Após quatro anos envolvidos num dos mais controversos processos de decisão da história contemporânea da Igreja Católica, os bispos alemães aprovaram no início deste mês um conjunto de documentos que podem conduzir definitivamente a Igreja naquele país a um cisma eclesiástico à moda antiga. Em causa estão os temas mais quentes da complexa relação da milenar Igreja Católica com o mundo contemporâneo: a moral sexual, o celibato dos padres, o lugar das mulheres na Igreja e as dinâmicas de poder dentro da instituição.
De entre as decisões adotadas na assembleia final do “Caminho Sinodal” alemão, destaca-se a aprovação da bênção ritual de uniões entre pessoas do mesmo sexo (que, apesar de não ser equivalente ao matrimónio, é uma afronta direta à doutrina católica), a possibilidade de deixar o campo do género em branco nos batismos (abrindo a Igreja às diferentes identidades de género), o acesso das mulheres aos ministérios sacramentais, a possibilidade de os leigos proferirem homilias nas missas, a revisão do celibato dos padres e a criação de conselhos de leigos e religiosos para tomarem decisões nas paróquias e dioceses, retirando aos clérigos a exclusividade do poder de governo sobre as várias realidades da Igreja Católica.
É ainda incerto o modo como estas decisões vão, efetivamente, ser postas em prática no dia-a-dia das dioceses e paróquias alemãs. O certo é que a maioria das medidas adotadas pelos bispos alemães contradiz direta ou indiretamente o Catecismo da Igreja Católica — logo a começar pelo facto de um conjunto de bispos locais tomar decisões que envolvem a disciplina e a doutrina da Igreja a nível global —, pelo que, se forem colocadas em prática, podem mesmo pôr os bispos alemães em situação de rutura com Roma.
Embora centrado noutros temas — os debates mais acalorados do mundo contemporâneo —, o clima que se vive hoje na Igreja alemã parece recordar as tensões que, no século XVI naquele mesmo país, levaram à última grande cisão do Cristianismo: a Reforma Protestante. Mas, afinal, o que se passa na Igreja alemã? O que é e como começou o “Caminho Sinodal”? Que decisões são estas e que resposta tiveram do Vaticano? E o que pode acontecer agora?
Bênção de uniões LGBT e campo do género em branco no batismo
Apesar das múltiplas tentativas do Vaticano de moderar o processo alemão, a assembleia final do “Caminho Sinodal” reuniu-se no início deste mês em Frankfurt e, após longa discussão, aprovou oito documentos finais que podem, agora, constituir um verdadeiro tratado cismático dentro da Igreja Católica.
O documento mais polémico é o que se debruça sobre a possibilidade de a Igreja passar a abençoar a união de casais homossexuais. Intitulado “cerimónias de bênção para casais que se amam”, o texto de cinco páginas consiste numa moção que apela aos bispos alemães para que “permitam oficialmente as cerimónias de bênção nas suas dioceses para casais que se amam, mas para os quais o matrimónio sacramental não está acessível ou que não se veem num momento adequado a entrar num matrimónio sacramental”. A parte mais controversa é a frase que se segue: “Isto também se aplica aos casais do mesmo sexo, com base numa reavaliação da homossexualidade como uma variante normativa da sexualidade humana”.
O texto aprovado na assembleia prevê que esta cerimónia seja diferente do casamento tradicional e que seja estabelecida pelas dioceses como “liturgia diocesana”. Além disso, a medida inclui, à semelhança dos casamentos convencionais, a existência de um caminho de preparação para a cerimónia. “Muitas vezes, os casais do mesmo sexo e os divorciados que voltaram a casar experienciaram a exclusão e a depreciação na nossa Igreja. A possibilidade de, publicamente, colocar a sua união sob a bênção de Deus não compensa essas experiências. Contudo, oferece à Igreja a oportunidade de mostrar apreço pelo amor e os valores que existem nessas relações e, assim, pedir perdão e tornar possível a reconciliação.”
Outra polémica decisão da assembleia final do “Caminho Sinodal” prende-se com a abertura à “diversidade de género”. Nesse documento, os delegados do “Caminho Sinodal” pedem aos bispos que permitam que o campo do género seja deixado em branco nos registos de batismos de crianças intersexo, ou que seja colocada a referência “diverso”, como acontece na lei civil alemã. Por outro lado, é também feito o pedido para que uma pessoa transgénero possa alterar o seu género nos registos de batismo. Mas o texto vai ainda mais longe e recomenda ao próprio Papa Francisco que abra o debate teológico sobre “a diversidade de género que existe na boa Criação de Deus”.
Sobre o lugar das mulheres na Igreja Católica, os delegados do “Caminho Sinodal” aprovaram uma moção que encarrega os bispos alemães de fazerem lóbi no Vaticano pela admissão das mulheres ao diaconado — o primeiro grau do sacramento da ordem —, além de apelar ao desenvolvimento de estudos teológicos no contexto da Igreja alemã sobre a possibilidade de as mulheres serem ordenadas. Destaca-se também uma moção que apela aos bispos para que criem normas internas na Igreja Católica para proteger as mulheres de crimes sexuais no contexto eclesiástico.
Outro documento, destinado essencialmente a combater o clericalismo dentro da Igreja, determina que os bispos alemães deverão redigir uma nova norma interna (para a qual deve ser pedida autorização à Santa Sé) destinada a permitir que os leigos — e não apenas os membros do clero — proclamem o Evangelho e façam a homilia na missa. Essas pessoas, que devem ser “leigos teológica e espiritualmente qualificados”, têm de ser nomeadas pelo bispo e receber dele a autorização para recitar os sermões dominicais. O objetivo desta moção é aproximar a Igreja alemã do espírito do Concílio Vaticano II, segundo o qual todos os fiéis são, por via do batismo, igualmente chamados ao serviço de proclamar a palavra de Deus. Na prática, será uma forma de dar maior destaque aos leigos no contexto da Igreja, transformando-a numa instituição menos centrada no poder dos clérigos.
Sobre o sacerdócio, a assembleia sinodal aprovou a moção “Existência sacerdotal nos dias de hoje”, um texto que deverá servir de reflexão futura para os bispos alemães a propósito dos desafios que se colocam atualmente aos padres — incluindo no âmbito da formação sexual —, e ainda um documento no qual é proposta uma revisão da obrigatoriedade do celibato para os padres. Segundo esse texto, a Igreja Católica alemã lança ao Papa Francisco o apelo para que, no Sínodo dos Bispos de 2023-2024, “reconsidere a ligação entre a ordenação e o compromisso com o celibato”. O texto até aponta as tradições orientais do Cristianismo Ortodoxo, que mostram como “a diversidade de formas do modo de vida dos padres sempre foi e sempre será uma real possibilidade para a Igreja”.
Os delegados do “Caminho Sinodal” aprovaram também uma moção com um conjunto de dez medidas para prevenir o abuso sexual de crianças por membros do clero e para modificar a forma como a Igreja lida com estes casos.
Uma das propostas mais controversas, porém, acabou por não avançar. Uma moção destinada a criar “conselhos sinodais” nas paróquias e nas dioceses acabou por ser remetida para um “comité sinodal”, que ao longo dos próximos três anos vai continuar o trabalho do “Caminho Sinodal”. A criação daqueles conselhos, que consistiriam num novo organismo de tomada de decisão nas paróquias e dioceses, punha em causa o sistema hierárquico da Igreja Católica e acarretava o risco de conduzir a decisões diferentes sobre o mesmo problema em dioceses diferentes — ou até a decisões contraditórias com a doutrina da Igreja.
A antecâmara de um cisma
Tomáš Halík, talvez o mais reputado intelectual católico da Europa contemporânea, tem comparado a atual situação da Igreja com a crise testemunhada por Lutero no início do século XVI. “A onda de revelações de escândalos de abusos sexuais e psicológicos na Igreja, que eram tabu e foram encobertos durante muito tempo, desempenha um papel semelhante à última gota que, na Idade Média, desempenhou o escândalo com a venda das indulgências”, escreveu o filósofo e teólogo checo em O Tempo das Igrejas Vazias (Paulinas, 2020). “Também então foram desvendados problemas fundamentais num fenómeno aparentemente marginal: o problema da relação entre a Igreja e o poder e o da relação entre o clero e os leigos.”
Foi justamente na crise dos abusos sexuais de crianças no contexto da Igreja, que eclodiu no início da década de 1980 nos Estados Unidos e se agudizou nos últimos anos na Europa, que encontramos a raiz do processo atualmente em curso na Igreja Católica alemã.
A renúncia de Bento XVI ao trono pontifício, em 2013, foi essencialmente motivada pelo reconhecimento, da parte do Papa alemão, de que lhe faltavam as forças para conduzir a Igreja Católica num processo de reforma que se impunha na sequência das múltiplas crises — do drama dos abusos aos escândalos financeiros do Vaticano — que marcavam o rosto de uma instituição crescentemente polarizada em torno de assuntos como a família, os direitos LGBT, o aborto e a eutanásia.
Nos primeiros meses do seu pontificado, o Papa Francisco deixou claro que, na sua perspetiva, o modo como a Igreja lidava com as questões da família era um dos aspetos vitais de um discurso da instituição para o mundo contemporâneo. Por esse motivo, o Papa convocou em 2014 uma assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos para debater “os desafios pastorais da família no contexto da evangelização” — uma assembleia na qual ficaram bem claras (como se vê pelo registo dos votos) as profundas divisões entre os bispos em alguns dos temas mais quentes, incluindo a possibilidade de admitir à comunhão sacramental os divorciados que tinham voltado a casar ou a necessidade de acolher na Igreja as pessoas homossexuais.
A esse momento seguir-se-ia a edição ordinária do Sínodo dos Bispos de 2015, sobre a família, da qual saiu um documento final — a exortação apostólica Amoris Laetitia —, que abriria a porta uma das maiores controvérsias do pontificado de Francisco. Nesse texto, adotando uma perspetiva clássica do seu pontificado segundo a qual as pessoas concretas se sobrepõem às polémicas doutrinais, o Papa admitiu a possibilidade de as pessoas divorciadas que voltaram a casar pelo civil (e, por isso, em situação de pecado para a Igreja) poderem comungar na missa. O documento de Francisco causou polémica entre bispos de todo o mundo, abrindo uma divisão profunda e ressuscitando a dicotomia (de alcance limitado) entre “progressistas”, que defendem o Papa Francisco na abertura da Igreja a novas realidades familiares, e “conservadores”, que buscam a manutenção dos preceitos doutrinais clássicos da Igreja.
Francisco é Papa há dez anos. Os debates que Bergoglio abriu na Igreja Católica
A reação à Amoris Laetitia incluiu acusações de heresia contra o Papa Francisco e até o célebre movimento das dubia, lançadas por quatro cardeais ultraconservadores sobre o texto do Papa. A receção do texto do Papa Francisco causaria também controvérsia em Portugal, sobretudo depois de o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, ter publicado um documento no qual propunha a abstinência sexual aos divorciados que se tinham voltado a casar e que pretendiam aceder à comunhão.
Este contexto é crucial para compreender como, em meados da década passada, a Igreja Católica começava a mergulhar mais profundamente num clima de convulsão que já não era apenas motivado pela tensão com o mundo secular (em temas como o aborto, a eutanásia ou os direitos LGBT), mas também pelas tensões internas em assuntos tão vitais para a doutrina da Igreja como a moral sexual e familiar.
Enquanto, a nível global, a Igreja se começava a dar conta das suas divisões internas, na Alemanha a instituição enfrentava a sua própria crise particular, motivada essencialmente pelo drama dos abusos de menores. Depois de a crise ter eclodido naquele país em 2010, com um conjunto de denúncias relacionadas com abusos em escolas religiosas e que chegaram mesmo a manchar o nome Ratzinger, primeiro envolvendo o irmão do Papa emérito e depois o próprio Bento XVI, os bispos alemães encomendaram a um grupo independente a produção de um relatório detalhado sobre o fenómeno dos abusos na Igreja alemã ao longo das últimas décadas.
O documento final foi conhecido em setembro de 2018 e permitiu traçar, pela primeira vez, um retrato do que terá sido a realidade dos abusos na Igreja alemã: pelo menos 1.670 membros do clero terão abusado sexualmente de pelo menos 3.677 crianças entre 1946 e 2014. O relatório teve um impacto devastador na Igreja alemã, que sofreu um êxodo de cerca de 216 mil fiéis só naquele ano e que levou o cardeal Reinhard Marx, então presidente da Conferência Episcopal Alemã, a reconhecer que a Igreja do país estava num “ponto de inflexão” e a sentenciar: “Muitas pessoas já não acreditam em nós.”
No final de 2018, tornava-se claro para os bispos alemães que a Igreja Católica, que representa cerca de metade dos cristãos do país (a outra metade é luterana), já não era uma instituição de confiança para a generalidade dos cristãos alemães, estava a perder relevância e era incapaz de dar resposta à generalidade dos anseios da sociedade. Foi nesse contexto que, em 2019, a Conferência Episcopal Alemã lançou o “Caminho Sinodal” — um projeto de renovação da Igreja, à maneira do aggiornamento do Concílio Vaticano II, mas que rapidamente se tornou num dos projetos mais controversos da Igreja contemporânea.
Um caminho controverso
Diretamente inspirado na lógica do Sínodo dos Bispos (o órgão colegial que se reúne periodicamente e que apoia o Papa na tomada de decisões importantes para a Igreja), o “Caminho Sinodal” alemão foi lançado pelos bispos alemães como um conjunto de assembleias e conferências para discutir e implementar novos modelos de atuação da Igreja Católica perante a realidade do mundo contemporâneo. O projeto, inicialmente pensado para durar dois anos, acabou por ser alargado: foi lançado formalmente em dezembro de 2019, a que se seguiram cinco assembleias plenárias, em janeiro de 2020, setembro de 2021, fevereiro de 2022, setembro de 2022 e, finalmente, março de 2023.
Logo desde o início, a Conferência Episcopal Alemã deixou claro que o “Caminho Sinodal” já seria, ele próprio, um modelo novo de tomada de decisão: não só porque a mera existência de uma espécie de concílio local para tomar decisões sobre a doutrina e a disciplina da Igreja (com implicações globais) já é muito difícil de enquadrar nos atuais métodos de tomada de decisão da instituição, mas também porque a assembleia sinodal, o organismo mais importante deste projeto, era composta por 230 elementos, dos quais apenas metade eram bispos e arcebispos — os restantes eram leigos. Logo no primeiro momento, o método de trabalho do “Caminho Sinodal” foi estruturado em torno dos quatro temas que a Igreja alemã considerava ser fundamentais para restaurar a ligação com a sociedade: a moral sexual e familiar, as dinâmicas de poder do clero, a presença das mulheres na Igreja e as questões próprias do sacerdócio, incluindo a formação e o celibato.
Nos primeiros meses do projeto, o cardeal Marx afirmou que os resultados do processo sinodal seriam “vinculativos” para a Igreja alemã, o que imediatamente causou desconforto no Vaticano. Foi o próprio Papa Francisco quem lançou o primeiro alerta, ainda antes do arranque formal dos trabalhos, publicando uma carta aberta aos fiéis alemães na qual avisou para a tentação de acreditar que, para resolver os problemas da Igreja, bastariam “reformas puramente estruturais, orgânicas ou burocráticas”, e avisou que o caminho da Igreja tem de ser feito em conjunto, e não por iniciativa individual de um grupo de bispos.
Desde a eleição do Papa Francisco que o aprofundamento das divisões internas na Igreja Católica em torno de alguns assuntos fraturantes deixava no ar um clima de possível cisma do século XXI. Mas se, inicialmente, havia o medo de que esse cisma pudesse ter origem nas alas mais conservadoras e reacionárias, que perante alguns posicionamentos do Papa Francisco buscassem um regresso aos tempos pré-conciliares, o anúncio do “Caminho Sinodal” alemão fez soar alarmes no sentido contrário: poderia o cisma vir, na verdade, da ala ultra-progressista, que procura avançar mais rapidamente do que o ritmo que a estrutura da Igreja é capaz de suportar, pondo em causa a capacidade do Papa Francisco de manter a instituição unida?
“Não somos uma filial de Roma”, tinha dito em 2015 aos jornalistas o cardeal Marx, numa altura em que entre os bispos alemães já se discutia a possibilidade de avançar com uma política eclesiástica própria em relação a alguns temas que assumiam particular relevância na Igreja alemã. “Cada conferência episcopal é responsável pelo cuidado pastoral no seu contexto cultural e tem de pregar o evangelho no seu modo próprio e original. Não podemos esperar que um Sínodo nos diga como moldar o cuidado pastoral sobre o casamento e a família aqui.”
As declarações de Marx tiveram, então, reações negativas em vários quadrantes, incluindo no próprio Vaticano, com a Santa Sé a classificar como “absolutamente anti-católica” a ideia do cardeal alemão — que, apesar de tudo, se manteve no grupo mais restrito dos conselheiros do Papa Francisco. Quatro anos depois, a ameaça de rutura concretizou-se com a criação do “Caminho Sinodal”. Além da carta do Papa Francisco, os bispos alemães receberam um aviso mais duro da parte do Vaticano: os planos da Igreja alemã para tornar vinculativas as decisões tomadas naquele processo eram “eclesiologicamente inválidos”, uma vez que aqueles assuntos não podiam ser “objeto de deliberações ou decisões de uma Igreja particular sem contrariarem o que foi expresso pelo Santo Padre na sua carta”. Mais, uma carta do Vaticano aos bispos alemães acusava-os também de estarem a tentar fazer um “concílio particular”, algo previsto pelo Direito Canónico, mas sem as devidas autorizações da Santa Sé.
A tensão entre os bispos alemães e o Vaticano, que em 2019 se agudizava profundamente, obrigou o próprio cardeal Marx a voar para Roma para tentar esclarecer os mal-entendidos. No final de uma reunião com as autoridades da Santa Sé, o plano dos bispos seguiu em frente com o cardeal Marx a salientar que o objetivo não era criar uma “igreja nacional”, mas apenas o de seguir o conselho do Papa Francisco de descentralizar a tomada de decisão na Igreja, e a garantir que as conclusões do processo seriam partilhadas com a Santa Sé.
Dentro da Igreja, o avanço do processo dos bispos alemães começava a ser visto como uma verdadeira ameaça de cisma. “O Papa Francisco e o possível cisma alemão” foi, na altura, o título dado pelo arcebispo americano Samuel Aquila a um artigo sobre o processo em curso naquele país. Na própria Igreja alemã, esses receios começavam a tornar-se reais. “O pior resultado seria se o Caminho Sinodal conduzisse a um cisma com a Igreja universal”, avisava o cardeal alemão Rainer Maria Woelki, arcebispo de Colónia. Por outro lado, o bispo Franz-Josef Overbeck, também alemão, declarava que “os tempos antigos chegaram ao fim” e que permitiria que os seus padres abençoassem uniões de pessoas do mesmo sexo.
Vaticano: “A benção das uniões homossexuais não pode ser considerada lícita”
Em pouco tempo, a questão dos direitos LGBT tornou-se o assunto central do “Caminho Sinodal”. No início de 2021, com o projeto sinodal em curso, um grupo de padres católicos alemães anunciou que iria abençoar “pessoas que se amam”, independente do estado civil ou da orientação sexual, nas igrejas do país — numa afronta clara ao posicionamento oficial da Igreja Católica sobre o assunto, que foi reafirmado em março de 2021 pelo Vaticano. A iniciativa daquele conjunto de padres foi vista como um fruto do “Caminho Sinodal” em curso na Alemanha e apontada como um sinal de cisma formal — uma rutura doutrinal com a Igreja Católica que pode levar à criação de uma nova denominação cristã, já sem estar em comunhão com a Igreja de Roma e, por isso, fora da jurisdição do Papa. Na prática, uma nova igreja. Foram cismas deste género que levaram, por exemplo, no século XI à separação entre católicos e ortodoxos e, no século XVI, à dissidência de Lutero que resultou no surgimento das várias igrejas protestantes.
Os últimos avisos do Vaticano
Quando, no dia 9 de março deste ano, os 230 delegados do “Caminho Sinodal” chegaram a Frankfurt para a assembleia plenária conclusiva do projeto, na qual seriam discutidos e votados os documentos finais de todo o processo, a tensão entre o Vaticano e os bispos alemães era mais ruidosa do que nunca.
Em janeiro deste ano, numa entrevista à Associated Press, o Papa Francisco deixou duras críticas ao processo. “A experiência alemã não ajuda”, afirmou taxativamente o líder da Igreja Católica, sublinhando que é necessário envolver “todo o povo de Deus” no diálogo sobre o futuro da instituição. “Aqui, o perigo é o de que algo de muito ideológico se infiltre. Quando a ideologia se envolve nos processos da Igreja, o Espírito Santo vai para casa, porque a ideologia se sobrepõe ao Espírito Santo.”
Dois meses antes, já com a assembleia final do “Caminho Sinodal” agendada, o Vaticano fez um último esforço para evitar o cisma — e usou palavras fortes para o fazer. Através do portal de notícias do Vaticano, a Santa Sé publicou dois discursos proferidos pelos cardeais Luis Ladaria (prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé) e Marc Ouellet (prefeito do Dicastério para os Bispos) numa conferência em Roma, no qual abordaram o “Caminho Sinodal”. Nas suas intervenções, os dois cardeais afirmaram que o processo levado a cabo pelos bispos alemães tem o potencial de causar danos na “comunhão da Igreja” e de lançar a “dúvida e confusão” entre os fiéis. Os cardeais afirmaram ainda que o Vaticano tem recebido continuamente mensagens de fiéis “escandalizados” com o processo alemão — e propuseram uma moratória no “Caminho Sinodal”, que os bispos alemães rejeitaram.
Antes ainda, em julho de 2022, a Santa Sé já tinha dado o passo pouco comum de publicar um comunicado oficial sobre o assunto. Nessa nota, o Vaticano afirmou, com todas as letras, que “o ‘Caminho Sinodal’ na Alemanha não tem o poder de obrigar os bispos e os fiéis a assumir novas formas de governo e novas abordagens de doutrina e de moral”. O comunicado vai mais longe: “Não seria lícito iniciar, antes de um acordo ao nível da Igreja universal, novas estruturas ou doutrinas oficiais nas dioceses, que representariam uma ferida na comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da Igreja.”
Ao fim de quatro anos, o Vaticano já não usava eufemismos: estava mesmo em causa a possibilidade de um cisma — um medo que se começou também a intensificar nos grupos mais tradicionalistas da Igreja alemã nas semanas antes da assembleia conclusiva do “Caminho Sinodal”.
Mas nem os avisos do Vaticano nem as cartas abertas de bispos de todo o mundo foram capazes de travar o projeto de renovação eclesiástica em curso na Alemanha. Este mês, os delegados do “Caminho Sinodal” reuniram-se em Frankfurt para discutir e votar os documentos finais de um processo de discernimento que durou quase quatro anos.
Antes do arranque da assembleia conclusiva do “Caminho Sinodal”, a presidente do Comité Central dos Católicos Alemães, Irme Stetter-Karp, que foi um dos elementos da mesa da assembleia, admitia que a reunião final iria decorrer num ambiente de “alta tensão porque as intervenções de Roma estão a ter efeito”. Mas, segundo Stetter-Karp, aquele era o momento em que os delegados teriam de provar “que o Caminho Sinodal pode mostrar resultados tangíveis”.
Pode realmente seguir-se um cisma?
Os documentos aprovados pela assembleia final do “Caminho Sinodal” alemão já seriam suficientes para provocar uma aparatosa cisão dentro da Igreja Católica: as propostas sobre a bênção de uniões do mesmo sexo ou sobre a abertura à diversidade de género chocam de frente com o Catecismo da Igreja Católica (uma doutrina que o Vaticano fez questão de reafirmar em 2021), enquanto as propostas em relação ao celibato sacerdotal e ao lugar da mulher na Igreja representam uma rutura com a atual disciplina da Igreja. Embora o Papa Francisco já tenha demonstrado alguma abertura para debater estes assuntos, uma alteração doutrinal seria de tal forma radical que poderia colocar decididamente em causa a unidade da Igreja Católica.
Ainda assim, na Alemanha, há quem tivesse gostado de ir mais longe. “Sem dúvida, gostaria de mais”, disse Irme Stetter-Karp depois da assembleia. “No geral, o Caminho Sinodal mostra que não podemos apreciar suficientemente uma grande mudança: é um grande sucesso que todos os grandes assuntos da tomada de decisão estejam agora abertamente em cima da mesa.”
O vice-presidente do Comité Central dos Católicos Alemães, Thomas Söding, concordou: “Mostrámos que a discriminação contra as mulheres na Igreja Católica é um ultraje. E identificámos os ensinamentos sexuais tradicionais da Igreja como um problema de fundo. É por isso que dissemos que as pessoas homossexuais e queer também pertencem integralmente e que a Igreja Católica tem de encontrar formas de as acolher e de as abençoar. A Igreja já não está interessada no que acontece nos quartos, se estes são realmente casais que se amam.”
Outro dos intervenientes, o presidente da Federação dos Jovens Católicos Alemães, Gregor Podschun, classificou como “um grande passo em frente” a possibilidade de bênção para os casais do mesmo sexo. “O Caminho Sinodal tornou visível para um público mais amplo o modo como as pessoas pensam sobre a sua Igreja e que forma lhe querem dar”, acrescentou Podschun, em declarações depois da assembleia. Porém, o responsável da federação destacou que o “Caminho Sinodal” não tinha ido suficientemente longe no campo da prevenção dos abusos.
Mais otimista foi o bispo Georg Bätzing, atual presidente da Conferência Episcopal Alemã, que, no final da assembleia, disse ter sentido um grande peso sair-lhe de cima — e garantiu que os documentos finais do Caminho Sinodal vão ter impacto real. “O Caminho Sinodal não é inócuo. É a concretização daquilo que o Papa Francisco quer dizer com sinodalidade. Acima de tudo, é uma expressão de uma Igreja viva, colorida e diversa.”
Os documentos aprovados no “Caminho Sinodal” não vão ser implementados de imediato. Agora, vão ser enviados para o comité sinodal, um grupo mais restrito de bispos e leigos que vão analisar os documentos e produzir uma reflexão final — e ainda não há sequer data para a reunião deste comité. Segundo o jornal Crux, a implementação concreta destas medidas está suspensa até 2026 (pelo meio, terá lugar o Sínodo dos Bispos, em Roma, onde os delegados alemães vão defender as ideias da Igreja alemã), mas a verdade é que já há várias paróquias e dioceses na Alemanha a realizar, por exemplo, as bênçãos de casais do mesmo sexo.
Se é certo que a implementação formal de várias destes documentos por parte dos bispos alemães os colocaria em situação de rutura com a Santa Sé — o que poderia, em última análise, significar um verdadeiro cisma —, pode argumentar-se também que a mera votação e aprovação daqueles textos já significa uma rutura com a doutrina católica. Para já, não há qualquer indicação de que as conferências episcopais de outros países estejam empenhadas em seguir caminhos semelhantes: pelo contrário, o caso alemão transformou-se numa espécie de caso de estudo sobre o qual recaem os olhos de bispos de todo o mundo, na expectativa de perceber o que poderá verdadeiramente acontecer agora.
Apesar dos múltiplos alertas lançados antes da aprovação destes documentos e das tentativas de parar o processo enquanto não havia decisões tomadas, o Vaticano procurou agora colocar água na fervura e não continuar a alimentar o debate em torno de um possível cisma. “Não falemos de rebelião”, insistiu esta semana o cardeal secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin. “Na Igreja, sempre houve tensões e posições diferentes.”
Ainda assim, em declarações aos jornalistas esta semana, Parolin não deixou de apontar duras críticas aos bispos alemães, afirmando explicitamente que o Caminho Sinodal “está a tomar decisões que não se alinham exatamente com a atual doutrina da Igreja”. No entender de Parolin, que é o número dois da hierarquia do Vaticano, “uma igreja local, particular, não pode tomar uma decisão como essa [a bênção de casais do mesmo sexo], que envolve a disciplina da Igreja universal”.
“Terá, certamente, de haver uma discussão com Roma e com o resto das igrejas do mundo para clarificar quais as decisões a tomar”, disse ainda Parolin, que insistiu que a posição do Vaticano de 2021 sobre a proibição de abençoar uniões homossexuais se mantém e que qualquer debate sobre esse tema tem de ser tido no contexto do Sínodo dos Bispos global, que deverá terminar em 2024. “Aí vai decidir-se quais os desenvolvimentos que existirão.”
Mais radical foi a reação do cardeal alemão Gerhard Müller, antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que defendeu que os bispos alemães que votaram a favor da bênção para casais do mesmo sexo têm de ser punidos. “Tem de haver um julgamento e eles têm de ser condenados e retirados dos seus cargos, se não se converterem e não aceitarem a doutrina católica”, disse Müller em entrevista à televisão católica EWTN. “É muito triste que a maioria dos bispos tenha votado explicitamente contra a doutrina revelada, contra a fé revelada da Igreja Católica e de todo o nosso pensamento cristão, contra a Bíblia, a palavra de Deus nas sagradas escrituras, na tradição apostólica e na doutrina definida da Igreja Católica.”
O cardeal alemão, que atualmente já não se encontra na Conferência Episcopal Alemã, mas no Vaticano, disse ainda que quem votou a favor daquelas resoluções foi “influenciado por esta ideologia LGBT e woke, que é materialista e niilista”, e acrescentou que “é absolutamente blasfemo abençoar essas formas de vida que são, de acordo com a doutrina bíblica e eclesial, um pecado, porque todas as formas de sexualidade fora de um matrimónio válido são pecado e não podem ser abençoadas”.
Para já, o “Caminho Sinodal” alemão não se traduziu num verdadeiro cisma — e o Vaticano tem manifestado esperança de que o contexto do Sínodo dos Bispos em curso a nível global possa ser o palco onde se vão dirimir estes conflitos internos e onde poderá ser alcançado um compromisso eficaz nestes temas. Se esse compromisso falhar, subsiste o risco de uma cisão real. Independentemente do resultado desse processo, o que é certo é que, como apontava esta semana o vaticanista e editor do jornal Crux John Allen Jr., a crise em torno do “Caminho Sinodal” alemão já demonstrou os limites do poder do Papa. Apesar dos múltiplos apelos e críticas de Francisco ao processo dos bispos alemães, os responsáveis eclesiásticos seguiram em frente.
“A resposta alemã às críticas do Papa, para não falar dos avisos e críticas ainda mais explícitas de várias figuras de topo do Vaticano, reduziu-se a um ‘obrigado, mas não, obrigado’”, escreveu John Allen Jr., apontando o caso como uma lição aos “limites do poder papal”.