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Já não cabem nos dedos de uma mão. O que têm em comum Jack Poulson, Christopher Wylie, Brittany Kaiser, Timnit Gebru, Sophie Zhang, Frances Haugen ou Peiter Zatko? Os percursos podem ser diferentes, mas todos conquistaram o estatuto de whistleblowers (em português, denunciantes), por terem trazido a público práticas até então desconhecidas pelas grandes tecnológicas.
A maior parte trabalhou numa big tech, como o Facebook, Google ou Twitter. No caso de Wylie e Kaiser, denunciaram a forma como a Cambridge Analytica, a empresa de analítica para a qual trabalharam, recorreu a dados obtidos no Facebook para influenciar a opinião de eleitores indecisos em momentos como as eleições norte-americanas de 2016 e o referendo que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia nesse mesmo ano. “O Brexit nunca teria acontecido sem a Cambridge Analytica”, vincou em 2018 Wylie ao El País para sublinhar a influência dessa atuação.
“O Brexit nunca teria acontecido sem a Cambridge Analytica”, revela ex-funcionário
Apesar de poder ter consequências pessoais, o que traz conflitos internos para quem denuncia, a perceção pública sobre os delatores é hoje diferente, reconhece a Whistleblower Aid, organização sem fins lucrativos que representa juridicamente denunciantes e que tem apoiado alguns dos whistleblowers do setor tecnológico, como Frances Haugen, ex-trabalhadora do Facebook (agora Meta), e Peiter “Mudge” Zatko, o “hacker” veterano que denunciou as fragilidades de segurança no Twitter.
Aprendeu-se, diz a organização, com as lições de quem veio antes, embora cada tipo de denúncia tenha riscos diferentes. É certo que o relato de Edward Snowden, ex-analista de sistemas da CIA que denunciou um esquema de vigilância massiva nos Estados Unidos, tem um contexto diferente, já que revelou informação considerada classificada pelos Estados Unidos, e não práticas de empresas privadas. As consequências a nível judicial são também elas distintas. Snowden, que abriu a porta a um olhar diferente sobre dados e privacidade, está exilado na Rússia, já que no país natal enfrenta uma sentença por espionagem que pode chegar até aos 30 anos de prisão. No caso dos denunciantes tecnológicos, podem existir processos e consequências judiciais, mas não acusações de crime contra o Estado. Fruto da aprendizagem com o passado, o primeiro conselho dado a quem pondera ser denunciante hoje em dia é sempre o mesmo: procurem um advogado antes sequer de tentar chegar à imprensa.
Quase dez anos depois de Snowden, para muitos denunciantes, apesar de todos os riscos e do escrutínio público, há vida no pós-denúncia. Ser whistleblower torna-se uma entrada no currículo e, em alguns casos, até passa a ser uma nova carreira à escala internacional, participando em conferências, escrevendo livros de memórias e até chegam a receber mais ofertas de trabalho.
Uma batalha de David contra Golias, que até gera ameaças físicas
Libby Liu assumiu as rédeas da organização Whistleblower Aid em 2021, depois de 16 anos a trabalhar na Radio Free Asia. “Sou uma ativista de direitos humanos”, resume a partir de Washington, nos EUA, nos primeiros minutos de videochamada com o Observador. Acredita que, na prática, sempre trabalhou com denunciantes. É que na génese da Radio Free Asia estava a transmissão de “notícias e informação — a verdade — a pessoas que vivem em ambientes repressivos, com governos autoritários, onde a comunicação social é controlada pelo Estado.”
Liu defende que todas as pessoas que trabalham na Radio Free Asia acabam por ser também whistleblowers, daí não ter estranhado o ambiente na Whistleblower Aid. As táticas que governos autoritários adotam para tentar reprimir quem quer a livre circulação de informação tem pontos em comum com “a necessidade de controlar o fluxo de informação e de tentar distorcer a realidade” de algumas tecnológicas, acredita.
Antes da Whistleblower Aid, Libby Liu esteve ligada à Open Technology Fund, também uma organização não governamental (ONG), que visa “proteger as vidas digitais das pessoas em 241 línguas”, responsável pelo Signal, um serviço de comunicação usado por quem quer transmissões seguras. Depois da decisão de parar para acompanhar os pais idosos – estávamos no início da pandemia de Covid-19, decide entrar na Whistleblower Aid. “Para mim, está na linha da frente das batalhas de David e Golias – e isso é sempre a minha praia”, conta, com um sorriso. “Acredito no impacto assimétrico de uma pessoa corajosa.”
Esta organização sem fins lucrativos, criada em 2017 por John N. Tye e Mark S. Zaid, nasceu da necessidade de proteção de Tye, também ele um denunciante. Em 2014, este ex-trabalhador do Departamento de Estado norte-americano revelou informação sobre as práticas de vigilância em equipamentos eletrónicos permitidas ao abrigo de uma ordem executiva. Quando trabalhava no departamento levantou preocupações sobre o tema, mas nada terá mudado, motivando a sua saída e consequente denúncia em público desta prática.
“São pessoas movidas pela sua consciência, porque não conseguem manter segredos de pessoas poderosas e que o público precisa de saber”, expressa Libby Liu, assumindo que os denunciantes “são essenciais” à sociedade, É que “especialmente quando há empresas que têm o poder e os recursos equivalentes aos de algumas nações – que é o caso das big tech”.
O apoio jurídico é uma parte vital do trabalho da Whistleblower Aid. “É muito importante que sejam guiados por aconselhamento legal, porque há leis nos EUA que protegem os denunciantes”. É que as empresas têm “duas ferramentas muito poderosas”: os NDA, que são acordos de confidencialidade, “que põem medo nos empregados”, pelo receio de que venham a ser processados; e as “cláusulas de arbitragem obrigatórias”, pela qual se recorre a entidade externa para mediar uma disputa entre empregador e empregado, que estão, em muitos casos, “orientadas para o empregador”. “Isso torna muito, muito difícil que um empregado de uma big tech se torne um whistleblower”, considera ao Observador Libby Liu.
Mas a Whistleblower Aid não se limita a prestar apoio jurídico. “É uma abordagem holística, desde a representação legal até à saúde mental, saúde física, segurança física… Tudo o que possa ajudar um denunciante.” Nos últimos anos, Liu diz que já foi necessário dar proteção física. “Temos tido casos em que já houve ameaças de morte… a whistleblowers das big tech ou aos nossos advogados. É preciso compreender que isto é uma batalha de David e Golias em que o Golias é mesmo muito, muito poderoso. E isso é aterrorizante.”
A aprendizagem anterior levou ao desenvolvimento de uma estratégia muito específica com Frances Haugen — representada por esta ONG –, que trouxe a público documentos internos do então designado Facebook a mostrar que a empresa de Zuckerberg dava prioridade ao lucro e não à segurança dos utilizadores. “Trabalhámos numa estratégia que incluía as organizações que analisam a responsabilização das plataformas e aprendemos as lições de todos os whistleblowers anteriores”. A “estratégia de impacto” beneficiou da discussão em curso na União Europeia sobre o Ato dos Serviços Digitais e o Ato dos Mercados Digitais, regras que exigem mais cuidado às tecnológicas. “Foi o momento perfeito para alguém saído do Facebook, com imensa informação, ter uma voz que representasse as pessoas e em nome dos utilizadores que vivem as consequências das grandes plataformas.”
Comissão Europeia apresenta duas propostas de lei para regular as gigantes tecnológicas
Há, depois da questão jurídica, a relação com os reguladores e legisladores. A estratégia implementada passa, ainda, por chamar os legisladores à questão, antes de a reputação de um whistleblower ser atacada pela empresa, tentando-se ao mesmo tempo ter o “público informado”.
“São todas estas áreas de pressão que, juntas, podem proteger um denunciante”, admite. Mas há mais. “Ter um denunciante como convidado do Presidente dos EUA num discurso sobre o Estado da União é um desincentivo poderoso para uma empresa pensar em processá-lo ou condená-lo”, reconhece, recordando a presença de Frances Haugen, no ano passado, no Congresso norte-americano no momento em que Biden discursou.
Denunciar um antigo empregador tem outras consequências – a nível psicológico e reputacional. “São pessoas que saíram da empresa onde estavam, foram descredibilizadas, atacadas online, e referidas como empregados descontentes”, enumera a CEO da Whistleblower Aid, lembrando situações, como aconteceu com o Twitter e Peiter Zatko, em que os currículos de denunciantes foram postos em causa pelas empresas. “Os denunciantes acabam alvo de amigos e de pessoas dentro da empresa de quem pensavam ser próximas. E ouvem: ‘estão a tentar destruir a empresa’ ou ‘não faças isso, és um de nós’”, aponta Libby Liu que chama a estas situações de “socialização intimidatória”. “Estas empresas deliberadamente tentam criar uma cultura corporativa de ‘nós’ contra ‘eles’. ‘Somos parte de uma família, estamos a fazer algo incrível, estamos a salvar o mundo’”, exemplifica, explicando que nessas empresas, desde o primeiro dia, é criado “um ambiente em que não se quer ser um traidor, não se quer trair a ‘família’.” Libby Liu sublinha que todas estas estratégias têm como propósito levar os empregados “socializar para valorizar” a empresa, “mais do que a sua consciência ou a verdade que o público deve conhecer”.
Mas há um cenário de “perigo sério” nas atividades que já foram denunciadas por vários dos ex-trabalhadores de grandes tecnológicas. Libby Liu defende que só quando as questões regulatórias trouxerem algo que deixe de incentivar “quem lidera estas empresas a valorizar o dinheiro em detrimento das pessoas” é que algo poderá mudar. “Ao longo dos anos, vimos de forma poderosa como más decisões feitas por uma mão cheia destas pessoas em grandes tecnológicas podem resultar em horror e tragédia em massa, violência étnica, suicídio entre adolescentes e depressão.”
As multas que são aplicadas às tecnológicas após as denúncias virem a público não têm o efeito mais adequado, argumenta. “Não significam literalmente nada para eles. São coisas que acontecem uma vez, são incluídas nos orçamentos”
“Identidade de 50% dos nossos clientes nunca vai ver a luz do dia”
Há vários caminhos até à Whistleblower Aid. Há denunciantes que chegam através da imprensa e também quem entre diretamente em contacto com a organização. No site da Whistleblower Aid não há avisos sobre cookies – a ideia é que quem visita o site seja rastreado o menos possível — e o incentivo à subscrição da newsletter é feito com um conselho: não use o email de trabalho. Também não há praticamente contactos diretos visíveis e é aconselhada a comunicação através do Signal para manter o sigilo. Proteger os equipamentos e os canais de comunicação é, nestes casos, imperativo. “A primeira coisa que fazemos é assegurar a proteção digital para que os nossos clientes não se exponham inadvertidamente ao risco”, argumenta Libby Liu.
“Como é que se protegem essas discussões e as provas quando se está a lutar contra as pessoas que criaram as plataformas?”, questiona a ativista.
“Tentamos baixar a temperatura, reduzir o stress e o trauma para focarmo-nos nas provas e nos objetivos de impacto que os denunciantes têm”, frisa a CEO da organização que representa os denunciantes. “Aquilo por que eles passam é provavelmente uma das experiências mais traumáticas das suas vidas.” Libby Liu defende que há pessoas que “destruíram as carreiras” em nome do interesse público. “Tentamos ajudá-los a nível laboral, a tentar proteger os seus perfis profissionais e pô-los em contacto com pessoas que compreendem aquilo que estão a fazer.” A questão económica pesa na equação. “Se as pessoas perdem os seus trabalhos não podem pagar a renda da casa, não conseguem pagar cuidados de saúde — que nos EUA temos de pagar por isso — há inúmeras coisas que aumentam o stress.”
A Whistleblower Aid pode ter representado alguns dos denunciantes mais recentes no setor tecnológico, mas a identidade de muitos outros vai manter-se no segredo dos deuses. “Diria que a identidade de pelo menos 50% dos nossos clientes nunca vê a luz do dia junto do público – para sua proteção”, garante Libby Liu.
Cada caso é um caso, também no que respeita a revelar (ou não) a identidade do denunciante. “Vemos sempre aquilo que é do melhor interesse para o cliente”, reforça a CEO da Whistleblower Aid. No caso de Frances Haugen e de Peiter Zatko, a revelação das respetivas identidades servia melhor o propósito, acredita a responsável.
“Com a Frances Haugen, a documentação e as provas que lançou foram desenhadas pelo Facebook para serem muito difíceis de perceber”, explica. “Têm eufemismos incríveis que escondem a verdade”, dando como exemplo o nome da equipa que investiga questões ligadas a publicações sobre genocídio na plataforma. “Chama-se ‘equipa de coesão social’, porque quando a coesão social desaparece podemos ter genocídio, assim como outros tipos de perigos sociais.” E ajudar um leitor, um jornalista ou um legislador a perceber o que aqueles documentos querem dizer necessitava de uma voz, defende Liu.
Já com Peiter Zatko, ex-responsável de segurança no Twitter, que no verão de 2022 revelou que a rede social tinha sérias fragilidades na proteção dos utilizadores e sistemas, o caso foi diferente. “Quem ele é, a vida dele… Isso tornou a divulgação da identidade importante, deu-lhe gravitas, importância. O Twitter tentou dizer que ele não tinha especialização, que era um mau empregado… Ele tinha o registo de uma vida inteira [de competência]”, vinca. “As pessoas diziam que ‘se o ‘Mudge’ disse que aquilo existia é porque é verdade’, por isso era muito importante que ele viesse a público.”
Zatko é conhecido junto da comunidade hacker como “Mudge” e é considerado um veterano. Em 1998, foi um dos jovens a comparecer perante o Senado, naquela que considerou que tinha sido a primeira vez em que o Governo dos Estados Unidos se dirigiu publicamente a hackers num contexto positivo. O testemunho esteve centrado no alerta de que era necessário dar importância às questões de segurança na internet. Na altura, as declarações do grupo de “hackers” ficaram conhecidas pelo aviso de que podiam derrubar toda a internet em meia hora.
O “hacker” da velha guarda que lançou mais uma acha para a fogueira do Twitter
Como tem sido o pós-denúncia de quem desafia as big tech?
O percurso dos denunciantes das grandes tecnológicas está longe de ser uniforme. Mas, numa primeira fase, há alguns pontos comuns com aquilo que acontece depois da denúncia: depois de a poeira assentar, há quem escreva livros com mais detalhes sobre o tema que denunciou e quem dê conferências em eventos ligados ao mundo da tecnologia.
É então possível que, quem denuncia um antigo empregador, consiga fazer disso carreira? Libby Liu, da Whistleblower Aid, acredita que em alguns casos, como o de Frances Haugen, isso seja possível. “É muito difícil para um denunciante revelar-se, divulgar informação, apresentar as provas, dar testemunhos e depois não estar envolvido em fazer com que as soluções funcionem.”
“Acho que é muito natural para uma pessoa, que tem um determinado conjunto de competências e um compromisso para com o bem público, fazer uma denúncia e levá-la para a frente.” E defende que os denunciantes que puderam revelar a sua identidade vão querer continuar a tirar partido da voz conquistada como whistleblowers para “continuar a tentar ter um impacto positivo.”
Christopher Wylie, um dos denunciantes da Cambridge Analytica, tem tirado partido do seu estatuto para alertar sobre a necessidade de olhar para os dados de forma diferente. O canadiano tornou-se um rosto conhecido quando fez chegar, em 2018, documentos ao jornal britânico Guardian e ao New York Times sobre o uso de dados de utilizadores do Facebook para alegada manipulação de momentos eleitorais. O cabelo colorido, o piercing no nariz e a forma direta como contou todo o enredo levaram-no a prestar testemunhos no Congresso dos Estados Unidos e, mais tarde, também no parlamento britânico, dada a suposta influência da Cambridge Analytica no referendo que ditou o Brexit. À denúncia sucederam-se participações em conferências, tendo estado, inclusivamente, no palco principal da Web Summit, em Lisboa, que tornou a manipulação de dados pessoais um dos temas quentes, com Wylie a admitir que o Facebook o tinha tentado processar.
Christopher Wylie: “O Facebook ameaçou processar-me a mim e ao The Guardian”
Depois das muitas conferências, Wylie tirou da manga outra carta também habitual no percurso de whistleblowers tecnológicos mais recentes: um livro. Lançado em 2019 “Mindf*ck: Cambridge Analytica and the Plot to Break America” (Mindf*ck: Cambridge Analytica e o plano para quebrar a América) entrou para a lista dos títulos mais vendidos. Do livro à inclusão na lista das 100 pessoas mais influentes da revista Time foi um passo. Hoje em dia, Wylie continua ligado à tecnologia e dados, mas num setor diferente: é responsável pela estratégia de tecnologia emergente da retalhista H&M. Ao mesmo tempo, continua a descrever-se como um ativista tecnológico e disponível para participar em conferências. Curiosamente, é representado pela Harry Walker, a mesma agência que gere a participação em conferências de Boris Johnson, o antigo primeiro-ministro do Reino Unido.
Wylie não foi o único a denunciar a Cambridge Analytica – também Brittany Kaiser, ex-trabalhadora da empresa de analítica, veio a público contar o que se passava dentro da companhia. Curiosamente, Wylie e Kaiser nunca se cruzaram enquanto trabalhavam na companhia. Cruzar-se-iam anos mais tarde no documentário “The Great Hack”, lançado em 2019, que visa explicar como os dados das redes sociais estavam a ser manipulados pela Cambridge Analytica.
Enquanto Wylie era um dos responsáveis pela área de investigação, o papel de Kaiser era o de ser diretora de negócio com uma visão mais alargada sobre a atividade da Cambridge Analytica. Em 2018, avançou informação ao jornal britânico Guardian e testemunhou no parlamento britânico sobre o que viu. Sucederam-se as participações em conferências: no verão de 2018 veio ao Porto participar na conferência Anarcha Portugal, uma das várias ocasiões em que tentou alertar para a importância da proteção de dados.
Um ano mais tarde, já em 2019, lançou um livro de memórias, chamado “Targeted: The Cambridge Analytica Whistleblower’s Inside Story of How Big Data, Trump, and Facebook Broke Democracy and How It Can Happen Again”. Nas várias entrevistas dadas para promover o livro, não dourou a pílula: “O Facebook é realmente a maior ameaça à nossa democracia, não são só os atores estrangeiros”, disse à CNBC.
Ainda com o lançamento do livro fresco, regressou a Portugal para uma passagem na Web Summit em 2019. Um ano depois do escândalo da Cambridge Analytica, deixava claro que o tema dos dados estava longe de estar resolvido, mas que via muito potencial numa tecnologia concreta: o blockchain, também chamado de protocolo de confiança. Depois de tudo o que viu na Cambridge Analytica, Kaiser criou uma organização, a Own Your Data Foundation, através da qual luta para garantir que os utilizadores são os donos dos seus próprios dados. Continua a ser oradora em conferências – uma participação num evento virtual pode custar entre 30 mil e 50 mil dólares –, mas, com uma guerra em curso na Europa, dedica-se à angariação de criptomoedas para ajudar a Ucrânia.
“A Brittany é uma amiga a sério da Ucrânia, a ajuda dela ao nosso fundo cripto e a promoção ao museu de NFT é enorme”, escreveu em maio de 2022 Alex Bornyakov, vice-ministro ucraniano da Transformação Digital, na rede social Twitter.
Have met in person with @OwnYourDataNow at @wef. Brittany is a real friend of Ukraine, her help with our crypto fund @_AidForUkraine and NFT-museum @Meta_History_UA promotion is enormous. I'm so glad to have caught up at last. You are more than welcome to Kyiv. pic.twitter.com/jJLAbFxm63
— Alex Bornyakov (@abornyakov) May 23, 2022
Também Jack Poulson, que em 2018 veio a público denunciar a Google, antiga empregadora, não se afastou do setor. Poulson trabalhou como cientista de investigação na gigante de internet até que descobriu que a empresa tinha um projeto para o mercado chinês. Protestou internamente, mas sem efeito, e decidiu partilhar a informação com o mundo.
O cientista descobriu o projeto de um motor de pesquisa só para a China, conhecido internamente como Dragonfly, que, pela informação revelada pelo site The Intercept em 2018, teria a funcionalidade de censurar informação que entrasse em conflito com as regras do regime chinês.
Poulson também testemunhou no Senado norte-americano e, após a pressão de empregados da companhia e da opinião pública, estes planos da Google para a China acabaram na gaveta. Mas a tarefa não chegou ao fim. Lançou em 2019 uma organização sem fins lucrativos, a Tech Inquiry, que defende que os programadores “com consciência” devem ter uma forma fácil de divulgarem quando sentem que a empresa está a ultrapassar limites éticos. “Acredito que os trabalhadores tecnológicos precisam de consentimento informado sobre o trabalho que pode originar mortes ou supressão de direitos humanos ou liberdades”, declarou em 2019 Jack Poulson ao Guardian.
Poulson não é o único whistleblower saído da Google. Timnit Gebru era investigadora na área da inteligência artificial e chegou a ser co-diretora de ética para a inteligência artificial na companhia americana. Era um nome forte na indústria pelo trabalho que fez para desenvolver uma IA menos preconceituosa. Não chegou a bater com a porta; defende que foi pressionada a demitir-se, na sequência da publicação de uma pesquisa sobre os efeitos maliciosos da inteligência artificial. Denunciou que a empregadora estava a tentar silenciá-la.
“Fui despedida”, escreveu no Twitter em novembro de 2020. Contou à Wired que a tecnológica lhe tinha feito um ultimato, pressionando-a para que retirasse o nome da investigação. Isso não aconteceu e o despedimento foi acelerado. Mais tarde, também Margaret Mitchell, outro nome forte da área que trabalhava na equipa de Gebru, foi afastada. As demissões foram uma faísca, motivando cerca de 200 trabalhadores da Google a demonstrarem publicamente apoio às investigadoras e a pedir “integridade na pesquisa e liberdade académica”.
Google despede mais uma investigadora da equipa de ética em inteligência artificial
Gebru não baixou os braços. Ao mesmo tempo que dá conferências em diversas faculdades, dos Estados Unidos à Etiópia, também lançou um instituto para o uso responsável de IA. Chama-se DAIR, a sigla para “Distributed Artificial Intelligence Research”, em português investigação distribuída de inteligência artificial. “Em vez de lutar a partir de dentro, quero mostrar um modelo para uma instituição independente com um esquema diferente de estruturas de incentivo”, contou à Wired em 2021.
Mas o final de 2020 não trouxe apenas as notícias sobre o despedimento de Gebru da Google. Em dezembro desse ano, Sophie Zhang partilhou com a imprensa um memorando sobre práticas do Facebook. Foi despedida. A sua função, enquanto trabalhou no Facebook, era a de encontrar e eliminar contas falsas e gostos na rede social que estivessem a ser usados como tentativa de manipular eleições a nível global. Zhang denunciou que, em países como a Índia, México, Afeganistão ou Coreia do Sul, essa manipulação era colocada em prática, mas os seus avisos internos não produziram efeito. O Facebook nada fez perante o alerta de Zhang. “Sei que tenho sangue nas minhas mãos agora”, terá escrito na publicação.
A identidade de Zhang foi revelada pelo jornal Guardian, a quem contou toda a história. Nos primeiros encontros com a jornalista, ia sem qualquer equipamento tecnológico – contou mais tarde que deixou todos os dispositivos em casa de amigos, com receio de ser “apanhada”. As eleições norte-americanas de 2020 pressionaram a cientista de dados a fazer a denúncia pública, alegando não querer uma repetição do que aconteceu em 2016.
Deu várias entrevistas e demorou quase um ano a contar toda a história, como fez à MIT Technology Review. Diz-se profundamente introvertida e não é particularmente fã de dar entrevistas a meios de comunicação de todo o mundo. Mas diz que não está arrependida. “Alguém tinha de assumir a responsabilidade e fazer algo para proteger as pessoas.”
E os denunciantes mais recentes?
Os casos de denúncias de big techs mais recentes passaram por Frances Haugen e Peiter Zatko, ambos representados pela Whistleblower Aid. Frances Haugen denunciou o Facebook, partilhando uma série de documentos, conhecidos como “Facebook Files”, que mostravam, em particular, que a empresa de Zuckerberg dava prioridade ao lucro em detrimento da segurança dos utilizadores.
Pouco tempo depois da denúncia, em setembro de 2021, o Facebook anunciou a mudança de nome – ia passar a ser Meta, com muitos planos para o metaverso. Em Lisboa, na Web Summit, pouco tempo depois da denúncia, Haugen criticou a alteração, reafirmando que a empresa preferia investir em novos negócios e nos jogos do que olhar para a proteção dos utilizadores. A resposta da empresa chegou rapidamente aos jornais que cobriram a conferência nesse ano: “uma comparação absurda e uma falsa escolha”. “ Não é como se uma companhia tivesse de optar apenas no desenvolvimento de uma nova tecnologia ou no investimento em segurança. Obviamente podemos fazer ambas as coisas ao mesmo tempo – e estamos a fazê-lo”, garantiu, então, um porta-voz da empresa.
Haugen testemunhou no Senado norte-americano e até foi ouvida no parlamento britânico. Diz que nunca teve intenção de se tornar uma denunciante e assim que terminou o turbilhão mudou-se para Porto Rico, onde vive junto ao mar. Continua a participar em diversas conferências onde fala sobre ética, ativismo e dados. De acordo com o site da AAE Speakers, tê-la num evento pode custar até 30 mil dólares ou até 20 mil se for uma participação virtual. Lançou entretanto uma organização não governamental para tentar responsabilizar as big tech pelas práticas nas redes sociais. Ainda este ano, vai lançar um livro: “The Power of One”, onde vai contar como “arranjou força para dizer a verdade e denunciar o Facebook”. Tem lançamento previsto para junho.
Peiter Zatko é agora, além de um veterano do hacking, mais conhecido como o denunciante do Twitter. Veio a público numa altura em que a empresa estava em pleno litígio com Elon Musk. Agora, Musk é o dono da rede social, mas os tempos agitados parecem estar longe de acabar.
“Mudge” prestou declarações no Senado norte-americano, onde foi questionado sobre as fragilidades de segurança e até ingerência de entidades estrangeiras nos sistemas do Twitter. A empresa negou sempre as acusações do seu antigo chefe de segurança, que passou cerca de ano e meio no cargo até ser despedido. Na audição, perante os senadores, retratou a rede social como uma empresa praticamente “sem portas”, onde demasiadas pessoas tinham acesso a imensa informação.
Agora vai juntar-se à empresa de segurança Rapid7, reportando diretamente ao CEO da empresa. Vai aconselhar empresas nesta área, naquele que vai ser o primeiro emprego desde que denunciou o Twitter. “Para clarificar, isto não é a tempo inteiro e não é exclusivo. Não vai mudar nada nas relações que tenho com outras organizações”, escreveu na rede social. Tudo isto será conjugado com a participação em conferências, embora não seja visível online quanto poderá custar ter este denunciante e especialista de segurança num evento.