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Está em pleno andamento a aguardada COP26, a conferência das Nações Unidas sobre as alterações climáticas em que os países de todo o mundo estão a atualizar os seus compromissos climáticos ao abrigo do Acordo de Paris — e, à conta da cimeira de Glasgow, a crise climática está novamente no topo da agenda mediática. |
Com o debate em torno do aquecimento global, da inevitável subida do nível médio das águas do mar, dos fenómenos climáticos extremos que se perspetivam no futuro e já se sentem no presente, da transformação de algumas partes do mundo em desertos humanos ou da possível escassez de recursos, surgem os igualmente inevitáveis apelos públicos, emitidos por celebridades, ativistas, marcas e decisores políticos, para que todos levemos uma vida sustentável. |
Transportes públicos, carros elétricos, mais vegetais e menos carne, produtos mais duradouros, e por aí fora. As fórmulas da sustentabilidade quotidiana são muitas e conhecidas. Mas, com frequência, acabamos por esbarrar na realidade: um carro elétrico é significativamente mais caro do que um carro a combustível; os transportes públicos são frequentemente ineficazes, raros ou inexistentes; a alimentação biológica e sustentável também nos custa mais do que a convencional. |
Tudo isto resulta de uma economia em larga medida assente no petróleo, como o demonstrou eficazmente a recente escalada dos preços dos combustíveis. Milhares de portugueses cruzaram a fronteira com Espanha em busca de gasolina mais barata, inúmeros setores advertiram para o inevitável aumento de preços de todo o tipo de bens e serviços devido à subida do custo dos transportes e o Governo acabou por intervir, recorrendo ao programa IVAucher para oferecer aos portugueses um desconto de 5 euros por mês em combustíveis. |
Temos, de facto, uma economia profundamente dependente dos combustíveis fósseis, com o preço dos combustíveis a influenciar o custo de praticamente todos os bens e serviços que consumimos. Porém, há um fator que ainda não influencia particularmente o preço do que compramos: o custo ambiental. Por isso, ainda pagamos (quase sempre) mais pelo que é sustentável do que pelo que é poluente. Uma mudança de paradigma, dizem os especialistas, poderá inverter esta realidade. |
Que as alterações climáticas são dos debates centrais e mais importantes do nosso tempo é algo de que já praticamente ninguém duvida. Mas é legítimo perguntar, olhando para o nosso próprio quotidiano: afinal, temos dinheiro para ser sustentáveis? |
Alguns dias antes de virar as minhas atenções para Glasgow, fui em busca de algumas respostas a esta questão frequente entre quem quer ser amigo do ambiente, mas encontra na carteira um dos principais obstáculos à sustentabilidade. Conclusão? É verdade que os produtos amigos do ambiente são ainda mais caros do que os convencionais. Mas também é verdade que isso só acontece porque a economia está desequilibrada no sentido do petróleo. “Em muitos casos, estou a comprar um determinado bem que tem um impacto ambiental que depois vai custar na saúde das pessoas, no abastecimento da água”, respondeu-me o ambientalista português Francisco Ferreira, dirigente da associação Zero. “Tenho bens e práticas insustentáveis que acabo por adquirir mais baratas porque não pago o verdadeiro custo.” |
O mesmo apontou o economista guineense Carlos Lopes, ex-secretário-geral-adjunto das Nações Unidas e um dos mais reputados analistas da relação entre o clima e a economia. Os custos ambientais ainda não têm um peso no preço final de bens e serviços, disse ele: “Só se refletem como efeitos colaterais, mas não enquanto custos quando estão a ser explorados os meios ambientais.” |
A solução? “Precisamos de mudar a economia”, diz Carlos Lopes. Isso faz-se deslocando o dinheiro atualmente alocado à economia do petróleo para a economia verde. Um exemplo em Portugal: o recurso ao Fundo Ambiental (que arrecada dinheiro oriundo dos impostos sobre o petróleo, entre outras fontes de receita) para financiar o programa de redução do preço dos passes dos transportes públicos. A transição vai difícil e cara, reconhecem a maior parte dos especialistas. Durante esse período, está nas mãos dos decisores políticos implementar medidas que permitam, artificialmente, inverter os equilíbrios económicos atualmente em vigor. |
COP26 já começou a dar frutos (mas ainda só no papel) |
Para isso, impõe-se que os países adotem uma visão ambiental e climática da economia e das finanças. Foi isso que o ministro das Finanças britânico, Rishi Sunak, tentou ilustrar quando subiu esta quarta-feira ao palco da COP26, em Glasgow, com uma versão verde da clássica pasta vermelha que simboliza o Orçamento do Estado no Reino Unido. Sunak deu o mote para um dia de debate na cimeira sobre a importância de mudar o paradigma do sistema económico e financeiro, de modo a que a economia passe a trabalhar em prol do ambiente — e não no sentido oposto. |
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Na COP26, Rishi Sunak fez um breve discurso apontando caminhos sobre como o mundo poderá pagar a fatura da transição climática — que exigirá investimento no imediato, mas compensará a médio e longo prazo. Sunak sublinhou a relevância do investimento público (nomeadamente, através dos compromissos assumidos pelo G20 de mobilizar 100 mil milhões de dólares anualmente para ajudar os países mais pobres a fazer a transição energética) e do investimento privado (através do incentivo à mobilização de capital privado para investimentos sustentáveis). Mas, para Sunak, o grande objetivo deverá ser a transformação integral do sistema financeiro num sistema verde: a obrigatoriedade de as empresas publicarem os seus impactos ambientais e os mecanismos de mitigação será um dos fatores essenciais. |
À hora que Rishi Sunak subia ao palco da COP26, a maioria dos chefes de Estado e de Governo que estiveram presentes nos dois primeiros dias da cimeira já se encontravam a caminho de casa, deixando os trabalhos da cimeira entregues às representações nacionais — que incluem ministros, cientistas e outros delegados que, nos próximos dias, vão debater uma série de temas específicos e tentar chegar a um acordo final para todos os participantes da cimeira assinarem na próxima semana. |
Para trás ficam dois dias de cimeira de alto nível, que incluíram discursos de peso do Presidente dos EUA, Joe Biden, do secretário-geral da ONU, António Guterres, do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, da chanceler alemã, Angela Merkel, ou do Presidente francês, Emmanuel Macron — e, sobretudo, três compromissos fulcrais: |
- O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou o compromisso do país de alcançar a neutralidade carbónica até 2070. A Índia é o terceiro maior poluidor do mundo (atrás da China e dos EUA) e ainda tem uma economia profundamente dependente do carvão, que representa mais de dois terços da sua energia. Porém, até agora, a Índia ainda não tinha assumido o compromisso de alcançar a neutralidade carbónica, enfatizando até aqui a necessidade de os países desenvolvidos ajudarem os países em vias de desenvolvimento a operar a transição energética. O anúncio da Índia deixou o anfitrião da cimeira, o primeiro-ministro Boris Johnson, “cautelosamente otimista” com os resultados da COP26 até agora: “90% do mundo já se comprometeu com a neutralidade carbónica, incluindo a Índia”, disse Johnson.
- Mais de 100 países comprometeram-se a travar a desflorestação a nível global — e a reverter os seus efeitos — até 2030. O acordo foi o primeiro grande sucesso da COP26, noticiado na segunda-feira e firmado na terça-feira, e tem especial relevância por ter entre os seus signatários o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que tem jurisdição sobre a Amazónia e que tem sido frequentemente criticado por não fazer o suficiente em defesa de uma floresta tropical descrita como “os pulmões do planeta”. Assinaram ainda o acordo os EUA, a China e vários outros países.
- Cerca de 90 países assinaram um acordo impulsionado pelos EUA e pela União Europeia com o compromisso de cortar as emissões de metano para a atmosfera em 30% até 2030. O metano é o segundo gás com efeito de estufa mais emitido no mundo e tem um potencial de aquecimento do planeta muito maior que o dióxido de carbono, estimando-se que seja responsável por quase metade do aquecimento do planeta registado desde a era pré-industrial até hoje. A comunidade científica perspetiva que um corte significativo nas emissões de metano (algo que pode ser feito com poucos custos ou até com lucro para Estados e empresas) possa reduzir o aquecimento global em 0,3ºC até 2040. O impacto poderá ser ainda maior se a Rússia, a China e a Índia também vierem a aderir ao pacto — algo que, até agora, ainda não fizeram.
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Naturalmente, estes compromissos assumidos no plano político vão agora precisar de se traduzir em medidas técnicas concretas que permitam que as ideias saiam do papel. Com os chefes de Estado e de Governo fora de cena, caberá agora às delegações dos vários países negociar um acordo final para a COP26 — e caberá aos governos de cada nação signatária assegurar que os compromissos gerais assumidos em Glasgow podem ser alcançados. E a história recente do combate às alterações climáticas mostra que um objetivo escrito num acordo não se reflete necessária nem imediatamente em ações concretas para o atingir. Basta pensar no próprio Acordo de Paris, que pretende manter o aquecimento global até ao final do século bem abaixo dos 2ºC em relação ao nível pré-industrial (e, idealmente, nos 1,5ºC) — os compromissos atuais dos signatários conduzirão o planeta a um aquecimento de 2,7ºC. |
Um dos objetivos centrais da COP26 é que os vários países aumentem a ambição dos seus compromissos para que o objetivo de Paris se mantenha ao alcance. Muitos líderes globais, incluindo António Guterres e Boris Johnson, já alertaram para o enorme risco de falhanço da COP26 no que respeita ao objetivo central da cimeira. Será possível colocar no papel compromissos suficientes para limitar o aquecimento global a 1,5ºC? Ou vão falhar os consensos, como em Madrid em 2019? Na próxima edição desta newsletter, já será possível fazer o balanço. |