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Foi uma morte lenta, que durou exatamente sete dias e foi consumada esta quinta-feira. Uma semana depois de ter pedido a demissão — e depois de um conjunto de tentativas falhadas para, a pedido do Presidente italiano, ressuscitar a coligação que suportava o seu governo tecnocrático — o primeiro-ministro de Itália, Mario Draghi, demitiu-se definitivamente esta quinta-feira. Vai manter-se em funções para a gestão corrente do país até às eleições legislativas, que já estão agendadas para o dia 25 de setembro, mas a ordem do Presidente Sergio Mattarella já foi dada: o parlamento italiano foi dissolvido e o governo de Draghi morre após um ano e meio em funções.
A semana de crise política que se viveu em Itália foi marcada pela confusão e imprevisibilidade: um pedido de demissão que não foi aceite; um parceiro de coligação que rompeu com a aliança; exigências governativas inconciliáveis com os desejos dos vários parceiros de coligação; uma moção de confiança aprovada tecnicamente, mas sem força política; e, finalmente, um segundo pedido de demissão, agora aceite. Eis o filme dos acontecimentos de uma semana de crise política em Itália.
14 de julho. O primeiro pedido de demissão de Draghi
A crise política em curso em Itália foi aberta há exatamente uma semana, no dia 14 de julho, quando o primeiro-ministro, Mario Draghi, apresentou a sua demissão do cargo ao Presidente da República, Sergio Mattarella, e este não a aceitou. Na origem do pedido de demissão, esteve a convicção clara, por parte de Draghi, de que a ampla e diversa coligação que suportava o seu governo estava a colapsar — e que já não era possível manter o governo a funcionar como até ali.
Mario Draghi é primeiro-ministro de Itália desde fevereiro de 2021, altura em que foi convidado pelo Presidente italiano, Sergio Mattarella, para reunir amplo apoio parlamentar em todo o espectro político e liderar um governo tecnocrático de unidade nacional, destinado a colocar um ponto final na crise política que se vivia em Itália no início de 2021, em grande parte motivada pelas profundas discórdias dentro da coligação governamental da altura a propósito da resposta económica à pandemia da Covid-19.
Draghi conseguiu reunir o apoio de uma grande parte das forças políticas italianas, em todos os pontos do espectro político, e lidera desde essa altura um governo de unidade nacional, que reúne o Partido Democrático (centro-esquerda), o Itália Viva (centro, de Matteo Renzi), o Livres e Iguais (esquerda), o Força Itália (centro-direita, de Silvio Berlusconi), a Liga (extrema-direita, de Matteo Salvini) e o Movimento 5 Estrelas (de Giuseppe Conte), entre outros partidos mais pequenos. Ao longo dos últimos meses, contudo, começaram a surgir dentro da ampla coligação fortes divisões, traduzidas sobretudo num crescente afastamento do Movimento 5 Estrelas.
A tensão culminou, na semana passada, com a abstenção do Movimento 5 Estrelas (M5S) numa votação no Senado sobre a aprovação de um pacote de ajuda financeira às famílias e às empresas italianas para fazer frente à inflação crescente. A abstenção do M5S, sob o argumento de que as medidas não são suficientes para apoiar os italianos, não contribuiu para o chumbo do pacote, que foi aprovado na mesma, mas foi decisiva para Mario Draghi: não era possível que um partido que faz parte da coligação governamental não apoiasse uma medida do governo.
De imediato, Mario Draghi apresentou a demissão ao Presidente da República, Sergio Mattarella, que não a aceitou. Antes, pediu ao primeiro-ministro que se apresentasse perante o parlamento italiano e explicasse aos senadores aquilo que se passa dentro do seu governo. Só depois de um pronunciamento parlamentar poderia ser tomada uma decisão relativa à continuidade ou não do governo Draghi.
20 de julho. A moção de confiança aprovada sem o apoio dos parceiros
A presença de Mario Draghi no parlamento italiano foi marcada para uma semana depois do pedido de demissão recusado. Na quarta-feira, dia 20 de julho, deveria comparecer no Senado — a câmara alta do parlamento —, e no dia seguinte perante a Câmara dos Deputados, a câmara baixa. Perante os parlamentares, Mario Draghi deveria explicar aquilo que o seu governo fez e perguntar aos membros de ambas as câmaras se continuavam a confiar nele para conduzir os destinos do país. Sergio Mattarella queria esgotar todas as hipóteses de continuidade para evitar que o país entrasse em nova convulsão política num período crítico da atualidade mundial — a guerra na Ucrânia e a crise económica subsequente, que se soma à já difícil recuperação económica do pós-pandemia, marcada pela aplicação do plano de recuperação europeu.
Mario Draghi chegou ao Senado com um longo discurso preparado. “O Presidente da República confiou-me a tarefa de formar um governo para lidar com as três emergências que Itália enfrentava: a pandémica, a económica e a social. Um governo — e isto foram as suas palavras — de alto perfil, que não se deveria identificar com nenhuma fórmula política. Um governo que enfrente rapidamente as emergências graves que não podem ser adiadas. Todos os partidos, à exceção de um, decidiram responder positivamente a este apelo. No discurso inaugural que fiz nesta câmara, referi explicitamente o ‘espírito republicano’ do governo, que seria baseado na premissa da unidade nacional”, começou por dizer.
“Nos últimos meses, a unidade nacional tem sido a melhor garantia da legitimidade democrática deste executivo e da sua eficácia. Acredito que um primeiro-ministro que nunca se apresentou perante os eleitores tem de ter o maior apoio possível no parlamento. Esta assunção é ainda mais importante num contexto de emergência, no qual o governo tem de tomar decisões que afetam profundamente as vidas dos italianos“, acrescentou o governante italiano, prosseguindo com uma longa apresentação daquilo que o governo fez nos últimos meses, incluindo no que toca às medidas de combate à pandemia, de crescimento económico, de apoio à Ucrânia e de aplicação dos fundos europeus.
Porém, Draghi lembrou também os momentos em que o apoio ao seu governo começou a fraquejar — não apenas no que respeita a reformas internas, mas também nas “tentativas de enfraquecer o apoio do governo à Ucrânia e de enfraquecer a nossa oposição ao plano do Presidente Putin“.
No entender de Draghi, “o voto da última quinta-feira”, ou seja, a já referida abstenção do M5S, “certificou o fim do pacto de confiança que mantinha esta maioria unida. Não votar favoravelmente à confiança num governo de que se faz parte é um gesto político claro, que tem um significado óbvio. Não pode ser ignorado, porque seria equivalente a ignorar o parlamento. Não é possível contê-lo, porque isso significaria que qualquer pessoa o poderia repetir. Não é possível minimizá-lo, porque surge ao fim de meses de ultimatos”. Assim, acrescentou: “a única forma, se queremos continuar juntos, é reconstruir este pacto do zero, com coragem, altruísmo, credibilidade. São, na sua maioria, os italianos quem o pede.”
O primeiro-ministro salientou que é “impossível ignorar” os apelos da opinião pública e de vários setores para que o atual governo continue. Por isso, o seu discurso apresentou um autêntico programa de governo, descrevendo com detalhe as suas prioridades para os próximos anos, e deixou o desafio aos membros do parlamento: “Precisamos de um novo pacto de confiança, sincero e concreto, como aquele que nos permitiu até agora mudar o país para melhor. Aos partidos e a vocês, parlamentares: estão prontos para reconstruir este pacto? Estão prontos para confirmar o esforço que fizemos nos primeiros meses, e que depois se desvaneceu? Aqui, nesta câmara, estamos hoje neste ponto da discussão, apenas e só porque os italianos o pediram. A resposta a estas perguntas não deve ser dada a mim, mas a todos os italianos.”
Draghi apresentava, assim, as suas condições para governar. O antigo líder do BCE não queria um “Draghi bis”, ou seja, um segundo governo liderado por si, mas a continuação deste primeiro governo, com as mesmas linhas orientadoras, as mesmas prioridades e as mesmas figuras-chave.
Ao discurso de Draghi seguiu-se um longo período de debate, com os vários partidos a pronunciarem-se sobre a sua visão para o futuro do país. A favor de Draghi, o Partido Democrático, liderado por Enrico Letta, defendeu a continuidade do governo. Por outro lado, a Liga, de Matteo Salvini, e o Força Itália, de Silvio Berlusconi, deixaram bem claro que não votariam a favor da continuidade deste governo. Pelo contrário, queriam um novo governo Draghi, assente numa renegociação dos apoios parlamentares que deixasse de fora o Movimento 5 Estrelas, cuja abstenção uma semana antes fizera precipitar a crise política — algo que Draghi não pretendia.
Para o fim, ficaram reservadas as votações. Em cima da mesa foram colocadas duas resoluções parlamentares. Uma delas, apresentada unicamente pelo senador Pier Ferdinando Casini, incluía apenas uma frase: “O Senado, tendo ouvido a comunicação do presidente do Conselho de Ministros, aprova-a.” A outra, apresentada pela Liga e subscrita pelo Força Itália e pela UDC, era mais extensa e expressava o apoio a um novo governo Draghi, mas sem o M5S. Sem disponibilidade para ceder nas suas condições de governação, Mario Draghi pediu que fosse feita uma votação de confiança em relação à primeira resolução, apresentada por Casini.
Perante a decisão de Draghi, a Liga e o Força Itália anunciaram que não estariam presentes na votação daquela moção, sustentando que apenas estavam disponíveis para votar na sua própria resolução. O M5S também anunciou que não quereria votar aquela moção, o que chegou a ameaçar a própria votação por falta de quórum. Para resolver o problema, os senadores do M5S mantiveram-se na sala do Senado, mas recusaram participar na votação. No final, e feitas as contas, a moção de confiança recebeu apenas 95 votos a favor e 38 contra, num universo de 192 senadores presentes no momento da votação. Formalmente, a moção de confiança foi aprovada e Mario Draghi continuou a ter plenos poderes para se manter como primeiro-ministro do governo que liderava até aqui — mas a falta de força política daquele voto (o Senado é composto por 321 elementos) tornou praticamente inevitável a demissão do primeiro-ministro.
Ainda na quarta-feira, a imprensa italiana começou a avançar que Draghi planeava reunir-se com o Presidente Sergio Mattarella já na manhã desta quinta-feira para lhe apresentar a demissão depois de não ter conseguido cumprir aquilo que Mattarella lhe tinha pedido: voltar a unir os partidos da coligação. Contudo, a verdade é que Draghi continuava, em termos formais, a ter legitimidade governativa, pelo que deveria apresentar-se esta quinta-feira na Câmara dos Deputados para uma eventual nova moção de confiança que lhe garantisse a manutenção no governo. A previsão da maioria dos analistas era a de que Draghi usaria essa breve aparição perante os deputados para lhes comunicar, simplesmente, que se iria demitir.
21 de julho. A demissão, a dissolução do parlamento e a marcação de novas eleições
Itália acordou esta quinta-feira com uma certeza: o governo de unidade nacional que Draghi liderou durante ano e meio já não existia. Por isso, tudo apontava para uma demissão iminente. O próprio Presidente Mattarella sabia que esse era o cenário mais provável. No dia anterior, tinha mantido contactos telefónicos com Salvini e Berlusconi, que lhe haviam sinalizado o seu apoio a um governo “Draghi 2”, com novos ministros e um novo programa, como explica o jornal italiano Corriere della Sera — e isso estava fora da equação para Draghi.
As expectativas dos analistas cumpriram-se quando Mario Draghi surgiu perante a Câmara dos Deputados pelas 9h desta quinta-feira para lhes comunicar, com brevidade, que iria dali direto ao palácio presidencial para apresentar a Sergio Mattarella a sua demissão. O anúncio foi aplaudido por praticamente toda a câmara, o que levou a Draghi a emocionar-se. “Os banqueiros também usam o coração, de vez em quando“, brincou.
Na sequência do anúncio, os vários partidos começaram a convocar reuniões das suas comissões políticas, com vista a decidir o seu posicionamento numa futura campanha eleitoral em que o sistema de alianças será, sem dúvida, marcado pelo modo como o governo Draghi terminou.
Draghi e Mattarella estiveram reunidos durante cerca de meia hora antes de o Presidente aceitar a renúncia do primeiro-ministro. Seguiram-se múltiplas reuniões institucionais para determinar os passos seguintes num país que volta agora a mergulhar na convulsão política e terá de ir a novas eleições. O anúncio foi remetido para o final da tarde, com os presidentes de ambas as câmaras do parlamento a serem chamados para reuniões no palácio presidencial.
Finalmente, depois das 17h30, Sergio Mattarella anunciou a decisão esperada: as duas câmaras do parlamento foram dissolvidas por decisão do Presidente. Numa breve comunicação ao país, Mattarella explicou que a dissolução do parlamento “é sempre uma decisão de último recurso“.
“O governo apresentou a sua renúncia e, ao reconhecê-lo, agradeci a Mario Draghi e aos ministros pelo seu empenho nestes 18 meses. O governo encontrou limitações à sua atividade, mas continua a ter as ferramentas para operar nestes meses enquanto não chega o novo executivo”, disse Mattarella, explicando que Draghi se mantém no cargo para a gestão dos assuntos correntes até às próximas eleições, marcadas para 25 de setembro. “Não é possível haver pausas neste momento pelo qual estamos a passar. Os custos da energia têm consequências para famílias e empresas, há que lidar com as dificuldades económicas.”
Ao final da tarde desta quinta-feira, Mario Draghi reuniu-se com os membros do governo em conselho de ministros para começar a discutir como é que o governo em funções irá lidar com os problemas de gestão corrente nos próximos meses. “Agora, temos de manter a mesma determinação na atividade que vamos poder levar a cabo nas próximas semanas, dentro dos limites do perímetro que foi desenhado“, disse Draghi aos ministros. “Ainda vai haver tempo para os cumprimentos. Agora, de volta ao trabalho.”