Continuam a pairar dúvidas sobre a vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. A vacina foi a terceira a ser aprovada na União Europeia (recebeu a luz verde da Agência Europeia do Medicamento em 29 de janeiro, depois das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna). Porém, após vários dias de grande confusão sobre os efeitos secundários mais graves, o uso daquela vacina está suspenso em mais de duas dezenas de países, incluindo Portugal, enquanto a Agência Europeia do Medicamento realiza uma revisão científica adicional do produto, cujas conclusões deverão ser conhecidas nesta quinta-feira.
Afinal, há ou não motivo para desconfiar de que a vacina da AstraZeneca esteja associada a episódios de coágulos sanguíneos? A dúvida instalou-se nos mais de 215 mil portugueses que já receberam a primeira dose daquela vacina. A DGS pediu tranquilidade a quem foi vacinado e assinalou que nada indica que haja um risco associado. Ainda assim, a verdade é que a vacina está suspensa. Embora a decisão portuguesa esteja ainda marcada por alguma incerteza, um olhar sobre o modo como outros países optaram por suspender a vacina ajuda a perceber exatamente que detalhes estiveram na origem da decisão. Esta terça-feira, por exemplo, o Instituto Federal para as Vacinas e os Medicamentos da Alemanha publicou um documento de quatro páginas destinado a guiar os cidadãos pelo processo que levou à suspensão da vacina.
“Uma forma específica de trombose venosa cerebral grave associada à deficiência de plaquetas (trombocitopenia) e a hemorragias foi identificada em sete casos (até ao dia 15 de março de 2021) em associação temporal com a vacinação com a vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca”, começa por admitir a autoridade alemã do medicamento. Dessas sete pessoas (seis mulheres e um homem), que tinham entre 20 e 50 anos de idade, três morreram. O alerta estava dado: “Todos os casos ocorreram entre quatro e 16 dias depois da vacina”, o que “se afigurou como um padrão comparável”.
Em sentido oposto ao que tem sido reiterado pela Agência Europeia do Medicamento, o instituto alemão salienta que “o número destes casos depois da vacinação com a AstraZeneca é mais elevado, com significado estatístico, do que o número de tromboses venosas que ocorrem normalmente na população não vacinada”. Os cientistas alemães foram olhar para o universo de pessoas vacinadas com a vacina da AstraZeneca para perceber quantos casos de trombose seriam expectáveis nos 14 dias seguintes à vacinação se aquele efeito secundário não tivesse qualquer relação com a administração da vacina. Num universo de 1,6 milhões de doses administradas na Alemanha, “seria expectável cerca de um caso, e foram reportados sete”.
Este tipo de atuação é “uma ferramenta importante em farmacovigilância”, assinalam os cientistas alemães. Importa perceber “se um efeito adverso suspeito ocorre com maior frequência dentro de grupos de pessoas vacinadas do que dentro de grupos não vacinados (análise observado vs. esperado). Se a frequência de um acontecimento cai dentro da frequência esperada, o mais provável é que isto indique uma ocorrência coincidente no tempo com a vacinação. Porém, se a reação adversa observada ocorrer estatisticamente mais frequentemente no grupo de indivíduos vacinados, isto é um sinal de risco, ou seja, um indicador de uma possível relação causal com a vacinação”.
Além disso, acrescenta o instituto alemão, as idades dos mais afetados não batem certo com a população que, naturalmente, está em maior risco de sofrer uma trombose venal com desfecho fatal, associada a uma baixa contagem de plaquetas no sangue.
As autoridades de saúde alemãs recorreram, por isso, à consulta de um conjunto de especialistas em tromboses e em hematologia. “Todos os especialistas concordaram, unanimemente, que poderia ser discernido aqui um padrão e que uma ligação entre as doenças mencionadas e a vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca não era implausível”, sublinha o documento do instituto alemão.
Na última sexta-feira, dia 12 de março, já pelo menos nove países europeus tinham suspendido a administração da vacina da AstraZeneca, mas a Alemanha continuava a usá-la. Nesse dia, explicam os cientistas alemães, “a frequência de trombose venosa cerebral que ocorria entre indivíduos vacinados estava dentro de uma margem que seria esperada entre a população vacinada”. Porém, a identificação de duas novas situações na segunda-feira, dia 15, “colocou o número de casos observados muito acima do número esperado“. Por tudo isto, não restou outra alternativa às autoridades de saúde que não a suspensão temporária da aplicação daquela vacina, enquanto o instituto nacional e a Agência Europeia do Medicamento avaliam “como é que as novas descobertas afetam o perfil de risco-benefício” do produto.
O instituto alemão do medicamento aborda, no documento de quatro páginas, algumas das perguntas mais frequentes na mente dos cidadãos por estes dias. Por exemplo, se a clássica pílula contracetiva também acarreta o risco de trombose, porque é que há um tumulto tão maior em torno da vacina? A resposta é simples: a pílula contracetiva não só inclui na bula a referência a esse possível efeito secundário, como existem diferentes pílulas, com diferentes riscos, de que as mulheres são informadas pelo médico que lhes receita determinado medicamento. No caso da vacina da AstraZeneca, a possibilidade de trombose venosa, que agora se suspeita que possa ser um efeito secundário do medicamento, não está incluída na lista de potenciais efeitos adversos que consta da bula.
À pergunta-chave — fui vacinado com a AstraZeneca, e agora? —, os alemães respondem de modo semelhante ao que em Portugal já foi sugerido pela diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.
Com base nos casos registados na Alemanha, os cientistas do instituto federal do medicamento alertam para alguns sintomas a que é necessário estar particularmente atento: grandes dores de cabeça, com intensidade crescente, no período entre quatro e 16 dias após a vacinação com a AstraZeneca; bem como o aparecimento de pequenos pontos e manchas vermelhas na pele (petéquias), resultantes do sangramento. Nestes casos, é preciso procurar apoio médico de imediato. Em Portugal, o procedimento adequado é sempre o contacto direto com a linha Saúde 24 (808 24 24 24).
Ainda assim, os cientistas alemães alertam para o facto de este ser um possível efeito secundário muito raro nas pessoas vacinadas com o medicamento da AstraZeneca.
Por outro lado, o instituto federal alemão também adverte para um outro anseio que poderá surgir nesta altura: o de receber a segunda dose com uma vacina de outra farmacêutica. Os cientistas sublinham que não há, atualmente, dados que permitam afiançar a segurança da combinação de vacinas diferentes — nem sequer qualquer garantia de que a análise da Agência Europeia do Medicamento vá determinar a suspensão permanente da vacina da AstraZeneca. Isto significa que, uma vez que o período entre tomas determinado para a AstraZeneca é de 12 semanas, é necessário para já esperar “calmamente” pelos resultados da revisão científica da Agência Europeia do Medicamento.
Portugal foi o 19.º país a suspender a vacina da AstraZeneca
Quando foi aprovada a nível europeu, a vacina da AstraZeneca já tinha sido recebida com desconfiança por ter sido recebido luz verde com a indicação de que não deveria ser utilizada em pessoas acima dos 65 anos, por falta de informações dos ensaios clínicos relativamente a essa faixa etária. Agora, são os potenciais efeitos secundários mais graves a pôr vários países da Europa em alerta para os riscos da vacina.
Desde o início da controvérsia, a Agência Europeia do Medicamento tem insistido que nada indica uma relação direta entre a toma da vacina e esses efeitos secundários. “O número de eventos tromboembólicos em pessoas vacinadas não é maior do que o número observado na população em geral”, reiterou a Agência Europeia do Medicamento na semana passada, considerando que “os benefícios da vacina continuam a superar os seus riscos”. Em Portugal, o Infarmed replicou esta informação para justificar a continuação do uso da vacina da AstraZeneca, que estava destinada, por exemplo, à campanha de vacinação em larga escala de professores e funcionários das escolas.
Mas, em poucos dias, tudo mudou. Numa conferência de imprensa na segunda-feira, o presidente do Infarmed, Rui Ivo, anunciou que Portugal iria interromper de modo temporário o recurso à vacina da AstraZeneca devido ao princípio da “precaução em saúde pública”, com base nas reações adversas que haviam sido registadas noutros países da União Europeia, e que levaram a AEM a proceder a uma análise daqueles episódios. Vários especialistas discordaram em público sobre o caminho a seguir, argumentando que o risco da vacina é baixo em comparação com o grande benefício que representa — e defendendo que o produto devia continuar a ser administrado.
Já esta quarta-feira, a Organização Mundial da Saúde recomendou que a administração fosse retomada, uma vez que “os benefícios da vacina da AstraZeneca superam os riscos” que representa. “A vacinação contra a Covid-19 não reduz os casos de doença ou morte por outras causas. Eventos tromboembólicos são conhecidos por ocorrer com frequência. O tromboembolismo venoso é a terceira doença cardiovascular mais comum a nível global.”
Artigo corrigido às 17h de 17 de março. No terceiro parágrafo, era erradamente referido que as sete pessoas afetadas eram seis homens e uma mulher, quando na verdade se trata do oposto: seis mulheres e um homem.