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“Hoje escrevo só para tratar um assunto sério e bem importante. O meu casamento. Como lhe mandei dizer vou a Sigmarigen.”
1913, Sigmarigen — D. Manuel II e Augusta Vitória
É através da correspondência trocada que mãe e filho tratam “do assunto” e de caminho abordam as questões ligadas a uma possível restauração monárquica em Portugal. Em fevereiro de 1911, para elevar os ânimos nesse primeiro ano de exílio em Inglaterra, D. Amélia decide relançar o casamento de D. Manuel, tema que adquire especial urgência a partir de 5 de outubro de 1910, e põe–se “novamente em campo para obter informações” que possam interessar ao futuro do jovem de 21 anos. A mãe sonda as relações familiares e conhecimentos que domina em quase todas as casas reais europeias, mas é o filho, monarca privado dos anteriores vínculos diplomáticos, quem acaba por efetuar as diligências certeiras. Consciente da importância política deste passo, D. Manuel tem também a perceção de que não pode haver um enlace “sem menor atração e afinidade”, lê-se em A Rainha Mal Amada (Temas e Debates), obra na qual Margarida Durães reserva todo um capítulo às movimentações rumo à desejada boda.
Como estabelecido, o rei que nunca abdicou do seu trono viaja, a 29 de maio daquele ano, até esse castelo alemão que evoca as saudosas “Sintra e a Pena”. É no reduto do primo Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen que conhece a princesa Augusta Vitória (1890-1966), “bonita, muito fina, e elegante”, uma das noivas apontadas, com o prudente D. Manuel a querer aguardar até conhecer outras pretendentes. Se o magro dote da jovem condicionava os avanços, facto é que uma aliança com os Hohenzollern afigura-se sempre mais promissora, e inofensiva, do que um matrimónio com uma princesa austríaca, à mercê de manobras miguelistas. É assim que o rei se decide, conforme carta enviada à mãe em que pede explicitamente que veja se “há possibilidade de arranjar o casamento com a filha do príncipe Guilherme”. O pedido oficial só será consolidado em abril de 1913, em nova viagem pela Europa. “Tudo está arranjado”, comunica a D. Amélia três dias depois. “Mãe da minha alma estou felicíssimo! Radiante!”
O entusiasmo pessoal não é para menos. O anúncio do noivado com a neta de D. Antónia, princesa portuguesa e filha da rainha D. Maria II, que se casara em Sigmarigen, reabilita os humores monárquicos entre os resistentes exilados, dispersos por Espanha, sul de França e Inglaterra.
Para conhecer melhor a noiva, D. Manuel permanece na Alemanha durante algum tempo e apressa-se nos preparativos e elaboração da lista de convidados régios. O rei de Espanha e o tio Afonso perfilam-se para padrinhos. E para que Augusta Vitória possa ser apresentada à colónia portuguesa exilada em Inglaterra, Abercon House, em Richmond, assiste a uma garden party oferecida pelos anfitriões D. Manuel e D. Amélia.
Em 4 de setembro realiza-se por fim a aguardada cerimónia religiosa, um dia depois de a revista Mayfar, cita Margarida Durães, ter dedicado todo o seu número à grande boda, espelho da ligação portuguesa a todas as casas reais europeias, que enviam os seus representantes para o casamento. Por aqui desfilariam nomes como Eduardo, príncipe de Gales, ou Eitel Friedrich, filho do imperador alemão Guilherme II.
Durante a missa na manhã do enlace, na capela do Castelo de Sigmaringen, o noivo assiste de pé, ostentando a prestigiada Ordem da Jarreteira e o Grande cordão da Banda das Três Ordens, sobre um simbólico caixote cheio de terra portuguesa. A cerimónia é presidida por José Sebastião de Almeida Neto, cardeal-patriarca de Lisboa, à altura exilado em Sevilha, e que já havia batizado D. Manuel.
Quanto a presentes, D. Amélia não deixa os créditos de rainha mãe por mãos alheias e manda montar um colar de diamantes e rubis na casa Cartier para oferecer à noiva. Do marido, Augusta Vitória recebe ainda um diadema de platina dos joalheiros Leitão, com dois mil diamantes e esmeraldas incrustados. Em Lisboa, os monárquicos fazem uma subscrição, liderada por Monteiro Milhões, para poderem oferecer algo ao novo casal.
Três dias de festejos depois, o mel rapidamente dá lugar ao fel. Os noivos rumam a Munique para uns dias mas Augusta, ou Mimi, como carinhosamente é tratada pelo marido, adoece ao ponto de ser internada, assolada por uma “febre infecciosa”, como relata D. Manuel à mãe, detalhando que o mal estar começara logo após o casamento, de forma a afastar os rumores entretanto surgidos de que o casal estaria próximo da rutura. Suspeitas de influenza, febre gástrica e, por fim, o diagnóstico de tifo adiam a alta médica, concedida apenas no início de novembro. Depois da convalescença em Sigmarigen, o par fixa-se na mansão Fulwell Park, em Twickenham, a um passo de Abercorn House, onde D. Amélia reside agora, sozinha. Nesse Natal, e sem olhar a gastos, a matriarca oferece ao casal uma biblioteca giratória. E a si própria um Renault 22 H5 descapotável.
É nos cerca de 20 hectares de Twickenham, nos arredores de Londres, que D. Manuel tenta recriar um ambiente português, entre a nostalgia da pátria e o empenho na dinâmica da esfera britânica que o adotou. Para aqui seguem os seus bens particulares depois da proclamação da República e por aqui se mantém ativo na comunidade enquanto assiste aos sucessivos fracassos das tentativas de restauração monárquica no seu país. Bombardeado o Palácio das Necessidades, residência oficial do monarca, para trás ficariam a última noite passada em Portugal, no Palácio Nacional de Mafra, seguida do embarque na Ericeira no iate Amélia, rumo ao Porto, a escala, afinal, em Gibraltar e por fim a chegada ao Reino Unido, com o clã real a ser recebido pelo rei Jorge V.
Segundo filho do rei D. Carlos e da princesa Amélia de Orléans, D. Manuel II ascendera ao trono após o assassinato do seu pai e do irmão mais velho D. Luís Filipe, Príncipe Real. A passagem por solo britânico do “Patriota”, o cognome granjeado, revela-se ainda hoje em topónimos como “Manuel Road”, “Lisbon Avenue” e “Portugal Gardens”.
Filha do príncipe Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen e da princesa Maria Teresa de Bourbon-Duas Sicílias, Augusta Vitória tem 22 anos quando se casa com aquele que é também seu primo em segundo grau. Como o rei estava exilado na Inglaterra e como a monarquia havia sido formalmente abolida em Portugal, Augusta nunca recebe oficialmente o título de rainha, embora, mesmo durante o exílio em Inglaterra, seja assim tratada pelos monárquicos. “É uma figura enternecedora, que continua a comover-me na sua fragilidade, nas linhas delicadas do seu corpo, na sua cabeça de menina loura. Hohenzollern pura no desenho do rosto, verdadeira princesinha austríaca na cor da epiderme, dos cabelos, na luz dos seus olhos — há, porém, na sua sensibilidade transparente, à flor da pele, algo de português”, descreve António Ferro sobre a “figura fugidia de Augusta Vitória“. Ferro acompanharia a cerimónia do adeus ao antigo monarca em solo britânico, anos depois de o assumido republicano o ter visitado, em dezembro de 1930, para entrevistar “um português dos quatro costados”, lê-se em D. Manuel II, a biografia do último rei de Portugal, do historiador João Miguel Almeida (Manuscrito).
Não só as referências nacionais, como o azulejo, tornam famosa a morada do casal, cujas garden parties contagiam a vida na região, onde o antigo rei apoia a Hampton Garden Society, e onde se tornara primeiro presidente da Twickenham Piscatorial Society, segundo o museu local. Em 1914, aliás, Fullwell Park receberia, para uma das suas festas, a rainha Alexandra, a princesa Vitória e a imperatriz Maria da Rússia.
Fervoroso da modalidade do ténis e presença assídua no torneio de Wimbledon, é numa sexta-feira, 1 de julho de 1932, que D. Manuel sente uma “dor aguda na garganta à saída do estádio”. “D. Afonso XIII, outro rei exilado, que assistira a seu lado ao torneio, convidara-o para um almoço no dia seguinte. D. Manuel declinara o convite, pois queria honrar o compromisso que assumira com o seu servidor António Pereira: ser padrinho de casamento de sua filha”, escreve João Miguel Almeida. Mas no dia seguinte, aquilo que seria mais uma dor de garganta com nada de inédito, revela-se fatal.
No dia da notícia, o rei Jorge V e a rainha Mary abandonam a tribuna do torneio mal se inteiram dos factos. No clube de ténis, do qual era sócio, “desceu-se o pavilhão real e a bandeira do clube foi içada a meia haste”, lê-se na biografia de D. Amélia. É Vitória quem envia o telegrama a D. Amélia dando conta da morte do marido. Surpresa para muitos, a correspondência materna revela no entanto que o antigo soberano não gozava de grande saúde e que desde muito cedo a sua glote acusava problemas. Lancetado com frequência, queixava-se de astenia e frequentava as termas das Caldas desde tenra idade, mais tarde estâncias como a de Harrogate.
Depois de uma missa na catedral de Westminster, a procissão fúnebre segue pelas ruas de Twickenham, rumo à igreja de St. Charles Borremec em Weybridge. Aí permanece até ser trasladado para Portugal, para o mausoléu dos Bragança. D. Manuel morre poucos dias depois de Salazar ter formado governo em Portugal. “A sua atitude relativamente à morte do último rei português marcou a forma como, ao longo das décadas seguintes, iria gerir as tensões e até os conflitos entre republicanos e monárquicos, dois lobbies de enorme preponderância no Estado Novo”, enquadra ainda a referida biografia de D. Manuel II.
Para desapontamento pessoal e dos monárquicos, o casamento de D. Manuel não gera descendentes. Vitória, que enviúva em 1932, volta a casar aos 48 anos, em 23 de abril de 1939, com o conde Karl Robert Douglas-Langenstein e de novo fica viúva em 1955. Augusta Vitória morre aos 76 anos em Münchhof, em Eigeltingen, e é sepultada no castelo de Langenstein, propriedade da família Douglas em Hegau.
Fulwell Park é vendida em 1934, dando origem a habitação para a classe média. Um relíquia sobreviveu: o pesadíssimo cofre onde se guardavam as joias da família, que se encontra hoje na igreja de St Mary, em Hampton, que o casal frequentava.
1942, Petrópolis — D. Duarte Nuno de Bragança e Maria Francisca
D. Manuel II reconhecera que, no caso de morrer sem herdeiros, D. Duarte Nuno seria o herdeiro do trono português. Nascido no exílio da família em Seebenstem, na Áustria, em terra diplomática portuguesa, a 23 de setembro de 1907, não fora rei, nascera e crescera no estrangeiro, “longe do poder e sonhando com Portugal”. Foi, aliás, de forma clandestina que veio à terra dos avós pela primeira vez, em 1929, na companhia de Pequito Rebelo, e em segredo visitou o Palácio de Queluz, de acordo com a biografia assinada por João Miguel Almeida.
Por renúncia de seu pai, D. Miguel II, recebe a representação dos direitos políticos e dinásticos do ramo legitimista em 1920, com apenas 13 anos, com a sua tia, a duquesa de Guimarães, a desempenhar as funções de tutora política. D. Duarte é reconhecido e aclamado pela Causa Monárquica em 1932. Torna-se duque de Bragança e, em 1933, ano em que é criada a Fundação da Casa de Bragança, perde os bens por decreto.
Dez anos depois da morte do rei que terminou os seus dias no exílio, o casamento do neto de D. Miguel com a bisneta de D. Pedro II, imperador do Brasil e representante do ramo liberal dos Bragança, “viria a abrir uma nova página na história dos conflitos e entendimentos entre monárquicos de diferentes tradições políticas”, reza a já referida obra. Uma combinação que começou a ser gizada ainda em finais da década de 30, e a que não escapou uma interferência muito particular.
Em plena II Guerra Mundial, perante a perspetiva de enlace entre D. Duarte Nuno e uma representante da Casa Imperial Brasileira, “os monárquicos portugueses resolveram pedir a Salazar o apoio do Estado português. E este, depois de algumas dúvidas e hesitações, decidiu satisfazer o pedido e patrocinar a união dos dois ramos da Casa de Bragança”, escreve João Amaral em O Roubo do Príncipe. Salazar e o Casamento do Duque de Bragança. (Tribuna da História). “Ao patrocinar o matrimónio do duque de Bragança, furtara-o aos seus partidários, apropriando-se dele para os fins políticos. Depois deste ‘roubo do príncipe’, Salazar nunca mais pensou na restauração da monarquia em Portugal”, acrescenta ainda o autor, situando o pensamento estratégico do líder.
Com efeito, a associação de D. Duarte ao outro lado do Atlântico, veiculada pela imprensa brasileira, remonta a 1936. Por essa altura, a candidata na calha é D. Pia Maria (1913-2000), irmã de D. Pedro Henrique, o pretendente do ramo de Vassouras. “As primeiras diligências foram levadas a efeito em 1939 pelo 2.º visconde do Torrão, encarregado por João de Azevedo Coutinho, lugar-tenente de D. Duarte Nuno, mas algo aconteceu que levou ao adiamento do projeto”, escreve Paulo Drumond Braga na obra Nas Teias de Salazar – D. Duarte Nuno, entre a Esperança e a Desilusão.
É nesse mesmo ano que o chefe do Governo português é chamado a intervir no delicado tema. Consultado por Azevedo Coutinho, inclina-se para a escolha de uma “irmã da atual condessa de Paris”, provavelmente D. Teresa Teodora. E, por motivos políticos, Salazar desaconselha a viagem de D. Duarte Nuno ao Brasil. “A ocasião para voltar a tratar do assunto foi propiciada em agosto de 1941, quando o monárquico João do Amaral – deputado e antigo diretor do Diário de Notícias –, integrando uma “embaixada intelectual” enviada por Salazar ao Brasil, foi incumbido por Azevedo Coutinho, com a concordância do ditador, de apressar, no Rio, as negociações matrimoniais de D. Duarte Nuno. A missão deve ter corrido bem. Nos primeiros dias de setembro, o deputado escrevia ao chefe do Governo: “Tiveram o melhor êxito certas diligências que fiz à margem da atividade oficial da embaixada”, descreve o historiador.
Em março/abril de 1942, Salazar, contactado por Azevedo Coutinho, volta a desaconselhar a deslocação de D. Duarte Nuno ao Brasil. Mas o mediador do processo insiste que o duque não casaria sem viajar, começando “a reunir apoios de ordem vária, nomeadamente financeiros, por exemplo, de Ricardo Espírito Santo e do 5.º duque de Palmela.”
Sobre a comitiva que acompanharia o futuro noivo, pensa-se no 4.º conde de Almada e em João do Amaral. A estes junta-se uma irmã de D. Duarte Nuno, D. Filipa (1905-1990), que lhe era muito próxima e que, em carta dirigida a Azevedo Coutinho, esclarece: “Terei grande prazer em ser útil quanto como irmã o possa ser, isto é, unicamente em questões não-políticas”.
Face ao projeto de o pretendente aguardar em Madrid a viagem para o Brasil, Salazar pede ao embaixador de Portugal na capital espanhola, Pedro Teotónio Pereira, que faça companhia a D. Duarte. Mais: o chefe do Governo mobiliza Teotónio Pereira para obter, junto do embaixador dos Estados Unidos em Espanha, os cinco bilhetes necessários para a comitiva viajar no hidroavião Clipper, que ligava Lisboa a Natal, no estado brasileiro do Rio Grande do Norte. Tudo foi agilizado “discreta e velozmente”, sendo frequente os passageiros conhecerem a data exata da partida apenas na véspera. “A 20 de maio, D. Duarte Nuno chegou com D. Filipa a Madrid, instalando-se no Hotel Ritz. Entretanto, revelou-se algo difícil a obtenção dos vistos quer em Espanha quer no Reino Unido.” Sete dias depois, o pretendente e a irmã chegam a Lisboa.
A história deste périplo foi profusamente documentada por quem seguiu de perto os passos do futuro noivo. Entre eles, João Conde e Castro, avô e padrinho de João Távora, atual presidente da Real Associação de Lisboa, morada de considerável espólio sobre estas uniões. Para a história passa o pequeno livro com postais ilustrados a que o Observador teve acesso, que registou essa escala lusitana do Senhor D. Duarte, Duque de Bragança, e a senhora infanta D. Filipa de Bragança, na sua passagem por terras de Portugal a caminho do Brasil. As memórias desses dias 27, 28 e 29 de maio de 1942 começam na fronteira de Caia (Elvas), passam por Coruche e pelo quartel-general da Vilafrancada em Vila Franca de Xira, e já em Lisboa não esquecem o Castelo de São Jorge, onde também se deixa fotografar, e o bairro da Sé, rodeado de populares como varinas. No museu do Carmo, D. Duarte visita a estátua da sua avó, a rainha D. Maria I, rumando ainda aos Jerónimos e ao palácio de Queluz. Por fim, ao lado da irmã, posa ainda no Palácio Fronteira, em Benfica. A visita pela capital deve-se a um atraso de 24 horas do Clipper que deveria transportar o grupo eleito até ao outro lado do Atlântico.
“Com o entusiasmo e alegria do desterrado que pisa de novo o sagrado solo da Pátria, atravessou o Príncipe Dom Duarte a fronteira portuguesa, transpondo o rio Caia de automóvel, no dia 27 de maio de 1942, acompanhado pelo Dr. João do Amaral, que dias antes de deslocara a Madride para esse fim”, sublinha o conde de Almada, que, acompanhando as deslocações do duque de Bragança, colige uma série de Notas sobre a Viagem de Sua Alteza Real o Senhor Duque de Bragança ao Brasil, um volume ilustrado que permite enquadrar os meses que antecederam o casamento. Visitar o Brasil é, de resto, projeto manifestado ainda em 1935 pelo futuro noivo, confissão feita em entrevista à agência Havas numa das viagens que fez a Paris.
A 29 de maio, “os serviços da Panair anunciaram a partida do Clipper para as 9 horas da noite, do aeroporto de Cabo Ruivo”. O grupo ruma finalmente ao Brasil no Boeing 314. A viagem dura 54 horas e divide-se em duas escalas, uma delas em Bolama, na Guiné portuguesa, e a segunda em Fisherman’s Lake, na Libéria. A 1 de junho, desembarcam em Natal. “Novamente o Clipper, como gigantesca baleia alada, tragou os seus passageiros, lançando-os depois de cortar o Equador e transpor o Atlântico, nas praias brasileiras, pelas cinco da manhã do dia seguinte, semelhantemente ao que sucedera ao profeta Jonas nos recuados tempos bíblicos”, regista o Conde de Almada.
Do Recife para a Baía, e então o Rio de Janeiro, onde suas altezas chegam meia hora antes do timing previsto, o que troca às voltas até aos anfitriões de serviço – “devido a esta circunstância várias pessoas que desejavam assistir ao desembarque dos Príncipes Portugueses no aeroporto Santos Dummond não chegaram a tempo. Isso sucedeu também aos dois príncipes brasileiros , Dom Pedro e Dom João que, logo que verificaram o facto, seguiram para o Hotel Glória a fim de apresentar as boas vindas a seus Augustos primos”.
No dia imediatamente a seguir, oferecem os príncipes um almoço aos Barões de Saavedra distinguindo-as com a primazia dos convites, atendendo ao facto de o conselheiro João Azevedo Coutinho ter nomeado o barão de Saavedra seu representante enquanto durasse a visita de D Duarte ao Brasil. A 5 de junho, o banquete oferecido pela família Imperial brasileira no palácio do Grão Pará assinala o “primeiro encontro dos dois príncipes que algum tempo depois se uniriam para toda a vida pelos sagrados laços matrimoniais”.
Sem mão a medir, entusiasmada com o burburinho, a imprensa brasileira entretem-se com todas as possíveis teorias e conspirações, confiando que o futuro noivo faria o anúncio ainda a partir de Madrid; arriscando escrever que a noiva se tratava antes de D. Teresa Teodora; e difundindo mesmo que o duque de Bragança era emissário do governo português para afastar o Brasil dos Estados Unidos da América e levá-lo a aderir a um bloco católico-latino de que fariam parte Portugal, Espanha, Argentina e Chile. Paulo Drumond Braga recorda como Martinho Nobre de Melo, embaixador português no Brasil, foi instruído para que a permanência de D. Duarte Nuno não assumisse qualquer caráter oficial, limitando-se a uma visita do chefe da casa de Bragança aos seus parentes do Brasil. “Mais tarde, recebe uma carta em que Salazar lhe recomenda a “maior prudência” no contacto com o pretendente ao trono português, evitando, por exemplo, convidá-lo para a embaixada ou estar presente a “atos oficiais” em sua honra, mas não fugindo de todo ao contacto pessoal.”
Segundo o registo pessoal do conde de Almada, é já em julho que D. Duarte goza de uma curta mas memorável estadia em Petrópolis, durante a qual tem a “ocasião de conhecer a apreciar as aprimoradas qualidades e virtudes que tão particularmente adornam a pessoa de sua Augusta Prima, a excelsa princesa D. Maria Francisca, reconhecendo em sua alteza o que o insigne cronista Fernão Lopes na sua pitoresca linguagem teve ocasião de referir a respeito da virtuosa rainha Filipa de Lencastre: “Possui todas as bondades que a mulher de alto lugar pertencem.”
D. Pedro Gastão assegura, entretanto, ao representante de Portugal no Brasil que “não havia qualquer objeção” ao casamento, atendendo a que D. Duarte Nuno tinha uma “educação modelar”, “formação católica” e “raro bom senso”, escreve o historiador sobre esses relevantes predicados.
A 4 de julho, o duque de Bragança regressa a Petrópolis acompanhado unicamente da futura noiva para o pedido de casamento, que acontece no palácio de Grão Pará. A declaração oficial só mais tarde é feita, de forma a que a publicação do noivado aconteça em simultâneo em Portugal e Brasil. Quanto à joia, “um precioso anel, ostentando explêndida safira, que sua alteza a senhora Dona Maria Francisca passou a usar, marcou bem significativamente este notável passo da vida dos dois Augustos Príncipes”.
Há caminho a percorrer até ao desejado dia. Afinal de contas, D. Duarte mantém o plano inicial de realizar uma série de visitas ao longo de um mês, determinado que estava a conhecer os estados de São Paulo e Minas Gerais. Quanto à noiva, a agenda não fica em branco. Acompanhará a futura cunhada, infanta Filipa, na viagem a Nova Iorque que esta já projetara, com o fim de visitar a irmã, D. Maria Antónia, bem como as tias, a Granduquesa do Luxemburgo e a duquesa de Parma. As duas princesas partem para os EUA a 8 de julho de 1942, prevendo-se que regressem no final do mês, começo de agosto. Mas é com a brevidade possível que o noivo solicita a volta da noiva face à “natural agitação provocada pelo trágico afundamento dos cinco barcos brasileiros que tantas vítimas causou e a imediata declaração de guerra do Brasil às potências do “eixo”. O turbulento período dificulta deslocações e correspondência, comprometendo essa urgência, com o regresso ao Brasil sucessivamente adiado.
De resto, depois desse 22 de agosto em que o Brasil declara guerra às potências do Eixo, Salazar teme que a presença de D. Duarte traga embaraços. João do Amaral sugere ao chefe do Governo que se apresse o regresso do duque e que se adie o casamento, limitando-se para já ao anúncio da boda.
A publicação oficial do noivado concretiza-se em 10 de setembro. Quanto ao casamento em si, estima-se por essa altura que aconteça no começo de outubro. A notícia é comunicada no Palácio do Itamaratí ao Presidente da República brasileira e ao governo. E a imprensa portuguesa publica a seguinte nota fornecida pelo conselheiro João de Azevedo Coutinho: “Tenho a honra de comunicar que foi combinado o casamento de Dom Duarte Nuno, duque de Bragança, com sua Alteza Dona Maria Francisca de Orleans e Bragança. Devido às circunstâncias atuais, o casamento será efetuado brevemente, na intimidade, na catedral de Petrópolis, no Brasil”.
Pelas quatro e meia da tarde de dia 6 de outubro, a noiva aterra por fim em solo brasileiro, pondo fim à incerteza. Para a história passou a especulação de que teria sido apanhada de tal forma de surpresa que decidiu afastar-se do Brasil para espairecer. Com efeito, cita Drummond, uma fonte de origem britânica garante que o pretendente mudou de ideias quanto à noiva, acabando por escolher a mais velha das duas princesas ainda solteiras – tinha então quase 28 anos – que considerou mais adequada aos seus “modos tranquilos e estudiosos” do que a noiva mais provável, D. Teresa Teodora, com 23 anos recém-feitos. Segundo uma outra fonte, D. Duarte Nuno mudou de ideias ao ver aquela subir a uma árvore, optando então por D. Maria Francisca. De acordo com as palavras do barão de Saavedra, que se encontram numa carta dirigida a Azevedo Coutinho datada de 22 de agosto, “da parte da princesa houve uma natural indecisão de quem é surpreendida por um pedido inesperado. Não era ela que estava em vista, mas uma sua irmã que não foi escolhida.”
D. Filipa vira na viagem um outro objetivo muito concreto. Dar “tempo a que ela [D. Maria Francisca] se habituasse à ideia da nova situação que lhe era oferecida que determinava uma radical transformação na sua vida e proporcionar ao Senhor D. Duarte um tempo de liberdade para distrair os pensamentos e apagar talvez algum complexo que absorvesse o seu espírito em relação ao compromisso assumido”.
A polémica rodeia agora a escolha dos padrinhos, detalha Paulo Drumond Braga. Chegados ao mês de setembro, Azevedo Coutinho recebe do Rio de Janeiro a sugestão de convidar para padrinho do duque o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que merece rejeição por parte de Salazar. “O lugar-tenente enviou imediatamente um telegrama para o Brasil, a ordenar que se convidassem, pelo “alto significado político”, os condes de Paris e de Barcelona, pretendentes, respetivamente, aos tronos de França e de Espanha”. Assim, o conde de Barcelona e D. João de Almeida (Lavradio) – um velho partidário do ramo legitimista português da casa de Bragança – apadrinham D. Duarte Nuno que, à última da hora, decide substituir D. Filipa pelo segundo. Por sua vez, D. Maria Francisca fica com o conde de Paris e — num sinal máximo de pacificação — com D. Amélia, última rainha de Portugal, viúva do rei D. Carlos, última sobrevivente da linha constitucional da Casa Real Portuguesa, que havia sido convidada por D. Pedro Gastão, e que envia à noiva uma pregadeira de ouro com safiras e diamantes.
A 12 de outubro, são assinadas, no Rio de Janeiro, as convenções antenupciais. D. Duarte Nuno e D. Maria Francisca casam com “regime de absoluta separação de bens”. O casamento civil, presidido por Martinho Nobre de Melo, que oferece um porto de honra, decorre na Embaixada de Portugal a 13 de outubro, dia consagrado em Portugal a Nossa Senhora do Rosário de Fátima.
Dois dias depois, a 15, a chuva teima em abençoar a celebração religiosa, realizada em Petrópolis, pelo bispo de Niterói, D. José Pereira Alves, em substituição do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, impedido por doença. A jornada começa pelas oito da manhã, com uma missa rezada no palácio do Grão Pará por intenção dos nubentes. Perto das 11 e meia, toda a família dirige-se à igreja matriz. O casamento torna-se um acontecimento público e uma enorme multidão congestiona todo o exterior do templo, cuja primeira pedra fora colocada em 1876 pelo Imperador D. Pedro II.
D. Maria Francisca é levada ao altar por D. Pedro Gastão. Seguem-na D. Duarte Nuno, de braço dado com a futura sogra. “O cortejo nupcial entrou no majestoso templo entre alas compactas de enorme multidão que aclamou os príncipes com jubiloso entusiasmo, que a chuva impertinente não conseguiu fazer esmorecer”, anota o conde de Almada.
Quanto aos leque de convidados, dois fatores ditam ausências de monta, sobretudo entre as coroas do Velho Continente. Por um lado, o facto de a boda se realizar no Brasil, por outro o então contexto de guerra na Europa — até os quatro padrinhos permaneceram no seu lado do Atlântico, à distância dos festejos. O presidente da República brasileira, Getúlio Vargas, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Oswaldo Aranha, e os embaixadores de Portugal e da Inglaterra fazem-se representar no enlace pelas respetivas mulheres. Embaixadores ou ministro chegam de paises como Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, França, Peru, ou Polónia, associando a outras figuras da sociedade brasileira. Do Vaticano chega ainda a bênção apostólica enviada pelo Papa Papa Pio XII aos nubentes.
Terminada a cerimónia, teve lugar uma receção de gala no Palácio do Grão-Pará, a que seguiu um faustoso jantar e a assinatura da ata da cerimónia.
Em Portugal, Azevedo Coutinho manda celebrar missa de ação de graças na igreja de S. Domingos de Lisboa, no mesmo dia da boda, e a iniciativa repete-se um pouco por todo o país. A maioria da imprensa portuguesa e acumulam-se dádivas em dinheiro destinadas a um presente a ser entregue pelos portugueses aos noivos.
Se D. Filipa decidiu permanecer no Rio durante mais algum tempo, estava previsto que, a 17 de outubro, os recém-casados e sua comitiva rumassem a Recife, seguindo depois para Natal, onde apanhariam o Clipper para Lisboa. A 20, Getúlio Vargas reconhece a validade do enlace dos duques de Bragança em território brasileiro. E só pelas nove horas da manhã do dia 30, chegam a Cabo Ruivo, desembarcando em Lisboa.
Por fechar estava o local de residência dos duques de Bragança. D. Pedro Gastão aconselha Tânger, cidade onde habitavam então os condes de Paris, Teotónio Pereira sugere San Sebastian, “o mais afastado da nossa fronteira”; e Salazar opõe-se ao cenário Brasil, preferindo a Suíça, onde D. Duarte Nuno residia desde 1939.
Inicialmente em Lisboa, alojam-se no Solar da Piedade, em Sintra, que então pertence à marquesa de Cadaval. Dois dias depois rumam a Madrid, onde se encontram com os condes de Paris, cunhado e irmã de D. Maria Francisca. O périplo segue por Sevilha, norte de África, e a 17 de novembro Pedro Teotónio Pereira reporta a Salazar a chegada do casal a Madrid e informa que o embaixador alemão já recebera de Berlim autorização para dar vistos a fim de o duque e sua mulher poderem atravessar a Alemanha na viagem rumo à Suíça. “Acabo de receber um telegrama do senhor D. Duarte. Estão muito bem e vê-se que muito bem-dispostos.”
O primeiro filho de D. Duarte Nuno e de D. Maria Francisca, o atual duque de Bragança, nasce em Berna, a 15 de maio de 1945. A 8 de fevereiro, Pedro Teotónio Pereira transmite a Salazar que soubera, por telefonema de D. Filipa, da primeira gravidez da duquesa de Bragança. Em julho de 1950, António Ferro – que acabara de iniciar funções como ministro de Portugal em Berna – descreve em carta a Salazar a família e o lar de D. Duarte Nuno, considerando-os “modelares”.
A 21 de abril de 1950, a Assembleia Nacional revoga, por unanimidade, as leis do banimento de 1834 e de 1910 que impediam a residência em Portugal dos membros da família de Bragança. A 28 de maio de 1952, ao fim de uma viagem de carro de cinco dias, chegam a Portugal D. Maria Francisca, D. Duarte Pio e D. Miguel. Na fronteira de Vilar Formoso, aguardavam-nos as infantas D. Filipa e D. Maria Antónia. D. Duarte Nuno e o filho mais novo chegam a Portugal a 12 de agosto desse ano, tendo feito a viagem de carro.
“Recebi os meus diplomas de enfermeira antes de sair de lá [Brasil] e quero, mal chegue, pôr-me à disposição da Cruz Vermelha”, cita Paulo Drummond Braga, sobre essa entrevista concedida por Maria Francisca a um jornal português, em setembro de 1942, dias antes do casamento. Tendo trocado alianças aos 28 anos, segundo certa fonte, acreditava então que já não iria casar e achava-se disposta a seguir a vida religiosa. Mal sonhara que a sua união tinha o pendor de pacificar os descendentes de dois monarcas portugueses, os irmãos D. Pedro IV (1798-1834) e D. Miguel (1802-1866), encerrando para sempre uma querela que remontava a 1828-1834.
Casamento real. Do anel de noivado aos dois vestidos sem esquecer a tiara da rainha d. Amélia
D. Maria Francisca, nascida no Castelo d’Eu, em França, filha de Dom Pedro de Alcântara de Orleans e Bragança, príncipe do Grão-Pará e príncipe Imperial do Brasil, que renunciou aos seus direitos dinásticos para se casar com Srta. Elisabeth Dobrzensky de Dobrzenicz, filha de Jan Vaclav II, Conde de Dobrzensky, morre a 15 de janeiro de 1968 na cidade de Lisboa. É sepultada no Convento das Chagas de Cristo, em Vila Viçosa, o panteão dedicado às duquesas de Bragança. D. Duarte Nuno de Bragança morre em Lisboa a 24 de dezembro de 1976. É sepultado no Panteão dos Duques de Bragança, situado no Convento dos Agostinhos em Vila Viçosa.
Deixam três descendentes: Duarte Pio de Bragança (Berna, 15 de maio de 1945), Miguel Rafael de Bragança (Berna, 3 de dezembro de 1946), Duque de Viseu; e Henrique Nuno de Bragança (Berna, 6 de novembro de 1949 – 14 de fevereiro de 2017), Duque de Coimbra.
1995, Lisboa — D. Duarte Pio e Isabel de Herédia
Mais de um século depois do último casamento real em solo português, que uniu D. Carlos e D. Amélia, em 22 de maio de 1886, o país interrompe a sua marcha para seguir ao minuto a boda de D. Duarte (n. 1945) e Isabel Curvelo de Herédia (n. 1966). Ainda à distância do advento das redes sociais, o acontecimento tem transmissão na RTP1, e honras de capa da extinta revista do social Olá Semanário. Duzentas fotos ilustram o artigo sobre o “casamento do século”. E se o destaque vai para os momentos e toilettes mais bem conseguidos (com Maria Barroso, de azul claro, em nota positiva; Maria Cavaco Silva, de rosa claro, em sinal descendente; e muito boa gente a desconhecer ainda que “um smoking nunca entra na Igreja”), não faltam peripécias dignas de nota e da pena afiada dos críticos sociais – incluindo o famoso repórter Juan Chavez a ser apanhado pela notícia da súbita morte de Lola Flores, que obriga a mudar o plano de publicações.
Para a história passa o momento em que o apresentador Eládio Clímaco “chamou anónimo ao príncipe Filipe da Bélgica”, ou em que a condessa de Paris “andou perdida pelos vários andares do parque de estacionamento do CCB” no fim da festa. Para não falar de imprevistos com maior ou menor gravidade. O marquês de Fronteira “não resistiu a vir à porta fumar um cigarrinho no meio da missa”, Amália Rodrigues “sentiu-se mal e teve de sair a meio por ter esperado muito tempo em pé”, e que dizer de uma inesperada “segunda noiva”, como ficou conhecida a filha da condessa de Peniche e parente dos marqueses de Angeja, que, furando a regra primordial do dress code nestas ocasiões, “surgiu com um longo vestido branco e chapéu”. Por fim, “Miguel Esteves Cardoso fez uma saída determinada direto a uma multidão silenciosa, abriu os braços de repente e gritou ‘Viva o rei!’, galvanizando os ânimos da relva”.
Pelas 15h30 desse 13 de maio de 1995, já os Jerónimos se encontram à pinha com os cerca de três mil convidados — nas imediações, cresce a curiosidade e a presença popular. Anos mais tarde, o noivo haveria de confessar que não esperava tamanha adesão aos convites endereçados, facto é que a afluência espelha a resposta em peso à cortesia. “Convidei família, amigos, mas também convidei pessoas que me tinham convidado em tempos ou que tinham sido particularmente simpáticos comigo e com a minha mulher, do resto do mundo, portanto enviei muitos convites que estava certo que não vinham, da Ásia, até da Papua Nova Guiné, o problema é que vieram todos“, recordou em tempos ao programa “Perdidos e Achados”, da SIC.
Mais peculiar ainda é a trajetória de uma boda que começa com uma hesitação. “Tenho de pensar”, responde D. Isabel ao primeiro pedido de casamento do futuro noivo. O episódio é recordado no programa Dois às 10 da TVI. “Como ia dar uma volta à minha vida, tive de pensar bem se queria abdicar de uma certa liberdade”, disse Isabel Herédia, continuando: “Na altura, hesitei um bocadinho e o Duarte pensou que, se eu não quisesse, não era preciso. Aí eu fiquei ofendida. Aí era o Duarte a dizer que não”, explicou a duquesa de Bragança.
A renovação do pedido acontece agora num destino paradisíaco, a ilha Bela da Princesa, no Brasil. D. Duarte insiste no tema receando perder a noiva. “Tenho primos e bons amigos no Brasil e pensei ‘se calhar há ali qualquer coisa, então vou antecipar-me’”. Por fim chega a desejada confirmação. De resto, em vésperas do enlace, D. Duarte confessaria à SIC que até à data andara desencontrado da pretendente ideal. Apaixona-se facilmente?, perguntam-lhe. “Isso sim, mas nem sempre com raparigas casáveis.”
Há muito que os futuros marido e mulher se conhecem. O primeiro dos encontros deu-se em Angola, tinha o chefe da Casa Real então 28 anos, curiosamente a mesma idade de Isabel Herédia à data do casamento. “Conheço o meu marido desde os seis anos. Foi ele que me ensinou a nadar. As nossas famílias sempre foram muito amigas”, descreve a noiva, que viveu em África desde os dois anos, mudando-se depois para São Paulo. “Ficámos amigos muitos anos até uma altura em que percebemos que havia coisas mais interessantes a fazer do que ser só amigos”, acrescenta D. Duarte. Até à decisão final da noiva, que ponderou tudo o que deixaria para trás, passou um ano.
Gestora financeira até à sua boda, a noiva tem ainda um peculiar antecedente: é trineta do visconde de Ribeira Brava, um dos conspiradores do regicídio de 1908 que vitimou o rei D. Carlos e o seu herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe. Muitos outros detalhes, bem mais sumarentos, hão de nortear imprensa e curiosos até ao grande dia. Conhecida a notícia do noivado, o telejornal da RTP1 regista o primeiro beijo público do casal. E não faltou sequer uma insólita fraude, detetada a tempo por D. Duarte, segundo contou em 2020, no programa Júlia, da SIC. “Um brincalhão falsificou o convite. Depois recebi respostas de agradecimento de pessoas que não estavam convidadas”. O autor da partida haveria de confessar tudo, mas outras manobras ficariam por despistar. “Houve duas ou três pessoas que compraram o convite a quem não podia vir.”
Uma semana antes do casamento, conta a Nova Gente, os noivos são o centro das atenções num jantar que reúne 600 pessoas no palácio da Bolsa, no Porto. Dois dias depois, já em São Pedro de Sintra, a Nova Gente dessa semana recorda como receberam em casa uma embaixada da comunidade cigana, cujo representante haveria de ser convidado para o evento nos Jerónimos. “No mesmo dia, o algarvio Fernando Gavaia anunciava os segredos e a segurança do seu bolo de noiva, com 100 quilos” — e guardado pelo PSP na noite do fabrico, reza a revista.
Ainda nas vésperas do enlace, o casal assiste a uma corrida de touros à portuguesa, “uma das festas mais vivas da cultura popular”, e aos convidados oferecem também uma “esplêndida” festa equestre que senta nas bancadas “inúmeros príncipes” e “portugueses vindos de longe”, lê-se em Um Casamento na História de Portugal, com coordenação de Henrique Barrilaro Ruas (editora Rei dos Livros).
Queluz é o cenário escolhido pelos noivos para o banquete que oferecem, um evento precedido de um encontro simbólico com o povo de Timor. É em Queluz que D. Isabel faz por “acamaradar com raparigas universitárias” e por aqui desfilam (num ambiente que “reviveu grandes noites da Casa de Bragança”), os chefes das casas de Áustria-Hungria e da Itália e os príncipes herdeiros da Bélgica e do Luxemburgo, todos eles descendentes de D. Miguel I.
A noite começa com um chá servido no Palace Hotel, seguido de uma exposição realizada pela Escola Portuguesa de Arte Equestre e depois um grupo de timorenses interpreta diversas danças típicas, com motivos relacionados ao casamento e à maternidade. Realiza-se ainda um concerto realizado por vários grupos musicais de estudantes, no final do qual é servido o jantar, nas Salas de Óculos e Música do Palácio.
E D. Duarte, estaria preparado para ter uma nora de Hollywood? “Absolutamente, não”
No grande dia, enfim, Duarte Pio sai do Colégio do Bom Sucesso à hora prevista, 15h38, e chega num descapotável, escoltado por cavaleiros do Colégio Militar. “Tinha pedido para não se politizar, mas as pessoas às vezes excedem-se um pouco”, brinca o noivo à chegada à entrada principal, perante os gritos de aclamação, escutado pela RTP na sua cobertura especial. Fiel à tradição, D. Isabel chega ao cair do pano do cortejo de ilustres, e levanta o véu para saudar a multidão. Pelas quatro da tarde, arranca a cerimónia. “Marca-me a quantidade de pessoas que estavam lá fora, e da alegria que se gerou no país”, diria mais tarde a noiva no Perdidos e Achados. “A CNN passou um quarto de hora do casamento, foi uma promoção muito grande”, acrescentaria D. Duarte.
Da Europa, África e América, estão presentes elementos dos povos amigos e grande número de portugueses vindos de todo o mundo. Com o Papa a enviar um especial bênção apostólica, a Igreja Católica faz-se representar pelo núncio de sua santidade, do cardeal patriarca e arcebispo primaz e ainda pelos bispos do Porto e de Bragança. À grande festa portuguesa acorre a descendência de D. Miguel I, ou pelo menos de D. João VI (Portugal, Brasil, Áustria, Itália, Luxemburgo, Bélgica e Liechtenstein) e ainda as duas rainhas da Bulgária e o Rei dos Zulus.
Casamento real. Do anel de noivado aos dois vestidos sem esquecer a tiara da rainha d. Amélia
No exterior do monumento, os protestos são protagonizados pelo Partido Socialista Revolucionário, que pouco depois estaria entre as forças que originaram o Bloco de Esquerda, e por um grupo de defesa das gravuras de Foz Côa, então em risco de desaparecerem com as obras de construção da barragem.
Com serenidade, a cúpula da República não falta à chamada, num vigoroso gesto diplomático que vê sentar nas primeiras filas as três figuras cimeiras do Estado português: o Presidente da República, Mário Soares, o presidente da Assembleia da República, António Barbosa de Melo, e o primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva. “Monarquia? Isto é a prova de que não está em causa a natureza do nosso regime”, diz o PM à chegada ao Mosteiro, questionado pela RTP.
“Senhor Presidente, chega quase à hora do noivo”, diz a repórter a Soares. “Ai, sim? Não sabia. Foi a hora que me designaram, quatro menos dez, e eu sou pontual.” Um republicano numa festa monárquica? “Republicano, socialista e laico, com muita honra. Mas eu não venho a uma festa monárquica, venho ao casamento de uma pessoa simpática, que é o senhor D. Duarte.” E terá o Presidente ficado incomodado com o “viva ao rei” que se escuta por aqui? “Nada, eu sou a favor da tolerância, é isso que me distingue dos ditadores.” Sobre o presente escolhido para os noivos, sacode responsabilidade na decisão: “Ah, isso não sei, foi a minha mulher que escolheu.”
A este elenco juntam-se vários ministros e figuras como José Manuel Durão Barroso ou Alberto João Jardim. Num templo cheio, outros vultos testemunham a união. O casamento é celebrado “junto dos sepulcros do rei Venturoso, de Vasco da Gama e de Camões”. Manuel Herédia, a arquiduquesa Alexandra de Habsburgo e a princesa Cristina de Bourbon Duas Sicílias são os padrinhos da noiva. No final da cerimónia, um gesto de “alto simbolismo”: a nova duquesa de Bragança oferece o bouquet de rosas brancas e orquídeas à Padroeira e rainha de Portugal (como em 1646 a proclamou o Rei Restaurador).
À margem da carga histórica, boa parte das atenções centram-se, como seria de esperar, em pormenores como o vestido de noiva. Uma criação em zibelina, a mais nobre das sedas, com mangas e corpete bordado, luvas e na cabeça a tiara que pertenceu à rainha D. Amélia. “Lembro-me como se fosse hoje! Já a vestia antes do casamento. Conheço a D. Isabel muito bem e continuamos amigas. Dei-lhe meia dúzia de opções, todas ao seu gosto, e ela escolheu a que mais lhe agradou”, contou a costureira Laurinda Farmhouse, recordando um pedido especial: “Queria que os bordados tivessem uma característica do nosso país e os bordados do vestido dela tinham os motivos de Nisa. Deu-me muito gozo fazer o vestido, na altura era uma honra, desde 1886 que não havia um casamento real no nosso país”, recordou à revista Caras, vinte anos depois do evento. Infelizmente, a peça, com bordados de Nisa, teve um destino trágico. Guardada religiosamente no Alentejo, para escapar ao efeito nefasto da humidade de Sintra, acabou por ser alvo de um destruidor incêndio.
Os presentes para os noivos são muitos e variados — o Diário de Notícias da Madeira adianta que Hassan II de Marrocos esteve ausente, mas ofereceu um automóvel ao casal. Maria Teresa Martorrel Salgado, Ana van Uden e Francisca Curvello contam-se entre as pequenas damas de honor. Nos pajens, destaque para Francisco Chaves, Francisco Sampaio e Mello, António Bustorff e Nuno Van Uden.
Quanto ao ramo de noiva, foi apanhado por Maria Domingas, solteira, e “terrivelmente emocionada” com o que lhe calhou em sorte, regista a reportagem da RTP.
Se, à saída da igreja, estudantes estendem as capas negras para os noivos passarem, é nos claustros dos Jerónimos, pós cerimónia, que se realiza uma cocktail com direito a porto de honra e sessão de fotos. Aos jornalistas do canal público, Francisco Van Uden comenta a expressiva adesão popular. “Penso que excedeu as minhas expectativas. Foi um sintoma de que o povo português precisa de ter símbolos nacionais.” Igualmente sensibilizado, o padrinho do noivo elogia a “lindíssima” cerimónia. “Não me lembro de um casamento com tão bom gosto.” O senhor é o próximo?, perguntam a D. Miguel. “Não, não me parece, às vezes penso que numa próxima encarnação. Os videntes dizem que me vou casar com uma viúva rica, mas eu não acredito.”