O ataque iraniano a duas bases aéreas no Iraque onde estão aquarteladas forças militares norte-americanas fez soar os alarmes: estava em curso a prometida retaliação pela morte do general Qassem Soleimani, um dos principais líderes militares iranianos, num ataque aéreo levado a cabo na semana passada pelas forças armadas dos EUA. A vingança seria “implacável”, assegurou na altura o líder supremo do Irão, Ali Khamenei.
No fim, a resposta foi essencialmente simbólica, um ataque sem mortos que muitos especialistas leram como um primeiro passo iraniano rumo à diminuição da tensão no Médio Oriente. Na manhã desta quarta-feira, já meio da tarde em Lisboa, Donald Trump reagiu com um discurso apaziguador. Anunciou novas sanções económicas sobre o Irão, mas nenhuma retaliação militar ao ataque iraniano. Como antecipado por vários analistas, Trump aproveitou a oportunidade dada pelo regime iraniano e os dois países saíram da crise satisfeitos: os EUA não sentiram necessidade de responder militarmente ao ataque devido às consequências limitadas do bombardeamento; e o regime iraniano agradou à opinião pública interna com uma retórica forte sobre a retaliação contra a América — que foi, nas palavras de Khamenei, “esmagadora”.
Para já, a crise militar parece arrefecer — mas regressa a pressão em torno do acordo nuclear. Se Teerão quer que os EUA levantem as sanções acordadas em troca do desmantelamento de instalações nucleares, Washington quer renegociar o acordo que considera ruinoso (e voltou a apelar ao Reino Unido, Alemanha, França, Rússia e China para que também abandonem o acordo).
No centro deste pico de tensão, a morte de Qassem Soleimani, num ataque com um drone no dia 3 de janeiro. O ataque foi justificado pelos Estados Unidos como necessário para impedir ataques contra cidadãos norte-americanos que o general estaria a preparar — e surgiu como pico numa escalada de tensão que já vem desde o momento em que o presidente dos EUA rasgou o acordo nuclear com o Irão. Nesta quarta-feira, Donald Trump chamou a Soleimani “o maior terrorista do mundo”, que devia ter sido “abatido há muito tempo”.
No Irão, o estratega militar Soleimani era uma das figuras mais amadas, um herói do regime. Prova disso foi o funeral do general, presidido por Khamenei e com a presença de milhares de iranianos nas ruas, que choraram a morte de um líder.
Ataque iraniano. Retaliação ou estratégia?
“A nossa vingança contra a América será terrível”, advertiu o presidente iraniano, Hassan Rouhani, depois da morte de Soleimani. “A vingança será severa”, tinha dito o líder religioso do país, Khamenei. Durante alguns dias, discutiram-se as formas como o Irão poderia vingar a morte do general. Os especialistas multiplicaram-se em teorias. Das mais previsíveis — o ataque a instalações americanas no Médio Oriente — às mais rebuscadas, como um ciberataque aos Estados Unidos ou uma guerra nuclear, tudo foi equacionado.
Na noite de terça-feira, as forças iranianas dispararam uma sequência de mísseis balísticos contra duas bases militares utilizadas pelos EUA no Iraque. Uma em Erbil, na região do Curdistão iraquiano, e outra na província de Anabar. O ataque não provocou nenhuma morte e causou danos estruturais limitados nas instalações.
Ainda assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Javad Zarif, assegurou através do Twitter que “o Irão tomou medidas proporcionais de auto-defesa”, cumprindo as normas internacionais e atacando “a base a partir de onde foram lançados ataques cobardes armados contra os nossos cidadãos e oficiais”. Já o líder Khamenei descreveu o ataque como “uma chapada na cara” dos EUA e sublinhou que “o povo do Irão deu uma resposta esmagadora” — embora tenha admitido que “isso não é equivalente ao que eles nos fizeram”.
Iran took & concluded proportionate measures in self-defense under Article 51 of UN Charter targeting base from which cowardly armed attack against our citizens & senior officials were launched.
We do not seek escalation or war, but will defend ourselves against any aggression.
— Javad Zarif (@JZarif) January 8, 2020
Em entrevista por telefone ao Observador a partir de Washington, o diretor para estudos iranianos do think-tank norte-americano Center for Strategic and International Studies, Ali Vaez, considera que o ataque “não foi proporcional, no sentido em que os EUA mataram um dos mais importantes líderes militares iranianos e o Irão não matou um único americano”. Para este académico, a resposta iraniana foi essencialmente “simbólica”.
Com efeito, como tem notado a imprensa internacional, há um caráter simbólico no ataque iraniano. Por um lado, os mísseis do Irão foram lançados por volta da 1h30 da manhã — a mesma hora do ataque de drone contra o general Soleimani. Vídeos do lançamento do drone foram divulgados pela imprensa iraniana àquela hora e até no Twitter o ataque foi relacionado com os EUA. Pouco depois do ataque, Saeed Jalili, um dos principais líderes políticos iranianos e negociador do país em questões nucleares, publicou na rede social uma bandeira do Irão — tal e qual o que Trump tinha feito no seu Twitter, com uma bandeira norte-americana, poucos minutos depois do ataque contra Soleimani.
Na estação televisiva norte-americana CNN, o editor diplomático Nic Robertson sublinhava na manhã desta quarta-feira que, se o Irão “quisesse matar muitos soldados americanos no Iraque, havia bases mais fáceis de atingir”. Na base de al-Asad, para onde foram lançados a maioria dos mísseis, o risco de danos colaterais contra civis era diminuto e os militares podiam abrigar-se facilmente caso recebessem o aviso atempadamente — como foi o caso.
No jornal britânico The Guardian, o correspondente no Médio Oriente Michael Safi destacava como “o ataque iraniano às bases americanas no Iraque pode satisfazer os dois lados”. Isto porque o regime iraniano adotou duas retóricas diferentes. Uma a nível interno — com Khamenei a dirigir-se às multidões exultantes com gritos de vitória sobre a América — e outra para fora das fronteiras: “Não procuramos uma escalada ou uma guerra, mas vamos defender-nos de qualquer agressão”, como disse Javad Zarif no mesmo tweet.
Dalia Dassa Kaye, diretora do think-thank norte-americano Center for Middle East Public Policy, afirma que “a resposta iraniana parece ter sido calculada de modo a evitar uma escalada maior”. Em comentários enviados por correio eletrónico ao Observador, a especialista norte-americana adverte, porém, que o ataque iraniano “representou uma escalada significativa, uma vez que foi um ataque direto de um míssil lançado pelo próprio Irão contra forças norte-americanas”.
“A resposta do Irão abre a porta à redução da tensão. Assim, o Irão pode satisfazer a opinião pública em casa ao mesmo tempo que deu a Trump uma oportunidade de reduzir a tensão na região”, concorda Ali Vaez. Na noite de terça-feira, Trump já tinha dado sinais de que iria aproveitar a oportunidade, ao escrever no Twitter: “Está tudo bem!”
Trump focado no acordo nuclear
A inexistência de resposta militar norte-americana ao ataque iraniano — que causou apenas “danos limitados” nas estruturas das bases — pode ser considerado um sucesso diplomático que evitou uma escalada de tensão que se previa catastrófica: “Um conflito regional seria devastador”, comentava Ali Vaez, que falou com o Observador ainda antes do discurso de Donald Trump.
De facto, soube-se já depois da intervenção do presidente norte-americano que o Irão e os EUA têm usado um canal diplomático da Suíça para comunicar nos últimos dias. “O canal comunicacional diplomático entre os EUA e o Irão que é fornecido pela Suíça no contexto do mandato do poder protetor continua a operar. A Suíça confirma que várias mensagens foram transmitidas através deste canal”, confirmou o Governo suíço num comunicado citado pela CNN.
No discurso que fez nesta tarde na Casa Branca — que começou com meia hora de atraso —, Donald Trump desfez as dúvidas de quem temia a possibilidade de uma escalada de tensão tão grande que redundasse numa guerra na região: “O Irão parece estar a recuar, o que é uma coisa boa para todas as partes envolvidas e uma coisa muito boa para o mundo”.
Começando o discurso por confirmar que nem os EUA nem o Iraque sofreram baixas com o ataque iraniano, Donald Trump deixou claro que não iria ordenar ações militares de retaliação. “Os Estados Unidos estão prontos para abraçar a paz com todos aqueles que a procurem”, assegurou mesmo, lembrando depois como o Estado Islâmico é um “inimigo natural” do Irão — e que, por isso, os dois países têm objetivos em comum que devem nortear um processo de paz.
https://observador.pt/2020/01/07/irao-lanca-misseis-a-bases-dos-eua-no-iraque/
Depois de dedicar grande parte do discurso a justificar a necessidade de matar Soleimani — “era o maior terrorista do mundo”; “estava a planear novos ataques a alvos norte-americanos”; “devia ter sido abatido há muito tempo” —, o presidente norte-americano focou-se na questão do acordo nuclear, tema na base de toda esta crise entre os EUA e o Irão.
Assinado em 2015, durante a administração de Barack Obama, o acordo nuclear obriga o Irão a levar a cabo um processo de desnuclearização em troca do levantamento das pesadas sanções económicas impostas pelos EUA — um processo acompanhado por inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica.
Em 2018, Donald Trump — que sempre se mostrou contra o acordo por permitir que o Irão retomasse em 2030 o seu programa nuclear e reabrisse as centrais em 2040 — decidiu retirar unilateralmente os EUA do acordo. Desde então e até recentemente, o Irão continuou a cumprir as obrigações decorrentes do acordo. Mais de um ano depois, o regime iraniano começou uma série de ações militares destinadas a provocar os EUA e a trazer Donald Trump de novo para o acordo nuclear, levantando novamente as sanções económicas. O ataque a duas refinarias sauditas por parte de rebeldes ligados ao Irão, em setembro de 2019, impediu o entendimento entre os dois países.
Foi neste contexto que Irão e EUA chegaram a dezembro de 2019 — mês em que uma milícia ligada ao regime iraniano lançou um ataque contra instalações militares no Iraque que matou um civil norte-americano que trabalhava com as forças armadas. Em retaliação, os EUA bombardearam bases ligadas a essa milícia na Síria e no Iraque. A 3 de janeiro, atacaram o general Qasem Soleimani — que conduziu ao pico da tensão entre os dois países.
Nesta quarta-feira, Donald Trump voltou a colocar o foco no acordo nuclear. Tanto que, antes sequer de cumprimentar os presentes na sala, afirmou: “Enquanto eu for Presidente dos Estados Unidos, o Irão nunca terá uma arma nuclear”. Só depois disse “bom dia”. Trump anunciou que os EUA vão impor, com efeitos imediatos, novas sanções económicas ao regime iraniano e apelou à Rússia, à China, ao Reino Unido, à França e a Alemanha para que também rasgassem o documento.
Para Dalia Dassa Kaye, a estratégia de Donald Trump não deverá ter o resultado que o presidente norte-americano espera. “Enquanto os EUA não aliviarem a pressão económica contra o Irão — e não há indicações de que isso esteja a acontecer — penso que podemos esperar que o Irão continue a não cumprir os seus compromissos nucleares. O acordo nuclear tem vindo a desfazer-se desde a retirada unilateral dos EUA, mas até agora o Irão ainda não o abandonou completamente”, explica a académica norte-americana ao Observador.
“Além disso, ainda temos o regime de inspeções em vigor. Sem um processo diplomático substancial, que significa mais do que falar em negociações, é improvável que o acordo nuclear de 2015 sobreviva”, reconhece Kaye.
Porém, não é com mais sanções que Trump terá sucesso, acredita a especialista. As sanções, defende, são “mais da mesma pressão económica que nos trouxe a este ponto de fricção” entre os países. “A expectativa é a de que a pausa no conflito possa levar-nos a repensar a política norte-americana e o que estamos a tentar alcançar. Se o objetivo é um acordo melhor, não é claro que duplicar as políticas de pressão máxima nos leve lá.”
E, embora o conflito militar tenha chegado a uma pausa, os dois especialistas ouvidos pelo Observador fecha a porta à possibilidade de o confronto continuar.
“O risco para uma escalada maior mantêm-se. E as condições que nos trouxeram a este ponto continuam. Por isso, ao mesmo tempo que esta pausa é positiva, não acredito que nos possamos sentar e esperar que as tensões entre os EUA e o Irão se resolvam sozinhas. A possibilidade de um conflito prolongado e de novas crises mantém-se”, considera Dalia Dassa Kaye
Também Ali Vaez sustenta que as condições do jogo não mudaram. “O problema é que a dinâmica que nos trouxe a este ponto não mudou. O Irão continua sob sanções americanas, os EUA continuam comprometidos com a sua estratégia, e a tensão que nos trouxe a este risco de confronto vai-se manter”, diz o académico a partir de Washington.
Além disso, o conflito não ficará limitado aos EUA e ao Irão, uma vez que “o Irão organizou a sua defesa de forma a poder alargar a guerra, com as milícias que apoia, na Síria, no Iraque, no Iémen e no Afeganistão”, acrescenta Ali Vaez, antes de sublinhar que Trump precisa de alguém mais sensível a esta questão na sua equipa. “Precisa de pessoas que possam implementar essa estratégia. O secretário de Estado, Mike Pompeo, tem atuado mais como um secretário da Guerra. O Presidente precisa de um enviado especial para negociar com o Irão.”
Os dois acreditam que o Irão ainda pode — e deverá — retaliar pela morte de Soleimani. “É difícil imaginar que fiquem satisfeitos com uma retaliação que seja apenas simbólica”, assinala Ali Vaez, destacando que “é possível que o Irão tente assinar um líder militar norte-americano, na região ou fora”. Porém, “isto pode não acontecer agora”, já que “os iranianos pensam a longo prazo”.
Também Dalia Dassa Kaye alerta para a mesma possibilidade: “Penso que devemos estar preparados para novas retaliações que podem ocorrer ao longo de meses e até anos, sob outras formas que não confrontos diretos entre os EUA e o Irão. Continua a haver uma atmosfera muito perigosa naquela região”.