O primeiro-ministro de Itália, Mario Draghi, deverá mesmo abandonar o cargo, levando Itália a eleições antecipadas, após uma tarde muito tensa de debate e votações no Senado italiano que culminou com a aprovação periclitante, por parte de uma minoria de parlamentares, de um voto de confiança relativamente ao líder do governo de coligação. Os principais partidos que suportavam a coligação de Draghi — a Liga, o Movimento 5 Estrelas e o Força Itália — não participaram na votação e, embora o resultado formal da votação tenha sido a aprovação da moção de confiança, a crise política em Itália só se aprofundou mais. A moção de confiança recebeu apenas 95 votos a favor e 38 contra, num Senado composto por 321 elementos (e dos quais apenas 192 estiveram presentes no momento da votação).

No final da votação, Mario Draghi abandonou o Senado e deverá reunir-se na quinta-feira com o Presidente italiano, Sergio Mattarella, para lhe apresentar novamente a demissão, de acordo com a imprensa italiana. Os jornais de Itália já avançam, inclusivamente, datas possíveis para a eleição: a 2 ou 9 de outubro.

Quando abandonou o Senado italiano, Mario Draghi não prestou declarações aos jornalistas. Outros responsáveis políticos italianos já reagiram, incluindo o secretário do Partido Democrático, Enrico Letta, que classificou esta quarta-feira como um “dia de loucura” em que o Parlamento “decidiu ir contra Itália“. “Fizemos todos os esforços para o evitar e para apoiar o governo Draghi”, disse o líder do partido, que votou favoravelmente à moção de confiança. “Os italianos vão demonstrar nas urnas que são mais sábios do que os seus representantes.”

Matteo Renzi, o líder do Itália Viva, outro dos partidos da coligação de Draghi que se mantiveram firmes no apoio à continuidade, classificou a crise como “grotesca e absurda” a acusou Giuseppe Conte e o Movimento 5 Estrelas de provocarem uma crise desnecessária num “tempo cheio de problemas“.

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Por outro lado, os partidos Liga e Força Itália optaram por não votar visto que tinham subscrito uma outra moção que não foi votada — e na qual pediam que Mario Draghi continuasse a liderar o governo italiano, mas com um executivo renovado, sem a participação do Movimento 5 Estrelas. O Movimento 5 Estrelas, por seu turno, também não participou na votação.

O debate desta quarta-feira surge após uma semana de crise política em Itália aberta pelo pedido de demissão apresentado por Draghi na semana passada.

Movimento 5 Estrelas, a origem da crise

Mario Draghi é o primeiro-ministro de Itália desde fevereiro de 2021, altura em que foi convidado pelo Presidente italiano, Sergio Mattarella, para reunir amplo apoio parlamentar em todo o espectro político e liderar um governo tecnocrático de unidade nacional, destinado a colocar um ponto final na crise política que se vivia em Itália no início de 2021, em grande parte motivada pelas profundas discórdias dentro da coligação governamental a propósito da resposta económica à pandemia da Covid-19.

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Draghi conseguiu reunir o apoio de uma grande parte das forças políticas italianas, em todos os pontos do espectro político, e lidera desde essa altura um governo de unidade nacional, que reúne o Partido Democrático (centro-esquerda), o Itália Viva (centro, de Matteo Renzi), o Livres e Iguais (esquerda), o Força Itália (centro-direita, de Silvio Berlusconi), a Liga (extrema-direita, de Matteo Salvini) e o Movimento 5 Estrelas (de Giuseppe Conte), entre outros partidos mais pequenos. Ao longo dos últimos meses, contudo, começaram a surgir dentro da ampla coligação fortes divisões, traduzidas sobretudo num crescente afastamento do Movimento 5 Estrelas.

A tensão culminou, na semana passada, com a abstenção do Movimento 5 Estrelas (M5S)  numa votação no Senado sobre a aprovação de um pacote de ajuda financeira às famílias e às empresas italianas para fazer frente à inflação crescente. A abstenção do M5S não contribuiu para o chumbo do pacote, que foi aprovado na mesma, mas foi decisiva para Mario Draghi: não era possível que um partido que faz parte da coligação governamental não apoiasse uma medida do governo.

De imediato, Mario Draghi apresentou a demissão ao Presidente da República, Sergio Mattarella, que não a aceitou. Antes, pediu ao primeiro-ministro que se apresentasse perante o parlamento italiano e explicasse aos senadores aquilo que se passa dentro do seu governo. Só depois de um pronunciamento parlamentar poderia ser tomada uma decisão relativa à continuidade ou não do governo Draghi.

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Mario Draghi chegou esta quarta-feira ao Senado com um longo discurso preparado. “O Presidente da República confiou-me a tarefa de formar um governo para lidar com as três emergências que Itália enfrentava: a pandémica, a económica e a social. Um governo — e isto foram as suas palavras — de alto perfil, que não se deveria identificar com nenhuma fórmula política. Um governo que enfrente rapidamente as emergências graves que não podem ser adiadas. Todos os partidos, à exceção de um, decidiram responder positivamente a este apelo. No discurso inaugural que fiz nesta câmara, referi explicitamente o ‘espírito republicano’ do governo, que seria baseado na premissa da unidade nacional”, começou por dizer.

“Nos últimos meses, a unidade nacional tem sido a melhor garantia da legitimidade democrática deste executivo e da sua eficácia. Acredito que um primeiro-ministro que nunca se apresentou perante os eleitores tem de ter o maior apoio possível no parlamento. Esta assunção é ainda mais importante num contexto de emergência, no qual o governo tem de tomar decisões que afetam profundamente as vidas dos italianos“, acrescentou o governante italiano, prosseguindo com uma longa apresentação daquilo que o governo fez nos últimos meses, incluindo no que toca às medidas de combate à pandemia, de crescimento económico, de apoio à Ucrânia e de aplicação dos fundos europeus.

Porém, Draghi lembrou também os momentos em que o apoio ao seu governo começou a fraquejar — não apenas no que respeita a reformas internas, mas também nas “tentativas de enfraquecer o apoio do governo à Ucrânia e de enfraquecer a nossa oposição ao plano do Presidente Putin“.

No entender de Draghi, “o voto da última quinta-feira”, ou seja, a já referida abstenção do M5S, “certificou o fim do pacto de confiança que mantinha esta maioria unida. Não votar favoravelmente à confiança num governo de que se faz parte é um gesto político claro, que tem um significado óbvio. Não pode ser ignorado, porque seria equivalente a ignorar o parlamento. Não é possível contê-lo, porque isso significaria que qualquer pessoa o poderia repetir. Não é possível minimizá-lo, porque surge ao fim de meses de ultimatos”. Assim, acrescentou: “a única forma, se queremos continuar juntos, é reconstruir este pacto do zero, com coragem, altruísmo, credibilidade. São, na sua maioria, os italianos quem o pede.”

O primeiro-ministro salientou que é “impossível ignorar” os apelos da opinião pública e de vários setores para que o atual governo continue. Por isso, o seu discurso, apresentou um autêntico programa de governo, descrevendo com detalhe as suas prioridades para os próximos anos, e deixou o desafio aos membros do parlamento: “Precisamos de um novo pacto de confiança, sincero e concreto, como aquele que nos permitiu até agora mudar o país para melhor. Aos partidos e a vocês, parlamentares: estão prontos para reconstruir este pacto? Estão prontos para confirmar o esforço que fizemos nos primeiros meses, e que depois se desvaneceu? Aqui, nesta câmara, estamos hoje neste ponto da discussão, apenas e só porque os italianos o pediram. A resposta a estas perguntas não deve ser dada a mim, mas a todos os italianos.”

Na sequência do discurso de Draghi, seguiu-se um longo período de debate e a apresentação de moções.

A primeira resolução foi apresentada pelo senador Pier Ferdinando Casini, apenas com uma frase: “O Senado, tendo ouvido a comunicação do presidente do Conselho de Ministros, aprova-a.” Uma votação positiva nesta moção de confiança significaria um apoio generalizado do parlamento italiano à continuidade do governo Draghi, com as mesmas prioridades e linhas orientadoras. Por outro lado, uma segunda resolução foi apresentada pela Liga e subscrita pela Força Itália e pela UDC. Nessa resolução era pedido um novo acordo para um novo governo, liderado por Draghi, mas sem o M5S, que minou a unidade do anterior executivo. Os partidos subscritores desta moção optaram por não participar na votação da primeira — aquela que Draghi pediu para ser votada —, o que acabou por retirar qualquer força à aprovação do voto de confiança.