Naquela sala, toda a gente sabia que o mundo estava de olhos na decisão que viesse a ser anunciada. Houve poucas ocasiões ao longo da pandemia em que Portugal não teve para onde olhar para se inspirar nos próximos passos a dar. Mas o lugar privilegiado que o país conquistou com o esforço de vacinação trouxe um amargo de boca: agora o exemplo seríamos nós. Na Direção-Geral de Saúde, era preciso definir o passo seguinte: vacinar ou não crianças entre os cinco e os 11 anos? E, se a resposta fosse sim, por onde começar esse processo? Não havia dados robustos (mesmo que os houvesse) publicados nos outros países ou decisões tomadas no estrangeiro que nos valessem.
Nas últimas semanas, os membros da Comissão Técnica de Vacinação da Direção-Geral da Saúde sentaram-se por diversas vezes à mesa. Traçaram cenários — com os poucos dados disponíveis — sobre o que poderia resultar de uma vacinação em massa dos menores com mais de cinco e menos de 12 anos; usaram aplicações para estimar níveis de incidência do novo coronavírus nos mais novos; fizeram cálculos e mais cálculos matemáticos para cruzar uma realidade sem vacinas com a de uma população de crianças totalmente vacinada. Puseram todos os cenários em cima da mesa, saíram para analisar os dados e voltaram a sentar-se para trocar novos argumentos. E fazer todas as perguntas que precisassem de resposta.
Durante esse processo, sentiram nos ombros a responsabilidade de tomar uma posição final sobre a vacinação de crianças contra a Covid-19, admitiu uma fonte próxima do processo ao Observador. Por isso é que, mesmo após a luz verde da Agência Europeia do Medicamento, as autoridades de saúde demoram quase duas semanas a anunciar a posição sobre o tema; e é também isso que explica que o parecer enviado à Direção-Geral da Saúde seja particularmente longo, quando comparado com outros conselhos entregues a Graça Freitas.
Havia um “advogado do diabo” naquela Comissão, um especialista mais cético que todos os outros, contou outra fonte. Tinha dúvidas. Não sobre a segurança e eficácia — mas sobre como um parecer favorável podia impactar o futuro do processo em Portugal: e se isso atrasasse a administração de doses de reforço nos adultos? Quão importante era, neste momento, vacinar as crianças, numa estratégia de vacinação a longo prazo?
Luz verde da EMA não chegará para começar a vacinar crianças em Portugal. Decisão só com mais dados
Antes da decisão da Agência Europeia do Medicamento (EMA), a 25 de novembro, o tema da vacinação contra a Covid-19 nesta faixa etária não era prioridade nas reuniões semanais da comissão, que aconteciam tipicamente à quinta-feira: o ponto mais importante era sempre o reforço da vacinação das pessoas mais vulneráveis e manter um olhar microscópico sobre a evolução epidemiológica, não fossem os números revelar que outro grupo populacional estava novamente a ficar à mercê do vírus. Mas depois da recomendação das autoridades internacionais, as agulhas viraram-se dos idosos e dos adultos que tomaram Janssen para as crianças entre os cinco e os 11 anos.
Todos os membros entravam nas reuniões da Comissão de mente aberta: ninguém tinha certezas absolutas nem “achismos”, toda a gente queria olhar para os números. E foram eles — os bons e os maus — as peças capazes de dissipar as dúvidas do elemento mais cético do grupo: apesar do baixo número de voluntários nos ensaios da Pfizer/BioNTech, os cálculos e equações que se utilizaram para projetar os resultados da vacinação nas crianças, todos baseados em milhares de folhas de Excel de informação recolhida nos grupos pediátricos em que a vacinação já avançou (principalmente entre os 12 e os 15 anos) e introduzidos em sistema de modelagem matemática, foram aos poucos revelando aquilo que o grupo acabou por dizer à DGS: vacinar era bom. Era melhor do que não o fazer. Para todas as crianças. E a estratégia de vacinação tinha inevitavelmente de passar por elas.
Vacina pode provocar tantas miocardites como a Covid-19
Um dos maiores focos de atenção dos especialistas foram as miocardites, que são a maior preocupação dos pais de crianças pequenas no momento da decisão. Entre as cerca de 2.300 crianças que participaram no ensaio clínico, não se registaram quaisquer reações adversas graves como essa. Não era sequer expectável que elas fossem detetadas: são tão raras que só quando se começa a vacinar na escala de centenas de milhares é que se detetam esses casos. Mas esperar por uma infeção por SARS-CoV-2 para evitar estes problemas cardíacos, afinal, não seria solução.
Estima-se que, administrando a vacina às crianças portuguesas entre os cinco e os 11 anos, nos próximos quatro meses — entre dezembro e março — vão evitar-se 13.500 infeções, 50 internamentos (cinco dos quais em unidades de cuidados intensivos) e sete miocardites — uma inflamação do músculo cardíaco — associadas à infeção pelo SARS-CoV-2, avançou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, ao Observador. Acontece que o número de miocardites associadas à vacinação que se pode esperar será, no pior cenário, exatamente o mesmo: na faixa etária dos 12 aos 15 anos foram 0,4 casos por 100 mil raparigas vacinadas; e 2,2 casos por 100 mil rapazes. Como a dose no grupo etário imediatamente abaixo é inferior, a prevalência será ainda mais baixa.
Segundo uma das fontes ouvidas pelo Observador, este dado foi um ponto de viragem para chegar a um consenso sobre o que devia constar do parecer da Comissão Técnica de Vacinação: se o risco de desenvolver miocardite por vacinação ou por Covid-19 era semelhante, no pior dos casos; se ainda por cima o mais provável era revelar-se inferior nas crianças mais novas (porque ele aumenta com a idade); e se este era o único risco realmente preocupante nesta avaliação, então os argumentos a favor da vacinação pesavam claramente mais. A balança pendia finalmente para o lado da luz verde à extensão do processo às crianças.
Caso da varicela serviu de exemplo para decidir sobre a Covid-19
Um dos argumentos apresentados pela DGS para avançar já para a vacinação universal das crianças entre os cinco e os 11 anos é a incidência registada nessa faixa etária. A média de novos casos diários só neste grupo etário é de 450, muito acima dos 130 casos diários que se registam no grupo entre os 12 e os 17 anos. Mais: das 640 mil crianças entre os cinco e os 11 anos, apenas 11% contactaram diretamente com o vírus. Mesmo admitindo que esta percentagem é uma subestimação relativamente ao número real de pessoas infetadas nessa idade, ainda há um universo de 300 mil crianças que ainda pode vir a ser infetada — e seguramente vai acontecer, contabilizou Manuel Carmo Gomes.
O caso da varicela é um presságio do que se pode esperar nas crianças porque a variante delta é quase tão contagiosa quanto o vírus Herpes Varicella Zoster, mesmo apesar de este último conviver há muito mais tempo com a humanidade do que o SARS-CoV-2. Quase todas as crianças já estiveram infetadas com o vírus que a provoca quando chegam aos 11 anos. Como a Covid-19 provocada pela variante delta tem um índice de transmissibilidade semelhante ao da varicela — o R0 foi calculado entre os seis e oito — o grupo de peritos aposta que é uma questão de tempo até que uma criança nascida hoje venha a encontrar o SARS-CoV-2. Quando isso acontecer, o melhor é estarem protegidas, argumenta Carmo Gomes.
Por enquanto, as crianças não exercem um peso considerável no Serviço Nacional de Saúde: no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, havia duas crianças internadas por complicações associadas à Covid-19 à meia-noite de terça-feira — ambas com idades entre os 10 e 19 anos — e há várias semanas que nenhuma ocupa uma cama em unidades de cuidados intensivos. No Hospital de São João, na manhã desta terça-feira, não havia qualquer criança internada por Covid-19 e esta também sido a regra há várias semanas no Porto.
Peritos da DGS estão contra vacinação de crianças. Graça Freitas espera pelo parecer final
Mas a tranquilidade de agora pode não ser a de amanhã, entenderam os peritos. Desde que a epidemia foi identificada em Portugal, registaram-se 68 mil infeções entre os indivíduos com cinco a 11 anos, cerca de 220 hospitalizações desde que a epidemia começou, 20 casos internados e cuidados intensivos e três mortes nessa faixa etária. Sem fim da pandemia à vista, e com a variante Ómicron no horizonte a prometer um maior volume de infeções, os especialistas preparam-se para a pressão sobre o SNS aumentar. E cada criança que se mantém longe das portas dos hospitais é mais um ponto a favor.
Como a Covid-19 grave é muito rara em idade pediátrica, das 300 mil crianças que se estima poderem vir a ser infetadas, só duas a três em cada mil vão precisar de internamento por causa da Covid-19. Mas isto pode originar 600 a 900 hospitalizações, 10% das quais virão a precisar de acompanhamento em unidades de cuidados intensivos. E ser saudável, sem comorbilidade prévia, não basta para uma criança escapar do internamento por Covid-19: quanto mais alto o número de internamentos, maior a probabilidade de uma criança sem comorbilidades prévias acabar no hospital à conta da Covid-19. E 90% das que são hospitalizadas precisam de ficar em acompanhamento durante mais de 24 horas.