ora, a quinze dias da tomada de posse do novo, não é certamente um bom sinal para as ambições de Vladimir Putin que a Ucrânia volte ao ataque.
Por várias vezes, Vladimir Putin insistiu que a região de Kursk seria libertada das tropas da Ucrânia. No seu balanço do ano, realizado a 19 de dezembro, o Presidente russo assegurou que os militares ucranianos seriam “definitivamente expulsos” da região. Não deu, contudo, qualquer data para que isso aconteça, de modo a “não pressionar os militares”.
A região de Kursk continua, por isso, a ser uma dor de cabeça para Vladimir Putin, pois pode servir como uma vantagem à mesa das negociações para a Ucrânia. Contudo, alguns especialistas duvidam igualmente da eficácia deste trunfo de Kiev. Em declarações à RBC Ukraine, o especialista militar e antigo membro dos serviços secretos ucranianos, Ivan Stupak, disse que a ideia de usar Kursk como uma “moeda de troca” parece ser “razoável”. Contudo, realçou que, em termos práticos, “não consegue imaginar” de que forma é que Kiev poderá usar essa vantagem.
O mesmo especialista considera que esta ofensiva tem como finalidade forçar o inimigo a retirar tropas de pontos quentes na linha da frente — como Pokrovsk e Kurakhove — e direcioná-las para Kursk. No discurso diário desta segunda-feira, o Presidente ucraniano revelou que o objetivo de Kiev é idêntico: “O importante é que o ocupante não consiga redirecionar toda a sua força para outras direções, em particular em Donetsk, Sumy, Kharkiv ou Zaporíjia”.
Today marks exactly five months since the start of our actions in the Kursk region, and we continue to maintain a buffer zone on Russian territory, actively destroying their military potential there. During the Kursk operation, the enemy has already lost over 38,000 soldiers in… pic.twitter.com/aLWbrjZvxH
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) January 6, 2025
“Continuamos a manter uma zona tampão em território russo. Destruímos ativamente potencial militar russo”, prosseguiu Volodymyr Zelensky, enumerando que a Rússia já sofreu 38 mil baixas em Kursk desde o início da ofensiva. O Presidente da Ucrânia aproveitou ainda para agradecer a quem “trouxe a guerra de volta à Rússia”, providenciando à Ucrânia “força e segurança”.
Seis meses depois do início da primeira invasão a território russo neste conflito, Volodymyr Zelensky continua a acreditar que esta é a forma mais correta de pressionar o Kremlin. Ainda que desta vez não conte com o elemento surpresa que caracterizou o que aconteceu em agosto, a Ucrânia mostra estar disposta a fazer tudo para chegar mais forte a uma mesa das negociações, aproveitando todas as debilidades de Rússia.