Parece estar na altura de fazer o escrutínio dos escrutinadores.

A forma como a redacção do Observador (jornal e rádio) tratam a informação sobre a epidemia está mais próxima do Secretariado Nacional de Informação que do jornalismo.

Na opinião, o Observador mantém uma razoável diversidade, mas a redacção adoptou o princípio base referido por Sara Antunes Oliveira (no dia 1 de Março na rádio): “As pessoas deviam ter todas na cabeça uma mesma ideia: isto funcionou, porque confinámos, se desconfinarmos mal, vamos ter um problema ainda maior.”

Considerar que o papel da imprensa é contribuir para que todas as pessoas deveriam ter a mesma ideia na cabeça, condicionando a liberdade de pensamento e expressão (sim, de expressão, a citação acima de Sara Antunes Oliveira correspondia a uma crítica radical ao simples facto de Marta Temido ter dito uma coisa trivial e sensata, a de que ainda era preciso saber melhor o que se tinha passado no Natal, incluindo o efeito da anomalia meteorológica que ocorreu em Portugal entre 24 de Dezembro e 20 de Janeiro), é o que verdadeiramente aproxima do SNI o tratamento da informação sobre a epidemia produzida pela redacção do Observador, afastando-a do que é a essência do jornalismo: o escrutínio dos factos, deixando aos leitores as opções sobre as ideias que querem ter na cabeça.

A redacção do Observador organizou um livro branco da epidemia, para o qual chama um conjunto de especialistas, mas, estranhamente, nem um único dos especialistas convidados é epidemiologista com provas dadas na gestão de epidemias. Por exemplo, excelentes pneumologistas clínicos ou especialistas em Medicina Interna não estão especialmente qualificados para discutir epidemias. A sua formação é orientada para cada doente à sua frente, não para a compreensão de fenómenos sociais que, esmagadoramente, se desenrolam fora dos sistemas de saúde. Médicos de Saúde Pública, mesmo não sendo epidemiologistas, já terão uma preparação mais útil para a discussão sobre a epidemia, mas está por explicar a sistemática preferência por alguns médicos em detrimento de outros, em especial Ricardo Mexia, cujo curriculum não sugere nenhuma relevância especial para esta discussão, a não ser a circunstância, fortuita, de ser presidente de uma associação de defesa dos interesses dos médicos de Saúde Pública.

Ainda assim, jornalistas do Observador citam os especialistas que escolhem (no caso, um especialista em Matemática, cuja ligação com a gestão de epidemias não tem mais de um ano) a fazer afirmações gravíssimas – “sem espaço nas unidades de cuidados intensivos, muitos doentes acabavam por morrer no internamento geral sem usufruir de tratamentos que lhes teriam prolongado a vida” – sem a menor base factual, como o próprio Observador demonstra num dos capítulos do livro branco.

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Este tipo de citações, sempre, sempre no mesmo sentido, chegam ao ridículo de se afirmar, a 23 de Março: “Na República Checa, que teve quase 18 mil casos em janeiro, a incidência ronda neste momento os cerca de 7.000 casos e a tendência é de subida”, quando o número de casos está a descer na Chéquia desde a primeira semana de Março.

É aliás extraordinário como a redacção do Observador não entende que não pode afirmar que foi o fecho das escolas que motivou a descida de casos a partir do fim de Janeiro (ou seja, uma semana depois desse fecho e de ter havido a votação das presidências a 24 de Janeiro) e, ao mesmo tempo, estar a agora a dizer que uma semana de intervalo é pouco para avaliar o efeito do desconfinamento: das duas uma, ou uma semana é suficiente para avaliar efeitos de medidas nos dois casos, ou não é suficiente nos dois casos. O que não é possível, é a redacção do Observador passar o tempo a caucionar as mudanças de critério dos tais especialistas especiais que alimentam a narrativa do medo da epidemia.

Eu sei que é impossível fazer jornalismo isento de erros, em especial em processos tão complexos como uma epidemia, que junta a complexidade dos processos naturais (como é a evolução de uma doença altamente contagiosa) à complexidade dos processos sociais.

É exactamente pela complexidade e incerteza elevadíssimas, que a redacção do Observador tinha a obrigação moral de se manter solidamente ancorada aos princípios base do jornalismo, em vez de se convencer de que tem o papel social que se atribui ao poder: conduzir as sociedades para as melhores opções possíveis.

Desde muito cedo, quando a redacção do Observador achou normal andar a denunciar as pessoas que supostamente não cumpriam as regras, escrutinando as pessoas comuns em vez de escrutinar o poder, que se adivinhava que a cobertura da epidemia não ia correr bem.

Mas ao ponto a que a redacção do Observador chegou, francamente, nunca pensei que seria possível chegar.