Uma semana depois das explosões que arrasaram bairros inteiros em Beirute, causando 171 mortos e mais de 6 mil feridos, há ainda várias perguntas sem resposta – mas a propriedade das 2,7 toneladas de nitrato de amónio, que estiveram na origem do acidente, armazenadas no porto da capital libanesa, parece ser um dos enigmas mais difíceis de resolver. O vendedor, o armador, o comprador — uma empresa portuguesa com uma fábrica em Moçambique que só pagaria a encomenda se ela chegasse ao destino — recusam responsabilidades quando questionados. E quem sabia do perigo depositado durante seis anos no porto de Beirute?

De acordo com uma investigação levada a cabo pela Reuters, descobrir a quem pertencem os produtos químicos que explodiram na capital do Líbano revelou, afinal, uma intrincada história de documentação dispersa por dez países, incluindo Moldávia, Rússia, Geórgia, Portugal, Reino Unido, Panamá ou Moçambique, e e uma “teia de pequenas empresas obscuras” que se espalham pelo globo.

Segundo a agência noticiosa, a identificação clara da propriedade, especialmente de uma carga tão perigosa como a transportada pelo Rhosus, de bandeira moldava, quando navegou para Beirute há sete anos, é “fundamental para o transporte marítimo” – e isso, torna o desconhecimento do proprietário original num facto “incompreensível”. Na Moldávia, a Reuters descobriu, ainda, que o proprietário do Rhosus é a Briarwood Corp, com sede no Panamá.

Um navio russo apreendido e um impasse judicial que deixaram carga explosiva no porto de Beirute durante 6 anos

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Em Beirute, enquanto a dor e a raiva pelas explosões se transformam em agitação civil, há sinais de que a investigação prometida pelo governo libanês voltou a sua atenção para Rhosus e Grechushkin, o empresário russo que a tripulação considerava ser o seu dono. Uma fonte ligada ao processo revelou que, entretanto, Grechushkin já foi interrogado no Chipre, onde reside, relativamente à carga explosiva.

A Reuters revelou, ainda, que elementos dos serviços de informação libaneses alertaram o presidente e o primeiro-ministro, no mês passado, para o facto das 2.7 toneladas de nitrato de amónio, retidas no porto de Beirute, representarem um risco à segurança – e, em caso de explosão, terem a capacidade de destruir a capital.

O relatório da Direção Geral de Segurança do Estado sobre os eventos que levaram à explosão, e a que a Reuters teve acesso, incluiu uma referência a uma carta privada enviada ao Presidente, Michel Aoun, e ao primeiro ,inistro, Hassan Diab, com data de 20 de julho. O documento, que consta agora do relatório, resumia as conclusões de uma investigação judicial, iniciada em janeiro, que alertava para o facto dos produtos químicos precisarem de ser protegidos “imediatamente”.

“Havia o perigo de que esse material, caso fosse roubado, pudesse ser usado num ataque terrorista”, disse à Reuters um alto funcionário do Estado, que não quis ser identificado.“Eu avisei-os que se isto explodisse, destruiria Beirute”.

À agência, um assessor de Diab, cujo governo renunciou na segunda-feira, confirmou que o primeiro-ministro recebeu a carta no dia 20 de julho, e que a enviou para o Conselho Supremo de Defesa, para que a situação fosse avaliada em 48 horas. “O gabinete atual recebeu o documento 14 dias antes da explosão e agiu numa questão de dias. As administrações anteriores tiveram mais de seis anos e não fizeram nada. ”

Carga explosiva transportada sem seguro

O Rhosus atracou em Beirute, no mês de novembro de 2013, com vários problemas técnicos. Em julho desse ano, o navio esteve 13 dias detido pelas autoridades portuárias em Sevilha, Espanha, depois de terem sido detetadas várias deficiências, incluindo corrosão na área do convés ou motores auxiliares deficientes, isto de acordo com dados de navegação. A navegação só foi retomada depois da empresa Maritime Lloyd emitir um certificado de segurança de construção, o que obrigaria a uma inspeção do navio – e que nunca foi confirmada.

Teimuraz Kavtaradze, um inspetor da Maritime Lloyd, com sede na Geórgia, (e que não está entre as empresas de inspeção mais relevantes) não conseguiu confirmar à Reuters se a empresa chegou a dar aos funcionários portuários de Sevilha os documentos referentes à inspeção. Contactado pela agência, ninguém ligado ao porto de Sevilha se mostrou disponível para comentar.

“As mercadorias eram transportadas de um país para outro e acabaram num terceiro país sem que ninguém se assuma como proprietário das mercadorias. E acabaram aqui porquê?”, questiona Ghassan Hasbani, ex-vice-primeiro ministro libanês e figura da oposição, sem obter uma resposta clara.

O mesmo acontece com a Reuters. Todas as pessoas ligadas ao carregamento, e com quem a agência falou, negaram conhecer o proprietário original da carga, ou simplesmente se recusaram a responder às questões colocadas. Entre os que alegaram desconhecimento, estão o capitão do navio, o fabricante georgiano de fertilizantes que produziu a carga e a empresa que a encomendou, a Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM).

Beirute. Carga tinha como destino Moçambique e foi substituída por outra encomenda

Questionada sobre o assunto, a FEM (detida pela empresa Moura, Silva & Filhos, com sede na Póvoa de Lanhoso, distrito de Braga) confirmou que encomendou as 2,7 toneladas de nitrato de amónio, salientando que a carga apreendida pelas autoridades libanesas foi substituída por outra remessa. A empresa não era proprietária da carga na altura porque tinha concordado em pagar apenas na entrega, segundo o seu porta-voz citado pela Reuters, António Cunha Vaz.

A encomenda foi feita pela FEM, em 2013, à empresa Savaro Lta, da Geórgia, e o local de descarga previsto era o porto da Beira, em Moçambique. Uma vez que o navio ficou retido em Beirute, por ordem das autoridades locais, aquela carga “nunca foi entregue”. Perante o incidente, a Savaro acabou por enviar uma nova carga de nitrato de amónio, através de outro navio. As autoridades moçambicanas reafirmam que desconheciam o carregamento com destino ao país porque o Rhosus não chegou a atracar na Beira.

As investigações da Reuters levantam, ainda, outras bandeiras vermelhas. De acordo com as convenções marítimas internacionais e algumas leis nacionais, as embarcações comerciais são obrigadas a ter um seguro para cobrir várias situações, como danos ambientais, perda de vidas ou ferimentos causados ​​por naufrágios ou derramamentos de carga. No entanto, o Rhosus não tinha seguro, de acordo com duas fontes ligadas ao assunto. O capitão russo do navio, Boris Prokoshev, contactado por telefone pela Reuters, admitiu ter visto o certificado do seguro, mas não poderia atestar sua “autenticidade”. A agência também não conseguiu obter uma cópia dos documentos do navio.

A investigação levou a Reuters até ao encalço do ex-empresário da firma de fertilizantes Rustavi Azot LLC (entretanto já dissolvida), Roman Pipia, que contou ter perdido o controle da fábrica de nitrato de amónio em 2016. Documentos oficiais, encontrados no Reino Unido, revelaram que a empresa foi forçada por um credor a leiloar todos os seus ativos naquele ano. A fábrica é agora administrada por uma outra firma, a JSC Rustavi Azot. Contactado pela Reuters, o atual vice-diretor, Levan Burdiladze, disse desconhecer o dono da carga. Já a Savaro Ltd, empresa registada no Reino Unido, recusou-se sempre a responder às perguntas da Reuters, através da sua diretora, Greta Bieliene.

No entanto, uma fonte familiarizada com o funcionamento interno dos negócios da Savaro Lta contou à Reuters que a firma se dedicava à venda de fertilizantes dos estados da ex-União Soviética para clientes em África.