No final da reunião com o Governo, em que ouviu o ministro das Finanças apresentar as linhas gerais do Orçamento do Estado para 2021, o líder parlamentar do Bloco de Esquerda referiu-se ao alívio das regras europeias para o défice — que obrigavam os países a não ultrapassar a linha vermelha de endividamento dos 3% face ao respetivo Produto Interno Bruto. “Devemos perceber que estamos numa situação extraordinária e, exatamente por isso, o conjunto de pressões que existiam em torno do valor — a questão do défice — não existe neste momento”, sublinhou Pedro Filipe Soares, esta terça-feira, no Parlamento. A ideia é esta: o garrote orçamental da Europa foi aliviado e o Governo português tem, agora, margem para abrir mais a torneira do investimento público. Mas Bruxelas suspendeu, de facto, a regra de ouro do Tratado Orçamental? E Portugal está livre de consequências impostas pela Comissão Europeia se — ou, melhor dizendo, quando — o défice disparar?

Défice acima de 7% este ano mas com redução programada já para 2021. Esquerda contesta

As mais recentes previsões do Banco de Portugal divulgadas esta terça-feira, apontam para um défice de 8,1% no final de 2020. Isso significa que, em tempos de normalidade, o país falharia em mais de cinco pontos os limites impostos por Bruxelas. Mas estes não são tempos de normalidade. O que significa que as regras que valiam até ao primeiro trimestre do ano estão, até ver, suspensas. Foi precisamente isso que destacou a presidente da Comissão Europeia, na semana passada, quando esteve em Lisboa e foi questionada pelo Observador sobre um eventual regresso das regras do défice.

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“Neste momento”, começou por referir Ursula von der Leyen, “acionámos a cláusula de salvaguarda”, que suspende as obrigações orçamentais dos Estados-membros no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento. “Temos de ser flexíveis, acima de tudo, porque este é o momento de apoiarmos as pessoas e as empresas. Isto é muito importante. E este não é o momento para mudar nada. Essa é a razão pela qual eu não vou falar em cronogramas ou datas, mas em condições”, acrescentou a chefe do Executivo europeu, recusando-se a identificar o momento em que os limites do défice voltam a vigorar. No imediato, o objetivo passa por “investir na economia, para a economia poder sobreviver à pandemia, voltar forte e, depois disso, quando passar a pandemia, obviamente que teremos de falar de estabilidade fiscal”.

Ficou, assim, claro que a decisão de suspender as regras orçamentais, anunciada em março, foi isso mesmo: uma decisão com efeitos temporários. E, mesmo que, no horizonte imediato, não seja ainda possível vislumbrar o momento de regressar à realidade pré-pandemia, a verdade é que, para os responsáveis europeus, esse regresso é um objetivo. Recorde-se, por exemplo, o que já tinha dito o vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, em maio, aquando da divulgação do pacote da primavera do semestre europeu:

Para esta fase imediata, o nosso foco é investir em saúde pública e proteger empregos e empresas. À medida que avançamos para a recuperação, o Semestre [Europeu] será essencial para dar uma abordagem coordenada para colocar as nossas economias de volta ao trilho do crescimento sustentável e inclusivo – ninguém deve ficar para trás.”

A esse respeito, o primeiro-ministro esclareceu, no final da semana passada, que a expectativa do Governo português era a de que as anteriores regras não fossem reintroduzidas antes de as economias europeias voltarem ao desempenho que estavam a demonstrar na fase anterior à pandemia — portanto, no final do ano passado. “A ideia que existe — e que, enfim, não está consolidada, apesar de se tender para um consenso — é que esta suspensão das regras do pacto de estabilidade e crescimento se mantenha até os países recuperarem o nível de PIB que tinham em 2019”, disse António Costa, em Bruxelas, no final de um encontro com os responsáveis do executivo europeu. “De acordo com as previsões da Comissão, isso não acontecerá seguramente em 2021 e poderá começar a acontecer em 2022”, concretizou o primeiro-ministro. Uma posição confirmada, entretanto, pelo comissário europeu para a Economia. Em conferência de imprensa, esta terça-feira, Paolo Gentiloni disse que “o pacto de estabilidade está suspenso em 2021”, uma informação que chegou, há dias, aos ministros das Finanças da União que se preparam para fechar os orçamentos do próximo ano.  Também esta terça-feira, o Governo sinalizou a intenção de começar a reduzir o défice já em 2021.

Crise política provocada pelo OE? “Estou confiante que os políticos portugueses vão ser muito responsáveis”

As regras orçamentais europeias estão, portanto, suspensas. Mas, e quanto à segunda questão: Portugal está livre de reincidir num Procedimento por Défice Excessivo, agora como consequência de um défice galopante devido à resposta à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus? Ora, nesse mesmo relatório da primavera, divulgado em maio, pode ler-se que “o legislador da União já alterou os quadros legislativos pertinentes, no intuito de permitir aos Estados-Membros mobilizarem todos os recursos não utilizados dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, para que possam fazer face aos efeitos excecionais da pandemia de Covid-19”; mudanças na legislação comunitária que “proporcionarão maior flexibilidade, bem como procedimentos simplificados e harmonizados” de resposta à crise. Ou seja, e em, suma, diz o mesmo documento, “dada a ativação da cláusula de derrogação geral [a tal suspensão da regra de ouro], não se justificam para Portugal outras etapas no âmbito do procedimento relativo aos desvios significativos” do défice.

Conclusão

É verdade que, como afirma Pedro Filipe Soares, “não existem”, neste momento, as “pressões” para que Portugal – juntamente com os restantes países da União Europeia, cumpram o limite de 3% do défice. Essa posição tem sido assumida pelos responsáveis europeus nos últimos meses e foi reiterada por Ursula von der Leyen na semana passada. Mas também é verdade que essa é uma realidade passageira. Ainda sem data definida, prevê-se um regresso aos limites impostos pelo Tratado Orçamental.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

CERTO

NOTA: este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI

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