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Que ficheiro é este que gera tanta polémica?

Não é de hoje que as empresas e os contribuintes singulares com contabilidade organizada lidam com um ficheiro chamado SAF-T (Ficheiro de Auditoria Padrão para Impostos, em português). É através desse ficheiro, alvo de legislação desde 2007, que têm sido comunicados à Autoridade Tributária, desde 2013, os documentos de faturação para o Portal E-Fatura e documentos de transporte de bens em território nacional. Mas esta não é a parte problemática da história.

A discórdia começa quando o Governo obriga os contribuintes, mais recentemente, a enviar esse tipo de ficheiro com informação relativa à contabilidade empresarial. Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), lembra ao Observador que, com essa medida, o Governo pretendia que fosse feito “o pré-preenchimento de alguns campos dos Anexos A e I da Informação Empresarial Simplificada” (IES) — uma declaração eletrónica entregue no Portal das Finanças que agrega informação fiscal, contabilística e estatística.

Neste caso, estava em causa sobretudo a declaração anual de informação contabilística e fiscal dos vários impostos. Tal como no E-fatura, pretendia-se facilitar a recolha de dados fiscais.

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Desde quando é que está em vigor?

Apesar da polémica, suscitada por propostas de revisão ou revogação desta medida, a verdade é que o sistema ainda não foi utilizado nenhuma vez. Mas está em marcha. A obrigação de entregar o SAF-T de contabilidade “esteve inicialmente prevista para entrar em vigor a partir do período de tributação de 2017”, recorda Paula Franco, da OCC, mas tem vindo a ser “sucessivamente adiada”.

Neste momento, está prevista a aplicação da medida “ao período de tributação de 2021”. Ou seja, o SAF-T relativo à contabilidade deverá ser entregue em 2022.

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Porque é que lhe chamam “Big Brother fiscal”?

No SAF-T relativo à contabilidade “estão incluídos todos os registos contabilísticos das operações realizadas pela empresa, incluindo as vendas aos clientes, compras aos fornecedores, movimentos bancários e outros”, nota Paula Franco, bastonária da OCC.

A medida está longe de ser consensual, as críticas não são de hoje, e nem a Ordem dos Contabilistas nem a oposição, em especial à direita, estão convencidos. Na proposta que o PSD apresentou (e viu chumbada) esta quarta-feira no Parlamento, para tentar revogar esta medida, os sociais-democratas consideram que “a informação a disponibilizar contém dados sensíveis dos contribuintes”. Ou seja, de acordo com este argumento, o Estado quer ter mais informação das empresas do que aquela que precisaria — o que já valeu à medida a alcunha pejorativa de “Big Brother fiscal”.

Além disso, os críticos dizem que está longe de ser uma medida de simplificação, como se pretendia.

PCP e direita unidos para travar acesso do Fisco a todos os dados sobre empresas

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Que dados sensíveis são esses?

Os dados considerados sensíveis dizem respeito, por um lado, a “informação pessoal constante dos registos contabilísticos e das bases de dados de clientes e fornecedores que constam do SAF-T”, indica Paula Franco, da OCC. Estão ainda em causa “as datas em que os registos foram efetuados, alterados ou anulados”, bem como “informação do utilizador do programa que efetuou tais introduções, alterações ou anulações” e “dos preços, margens e condições comerciais das empresas”.

O advogado João Espanha entende, por isso, que através da análise desses dados, o Estado “pode descobrir padrões de consumo” de indivíduos ou empresas. “A Autoridade Tributária quer poder fazer cruzamento de dados, uma coisa que não é muito bonita de se fazer”, considera o fiscalista. “Na prática, pode haver determinados segredos comerciais e dados sensíveis que, automaticamente, são transmitidos à Administração Tributária”.

João Espanha considera que o Estado “não precisa de saber tanto detalhe para conseguir realizar uma inspeção interna”.

Confrontado com cada um destes argumentos, o Ministério das Finanças afirma apenas, numa resposta genérica ao Observador, que este sistema “é bom para as empresas, para os contabilistas e para o país”, ressalvando, no entanto, que só avançará quando estiverem criadas “todas as condições de confiança dos vários agentes para que se possa implementar com segurança e ganhos de simplificação e fiabilidade de dados”. Garante ainda estar “disponível para introduzir todas as melhorias” que permitam avançar com a medida.

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais já teve oportunidade, no entanto, de rejeitar de forma mais detalhada a existência de um “Big Brother fiscal”. “O que será reportado serão apenas códigos e valores. Não vamos ter acesso a nomes e tudo o que é texto e descritivos será informação encriptada”, garantiu António Mendonça Mendes aos deputados no final de abril.

A Autoridade Tributária “não precisa do ficheiro SAF-T para rigorosamente nada mais, além do que já hoje utiliza quando acede aos dados no âmbito de um processo inspetivo”, assegurou ainda.

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Só agora é que o Fisco tem acesso a esses dados sensíveis?

Este tipo de dados já está disponível para a Autoridade Tributária desde 2008, sublinha Paula Franco, mas “de uma forma ad-hoc, casuística, através dos procedimentos de inspeção tributária”, que “são justificados no âmbito dessa inspeção”.

Agora, no entanto, “com a introdução da obrigação de envio sistemático e generalizado para todas as empresas, a AT passa a ter acesso a todas estas informações de uma forma anual”.

E ainda que tenha sido “introduzida uma norma de salvaguarda destes dados mais sensíveis, através de um procedimento de encriptação dos mesmos, mediante uma chave digital criada e guardada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM)”, Paula Franco entende que se criaram “mais burocracias”.

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Que propostas de alteração foram apresentadas no Parlamento?

O PCP queria que a Autoridade Tributária recebesse apenas um ficheiro anual com um resumo da informação que é necessária para preencher o ficheiro SAF-T. Uma proposta que foi aprovada na generalidade, com rejeição apenas do PS e do PAN.

Depois desta sessão no Parlamento, o PSD tentou alterar a proposta comunista, indo mais longe, ao prever a revogação deste regime de envio do SAF-T para a contabilidade.

Mas na especialidade a posição do Bloco de Esquerda, que se absteve, acabou por ser decisiva. As duas propostas, do PCP e do PSD, foram rejeitadas.