Índice
Índice
Jorge Moreira deixou de trabalhar na Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM) em 2016, cerca de dois anos depois de ter visitado o Porto de Beirute para ver o estado de uma encomenda de nitrato de amónio que devia ter chegado à Beira, mas que nunca lá chegou. No início deste ano, cerca de sete anos depois dessa visita ao Líbano, o comerciante de nitrato viu o seu nome associado à explosão que causou mais de 200 mortos e mais 6.500 feridos, tendo as autoridades libanesas, através da Interpol, emitido um mandado de captura contra ele por uma série de crimes, entre eles o de ato de terrorismo e homicídio. Tudo foi entretanto arquivado e é uma incógnita se o Líbano ainda considera ou não o cidadão português suspeito. A investigação está num impasse, num país que anseia por respostas.
Um ano depois daquela que é considerada uma das maiores explosões não nucleares da história, que deixou o mundo perplexo com a sua brutalidade, muitas questões sobre este caso continuam sem resposta, enquanto os libaneses exigem justiça, embora tenham pouca esperança que tal venha a acontecer. Além de, até ao momento, não terem sido apuradas responsabilidades, sobretudo a nível político, as autoridades judiciais ainda não conseguiram determinar o que levou à explosão, continuando também envolto em mistério o verdadeiro destino das 2,7 mil toneladas de nitrato de amónio — um fertilizante usado na agricultura mas que, combinado com outras substâncias, pode servir para fabricar explosivos — que ficaram retidas no Porto de Beirute.
Ao Observador, o porta-voz da FEM explicou que a encomenda do nitrato de amónio foi feita pela empresa moçambicana que pertence à portuguesa Moura & Silva e tinha como destino clientes em Moçambique, mas que o material nunca pertenceu à FEM, uma vez que a carga não chegou à Beira como era suposto, não tendo sido feito o pagamento à Savaro Ltd, empresa que agiu como intermediária na compra do nitrato de amónio.
António Cunha Vaz acrescenta ainda que o ex-diretor técnico Jorge Moreira — que não quis prestar declarações ao Observador sobre este caso — ”tem a sua situação legal completamente resolvida” e que nunca foi chamado a prestar depoimentos, tendo sido o próprio “que se apresentou voluntariamente para depor” junto da Polícia Judiciária, em janeiro, quando foi emitido o mandado de captura pelas autoridades libanesas. Além disso, garante o porta-voz da empresa, também a FEM “não foi contactada pelas autoridades libanesas para depor mas desde cedo informou que forneceria todos os documentos relacionados com o processo”, reiterando que “a empresa não está a ser investigada em qualquer jurisdição”.
O Observador questionou a Procuradoria-Geral da República (PGR) para saber se, desde que o caso de Jorge Moreira foi arquivado, foi feito novo pedido de detenção e/ou extradição por parte das autoridades libanesas ou se têm sido trocadas cartas rogatórias entre Portugal e o Líbano, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo, tendo a PGR remetido apenas para o processo arquivado pelo Tribunal da Relação do Porto. Em vão foram também as tentativas de contactar o ministério da Justiça e a procuradoria-geral do Líbano sobre o estado da investigação.
Acusados de negligência e obstrução, políticos escondem-se na imunidade. Progressos na investigação “são nulos”
Se o verdadeiro destino do nitrato de amónio continua uma incógnita, falta também serem apuradas responsabilidades por um material tão perigoso ter ficado mais de seis anos retido sem condições de segurança, apesar dos avisos, com os libaneses e organizações não-governamentais (ONG) a exigirem respostas e a apontarem o dedo às autoridades e à classe política, que, um ano depois, continuam a travar a investigação.
Evidence in Beirut port explosion implicates authorities…
Daily Brief: https://t.co/i14nd7AusH pic.twitter.com/rTBSvxXxyW
— Human Rights Watch (@hrw) August 3, 2021
Essa é, aliás, a principal conclusão do relatório da Human Rights Watch publicado esta terça-feira, que acusa altos funcionários do governo, das forças de segurança e do Porto de Beirute de estarem conscientes dos perigos subjacentes à presença do nitrato de amónio num hangar e de o terem ignorado, o que revela a “negligência e obstrução à investigação“. A ONG aponta mesmo o dedo a altas figuras libanesas, como o Presidente Michel Aoun, o primeiro-ministro demissionário Hassan Diab, os ex-ministros Ali Hassan Khalil (finanças), Ghazi Zeaitar e Yousseff Fenianos (obras públicas e transportes), ou o diretor-geral de segurança, Abbas Ibrahim, ou o chefe dos serviços do Estado, Tony Saliba, por terem tido conhecimento de que o nitrato de amónio estava no Porto de Beirute, constituindo um enorme perigo, sem que tenham feito o suficiente para que a carga fosse retirada em segurança do local.
Todas estas figuras têm conseguido escapar ao poder judicial, uma vez que a sua imunidade ainda não foi levantada e não há sinais de que tal possa acontecer. Fadi Sawan, o primeiro juiz nomeado pelo ministério da Justiça libanês para chefiar a investigação, fez um requerimento para que a imunidade dos políticos fosse levantada, de forma a que estes fossem interrogados, e acabou afastado em fevereiro. Sawan foi substituído por Tarek Bitar, que, na linha do seu antecessor, prometeu levar os responsáveis à justiça e, contra as pressões políticas, também fez requerimentos para que a imunidade dos políticos fosse levantada, algo que tem esbarrado no parlamento libanês, que precisa de votar favoravelmente o levantamento da imunidade, para frustração da população libanesa, sobretudo dos familiares e das vítimas da explosão, que quer ver justiça a ser feita.
Autoridades libanesas não protegeram a população no porto do Líbano, conclui a Human Rights Watch
“Por um lado, há muita pressão para que os políticos abdiquem da sua imunidade, mas, por outro, também os políticos exercem muita pressão sobre o judicial para diluir as suas responsabilidades, de forma a que ninguém seja responsabilizado”, afirma ao Observador, a partir de Beirute, Imad Salamey, professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Lebanese American University, na capital libanesa. “No fim de contas, todos estão protegidos, seja pela elite ou por grupos religiosos, e isso faz com que o processo seja extremamente difícil e que seja praticamente impossível que seja feita justiça”, sublinha.
Este sentimento de frustração e falta de esperança quanto ao desfecho da investigação tem acompanhado os libaneses no último ano, que acumulam décadas de grande frustração em relação a uma classe política que veem como corrupta e profundamente dividida em fações, que tem impedido mudanças estruturais que tirem o país da miséria em que se encontra.
“Os progressos na investigação são nulos, porque ninguém se responsabilizou pela explosão, nem vai responsabilizar-se. Tem havido investigações, mas, na minha opinião, não vai dar em nada, porque somos governados por um sistema corrupto e criminoso”, afirma ao Observador Caroline De Albergaria Arbadji, portuguesa com nacionalidade libanesa, que vive no Líbano há 20 anos, por estes dias a passar férias em Portugal, não hesitando em culpar a “incompetência do Estado” libanês pela explosão em Beirute, razão invocada pelos familiares das vítimas da explosão, mas também por ONG, para exigirem uma investigação internacional.
Mais de metade da população vive abaixo do limiar da pobreza. Uma em cada três crianças com sinais de trauma
No dia 4 de agosto de 2020, Caroline De Albergaria Arbadji, que trabalha na Lebanese Autism Society, uma ONG que presta auxílio a pessoas com autismo, estava a passar férias em Portugal, mas conta que, quando regressou ao Líbano, se deparou com um cenário de destruição, que tornou o seu trabalho “praticamente impossível”, uma vez que os estragos nas instalações “foram gigantes”, sem esquecer o impacto da crise financeira no Líbano, que tornou as doações, fundamentais para o trabalho da ONG, praticamente nulas.
“Já estávamos a atravessar uma crise económica gigante e a explosão, no fundo, foi o culminar de toda esta situação catastrófica que já vivíamos”, lamenta Arbadji.
Se a situação no Líbano já era extremamente delicada em 2019, ano de grandes protestos no país para exigir melhores condições de vida e o fim da corrupção e do clientelismo na política, 2020 tornou tudo pior, primeiro com a pandemia de Covid-19, depois com a explosão. Hoje, o país está uma situação em que, segundo as Nações Unidas, mais de metade da população (55%) de cerca de seis milhões de pessoas — em que um quarto das pessoas são refugiadas, a maioria oriunda da Palestina e da Síria — vive abaixo da linha pobreza, tendo a libra libanesa desvalorizado 90% nos últimos dois anos e havendo escassez de alimentos, combustível e medicamentos.
A explosão no Porto de Beirute tornou tudo ainda mais difícil, destruindo inúmeros negócios que atiraram muitos libaneses para o desemprego e para a pobreza. De acordo com um relatório da UNICEF publicado esta terça-feira, após a explosão, sete em cada dez famílias pediram ajuda, nomeadamente dinheiro ou comida, sendo que 98% das famílias afetadas continua a necessitar de apoio. Além disso, duas em cada três famílias não têm acesso a cuidados de saúde ou a medicamentos desde a explosão, num contexto em que foi diagnosticado pelo menos um caso de Covid-19 num em cada quatro agregados familiares. Problemas que acrescem aos problemas de saúde mental, uma vez que, após a explosão, uma em cada três crianças revelou sinais de trauma psicológico, um número que sobe para quase metade entre os adultos.
One year on from the #BeirutBlast, 98 per cent of families affected are still in need.@UNICEFLebanon is calling for urgent action.https://t.co/qT6iWeiMH0
— UNICEF (@UNICEF) August 3, 2021
“O Líbano está entre a pobreza extrema e a miséria, devido à crise económica e à injustiça extrema. Sentimos que as autoridades não fizeram a sua parte”, diz ao Observador, a partir de Beirute, Carl Abou Malham, consultor empresarial que concorreu às eleições legislativas de 2018, embora não tenha sido eleito, pelo Lihakki, um movimento da sociedade civil que defende a democracia participativa, e que esteve muito ativo nos protestos de outubro de 2019 que levaram à demissão do então primeiro-ministro Saad Hariri.
A empresa britânica com alegadas ligações a Assad. O destino do nitrato de amónio era mesmo Moçambique?
Quando fala na “incompetência” do Estado libanês e acusa os políticos de serem corruptos, Carl Abou Malham dá precisamente como exemplo a investigação à explosão ao Porto de Beirute, recordando que, logo após a tragédia, o Presidente Michel Aoun prometeu resultados em “cinco dias”. E acusa os políticos de tentarem fugir da justiça, numa altura em que foram feitas 18 detenções, sobretudo funcionários do Porto de Beirute, entre eles diretor da alfândega, Badri Daher, e o diretor do Porto, Hassan Koraytem.
O que é que se passou mesmo em Beirute? Acidente ou ataque? Seis perguntas e respostas
“Acreditamos que os juízes estão a fazer o seu trabalho, mas quando pedem para interrogar deputados ou ex-ministros, os partidos bloqueiam. Até agora, só conseguiram chegar a figuras menores. Por isso, não acreditamos que a justiça local consiga fazer alguma coisa”, lamenta Malham, que acusa o governo libanês de “total falta de responsabilização”, questionando o que levou as autoridades a não agirem, apesar de terem sido avisadas de que o nitrato de amónio estava há vários anos no Porto de Beirute. “Ou são incompetentes, caso se tenha tratado de um acidente, ou então estão a tentar proteger o regime sírio ou o Hezbollah”, atira.
Logo após a explosão, a possibilidade de o Hezbollah — a organização política e milícia xiita libanesa apoiada pelo Irão que tem uma enorme influência no país — estar envolvida foi posta em cima da mesa, devido às suas atividades terroristas e fácil acesso ao Porto de Beirute, embora o grupo tenha recusado qualquer envolvimento. Já a possibilidade de o nitrato de amónio ser propriedade do regime sírio começou a ganhar força no início deste ano, depois de uma investigação do realizador libanês Feras Hatoum para a televisão local Al Jadeed ter associado a Savaro ltd, empresa a que foi feita a encomenda de nitrato de amónio, a pessoas próximas do regime de Bashar al-Assad.
Os três empresários próximos de Assad — George Haswani, Mudalal Khuri e Imad Khuri, com nacionalidade russa e síria e sob alvo de sanções dos Estados Unidos —, conforme explica a Al Jazeera, partilhavam a morada de algumas das suas empresas com a Savaro ltd, sediada no Reino Unido. Feras Hatoum descobriu que a diretora da Savaro ltd era a cipriota Marina Psyllou, que, à Reuters, disse que agia enquanto representante de outra pessoa, cuja identidade não podia revelar, o que aumentou as suspeitas sobre se se tratava de uma empresa fantasma.
Questionado pelo Observador sobre o papel da Savaro ltd na encomenda de nitrato de amónio feita pela FEM, António Cunha Vaz, porta-voz da empresa, explica que recorreram a um intermediário devido à dificuldade em chegar aos grandes importadores, devido aos preços praticados, tendo a Savaro ltd oferecido preços mais em conta e com a garantia de cumprir os prazos.
O nitrato de amónio encomendado pela FEM, com a Savaro ltd como intermediário, em 2013, veio da Geórgia e seguiu no navio Rhosus, propriedade do cidadão russo Igor Grechushkin, tendo feito um desvio para Beirute, onde foi arrestado devido a questões judiciais, tendo mais tarde sido abandonado, com a carga a ser transportada para um hangar no Porto de Beirute.
O porta-voz da FEM explica que Jorge Moreira, o então diretor técnico da empresa, foi meses depois, já em 2014, à capital libanesa para perceber se a carga seria ou não libertada para seguir até Moçambique. Ao obter resposta negativa, a FEM contactou novamente a Savaro ltd, que se comprometeu com uma nova encomenda de substituição, tendo essa sim chegado à Beira conforme tinha sido solicitado pela empresa moçambicana. Depois disso, Cunha Vaz, que garante que na altura não tinha conhecimento de eventuais ligações da Savaro ltd com figuras próximas do regime sírio, diz que não foram feitos mais negócios com aquele intermediário, tendo a FEM deixado de recorrer àquela empresa por ter encontrado melhores condições de negócio com outras empresas da área, tanto em prazo de entrega como em valores monetários.
As suspeitas em torno da Savaro ltd e das alegadas ligações com figuras próximas do regime de Bashar al-Assad têm dado força à tese de que o verdadeiro destino daquela carga poderia não ser Moçambique, mas sim Beirute, conforme se lê no relatório publicado esta terça-feira pela Human Rights Watch: “As provas até à data levantam questões sobre se o nitrato de amónio se destinava a Moçambique, como os documentos de embarque do Rhosus declaravam, ou se Beirute era o destino pretendido.”
Caso Beirute fosse mesmo o destino, ficam por responder algumas questões, nomeadamente para que seria utilizado aquele material, e por quem, numa altura em que a Síria enfrentava uma devastadora guerra civil. Acresce que um relatório do FBI, citado pela Reuters, concluiu que apenas 552 das mais de 2,7 mil toneladas de nitrato de amónio explodiram em agosto do ano passado, não existindo explicação para o que aconteceu ao resto do material, que até poderá ter sido roubado.
“Salvem o Líbano”, apela o primeiro-ministro à comunidade internacional
Um ano depois, impasse político mantém-se e Líbano continua sem governo
Enquanto estas questões sobre a explosão no Porto de Beirute continuam sem resposta, um ano depois da tragédia a instabilidade política mantém-se no Líbano, incapaz de formar governo desde que o primeiro-ministro Hassan Diab apresentou a demissão a 10 de agosto, seis dias após a explosão.
Desde então, Diab mantém o executivo em funções enquanto outros líderes políticos tentam formar um novo governo, mas têm falhado. O último a falhar esse objetivo foi Saad Hariri, o ex-primeiro-ministro que se demitiu na sequência dos protestos de 2019, mas que em outubro de 2020 foi incumbido pelo Presidente Michel Aoun de formar um executivo. Nove meses depois, e após divergências com o Presidente e sem o apoio necessário dos partidos, desistiu da tarefa, que cabe agora ao magnata Najib Mikati, também ele antigo primeiro-ministro por duas vezes, em 2005 e entre 2011 e 2014.
Um dos principais motivos que é apontado pelos analistas para a dificuldade da formação de governos no Líbano prende-se com a obrigatoriedade de os principais cargos terem de ser divididos entre as principais seitas religiosas do país: o Presidente é sempre cristão maronita; o primeiro-ministro, muçulmano sunita; e o presidente do parlamento, muçulmano xiita. Imad Salamey, da Lebanese American University, refere que, às divisões políticas entre grupos religiosos, é preciso acrescentar as disputadas regionais.
Najib Mikati, o homem mais rico no Líbano, foi encarregado de formar novo governo no país
“A primeira e mais importante dificuldade para a formação de um governo é o facto de o país estar a ser disputado por poderes regionais. Por um lado, o Irão sente que está em vantagem politicamente no país, e precisa de proteger o Hezbollah a todo o custo, daí serem relutantes em aceitar ou partilhar o poder com um governo pró-ocidental”, afirma o politólogo. “Por outro lado, os partidos pró-ocidentais e pró-árabes estão a pressionar por um governo que não seja de políticos, mas sim um governo de especialistas que levem a cabo reformas e as negociações com o Fundo Monetário Internacional para reestruturar a economia libanesa, e veem a presença do Hezbollah como um desafio para quaisquer reformas”, remata.
Ao contrário do que aconteceu com Saad Hariri, Najib Mikati conta com o apoio do Hezbollah (xiita) que, nas palavras de Salamey, “praticamente controla todo o processo político” e que o vê como um “líder sunita mais fraco, sem um apoio parlamentar tão forte nem as bases a nível nacional, nem com o mesmo apoio internacional que Hariri teve”.
Líbano. Primeiro-ministro designado desiste de formar governo
No entanto, Mikati ainda não conseguiu formar governo, e no final de um encontro com o Presidente Michel Aoun, na segunda-feira, admitiu que o processo estava a decorrer lentamente, o que deita por terra a possibilidade de o país ter um governo antes de se assinalar um ano da explosão de Beirute — uma data que os libaneses assinalam esta quarta-feira, entre a revolta contra um sistema político que não lhes está a dar respostas e a frustração e o sentimento de impunidade que ainda reina entre a classe política libanesa. É um país a colapsar a cada dia que passa.