Na política europeia está em plena laboração um paradoxo deveras interessante. De um lado, a perda de centralidade do Estado-nação e a sua incapacidade para reconfigurar a sociedade nos planos global e europeu, do outro lado, a radicalização populista, nacionalista e autonomista, da política doméstica que recupera o Estado central como se estivéssemos “órfãos de Estado”. A história, a geografia e os territórios estão, pois, de regresso. A política europeia não gosta da geopolítica, mas é o que aí vem. Vejamos, porém, mais de perto, qual é a verosimilhança política e a arte de todo este exercício paradoxal de governação.

O ano especial de 2019

Depois de uma década extraordinária (2008-2018) a resolver, dirão uns, a adiar, dirão outros, os problemas do capitalismo bancário e financeiro, o ano de 2019 apresenta-se como um tempo de renovação politico-partidária e politico-institucional. As eleições para o Parlamento Europeu e as eleições domésticas em vários Estados membros, ao refrescarem a representação política com liberais, verdes e nacionalistas, irão alterar o equilíbrio de poderes, as coligações maioritárias e, portanto, também, a liderança das diversas instituições europeias. Estamos, assim, perante um ano de muita incerteza: não sabemos o futuro da “políty europeia” que data de 2007 com a assinatura do Tratado de Lisboa, não sabemos o futuro da “policy europeia” depois das políticas de austeridade e dos programas de resgate, não sabemos a sorte da “politics europeia” uma vez capturada pelo “diretório franco-alemão”, mas, agora, posta em causa pelo novo equilíbrio de forças, poderes e lideranças políticas.

O risco de uma balcanização do sistema politico europeu

Depois das eleições para o Parlamento Europeu, talvez a característica mais sublinhada seja, mesmo, o pluralismo e a fragmentação da representação politico-partidária nos planos europeu e nacional. Este facto irá repercutir-se, inevitavelmente, no processo politico europeu de tomada de decisão, pois, é bom não esquecer, são os governos nacionais que tomam decisões nos vários conselhos em Bruxelas, a saber, no Conselho Europeu, Conselho de Ministros e Conselho do Euro Grupo. Do mesmo modo, fica muito mais complexo todo o procedimento legislative de co-decisão entre o Parlamento e o Conselho. Doravante, isto significa que é muito mais difícil a formação de uma vontade política maioritária que seja favorável a decisões importantes em matéria europeia.

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Há quatro riscos políticos de fraturação iminente que precisam de ser acautelados para evitar a balcanização da política europeia. O primeiro risco político reporta-se aos efeitos do Brexit por via da chamada “teoria do precedente”, isto é, a escolha deliberada de uma linha dura de negociação apenas com o intuito de impedir ou condicionar novos pedidos de saída. O Reino Unido é um parceiro privilegiado e mesmo fora da União essa parceria deve ser abordada com moderação sob pena de efeitos não-desejados. O segundo risco político relaciona-se com a teoria da “Europa a várias velocidades”, no que diz respeito, por exemplo, à Europa do mercado único digital, da moeda única, da segurança e defesa e imigração. A perceção imediata, sobretudo para os países do leste europeu e em especial o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubes” ressentida por eles como discriminatória. O terceiro risco tem a ver com as relações transatlânticas, a crise do multilateralismo ocidental e a reestruturação das organizações internacionais do chamado “mundo ocidental”. Finalmente, o ultimo risco tem a ver com uma rutura eventual do diretório franco-alemão, sobretudo depois da saída da chanceler Merkel. Em todos os casos, a política europeia deve ser conduzida com moderação e usada em benefício próprio para reforço da sua coesão interna.

A arte (e o modo) de governação europeia

A complexidade é o preço a pagar pela diversidade. Na arte da integração este é o ponto em que nos encontramos. Uma mistura bem temperada de integração, cooperação, coordenação e regulação, cada um destes conceitos inspirando um sector particular de políticas públicas.  De um modo geral, o ecletismo, na ausência de um quadro conceptual bem estabelecido, acaba, nuns casos, por esclarecer e aprofundar novas linhas de trabalho, noutros casos, por lançar intuições metodológicas prometedoras, noutros, ainda, por acompanhar a moda neoliberal dos últimos anos. Não podendo nós ser conclusivos acerca do território delimitado pela designação “modo de governação europeia”, é já um progresso que um conceito de ocasião seja capaz de se colar a uma realidade caracterizada por um tráfego intenso e onde a administração de interesses toma, cada vez mais, o lugar da governação política. Se quisermos, “um modo que vai dos interesses aos compromissos por intermédio das instituições”. Vejamos, mais de perto, os traços principais deste modo de governação, uma verdadeira arte da governação.

Não obstante a parlamentarização crescente do sistema político da União, desde Maastricht, a que se juntam alguns elementos de democracia participativa associados à instituição em concreto da cidadania europeia, deve reconhecer-se que, ainda hoje, predomina a lógica funcional-procedimental, talvez numa versão mais neo-institucionalista do que neo-funcionalista, devido à autonomia crescente e à legitimidade ativa de que gozam as instituições. É, justamente, esta legitimidade estatutária, que, ao alimentar os vícios e as virtudes da forma, acaba, inelutavelmente, por segregar novos argumentos funcionais-procedimentais, que congestionam o discurso e o espaço públicos.

Devo dizer, no entanto, que o projeto de construção europeia não progride por intermédio de opções programáticas, realizadas regularmente, tendo como mediadores os partidos políticos constituídos à escala da União. Não temos, afinal de contas, uma “nação europeia” para fazer escolhas democráticas deste calibre, nem sequer podemos pretender eleger um “interesse europeu” à semelhança de um “interesse nacional”, de inspiração republicana, já de si, nos tempos que correm, de poucas convicções e mitigada paixão.

E aqui chegamos à raiz da governação conjuntiva ou consociativa com o “compromisso em lugar da deliberação”. O compromisso é o troféu político da instituição, a sua razão de ser. A governação consociativa é uma estratégia proactiva visando atingir o compromisso em estruturas e processos complexos. Enquanto a deliberação seleciona, segrega e exclui, o compromisso esforça-se por ser compreensivo e inclusivo. Por isso, dificilmente registaremos compromissos-firmes ou definitivos, certos ou errados, quando muito diferentes enfoques ou perspetivas de abordagem, nacional, comunitária e europeia. Não surpreenderá, por isso, que os processos informais, no interior dos procedimentos formais relativos às deliberações e ao voto em Conselho de Ministros, de ajustamento sistemático das propostas iniciais da Comissão com as posições comuns do Conselho e as leituras do Parlamento, acabem por se revelar decisivos na formação de um compromisso final. O compromisso tem, todavia, um ponto fraco: na lógica compromissória perde nitidez, clareza e precisão o efeito útil e direto do ato normativo no foro jurídico dos particulares. Mais uma vez, a juridificação externa e o controlo político a surgirem prejudicados. Não é essa, afinal, a natureza do processo político-legislativo que é inerente à figura da diretiva comunitária?

Em certo sentido, a instituição está pronta para substituir o político-decisor. Se a este faltar imaginação ou discernimento, a instituição porá a sua inércia e os seus procedimentos ao serviço de um compromisso. Apenas lhe compete evitar o impasse funcional-procedimental, não, obviamente, o impasse político. De facto, mesmo, ou sobretudo, nos piores momentos, a rotina burocrática pode ser boa conselheira.

Por outro lado, a competição interinstitucional aguça a sensibilidade da legitimidade ativa de cada instituição. Esta escalada crescente de mais autonomia e cooperação entre instituições é imparável. A instituição fornece não apenas procedimentos, mas, também, enquadramento e políticas transnacionais e supranacionais. Este é o seu principal valor acrescentado. Quanto maior a heterogeneidade e a diferenciação entre estados membros, maior a necessidade de políticas de enquadramento que orientem a trajetória de cada Estado membro. Por isso, é impossível negar algum “narcisismo institucional”, de uma legitimidade original que se quer transformada em legitimidade ativa, e tanto mais quanto o processo de integração se aproxima da sua fase pré-federal ou republicana. Dito de forma mais simples, são as próprias instituições que conhecem, melhor do que ninguém, os limites técnico-jurídicos da sua própria reforma, não deixando, por esse facto, de condicionar o próprio curso da negociação intergovernamental. Como Maastricht bem revelou, à “politificação revolucionária” segue-se a “institucionalização reformista” como forma de consolidar normas e procedimentos, de estabilizar expectativas, até que um outro momento refundador reinicie o processo político propriamente dito.

Notas Finais

Há uma linha de rutura que a União Europeia parece, cada vez mais, “promover involuntariamente”, para ser benevolente, qual seja, a que separa os interesses que não são capazes de projetar os seus problemas para fora das fronteiras internas e os interesses que seguem a mudança de escala dos mercados, para se acolherem, preferencialmente, nas políticas públicas europeias, contra uma globalização extraeuropeia que eles acompanham dificilmente. Os primeiros refugiam-se no intergovernamentalismo e procuram nas políticas domésticas uma salvaguarda para os seus interesses, os segundos parecem acreditar na integração regional supranacional, como forma de obter algumas garantias face à concorrência e negociação internacionais. Este é o ponto crítico em que nos encontramos recorrentemente, e que, agora, separa nacionalismo protecionista e liberalismo cosmopolita, o que equivale, mais uma vez, a pôr a questão fundamental: como repartir os custos sociais do ajustamento regional e internacional, de modo a manter as condições mínimas necessárias à continuação do projeto da construção europeia?

A este propósito, podemos, aliás, com propriedade, falar de “choques sociopolíticos adversos e assimétricos”, razão pela qual se justifica uma política antecipatória de regulação que evite o eclodir de uma exclusão disruptiva do tecido social em algumas regiões e sectores. A questão social mostra bem os limites da diferenciação de interesses e das políticas públicas que os procuram acomodar. Os custos de transação podem tornar-se, por isso, insuportáveis entre exclusão e inclusão social.

Sem exagero, talvez possamos afirmar que a regulação é o poder natural próprio de uma organização supranacional, “sui generis”, dotada com meios orçamentais reduzidos, como é a União Europeia. No terreno, o poder regulatório identifica-se com o federalismo jurídico-monetário existente e as políticas de concorrência e pode, mesmo, ser estendido para outras áreas com maior dificuldade de integração, sendo certo que será de aplicação prioritária na grande área transversal que é a sociedade da informação e do conhecimento. Por outro lado, e dado que trabalha, essencialmente, com recursos técnico-jurídicos, a regulação é uma espécie de governação cinzenta, muito próxima dos interesses corporativos da tecno-burocracia institucional. Como se pode facilmente deduzir, a regulação, devido aos meios que utiliza, inscreve-se na lógica funcional-procedimental que já referi, embora dela se individualize para prosseguir fins próprios e estatutariamente bem delimitados, por exemplo, a multiplicação das autoridades e agências europeias.

Mas o campo político e o sentido histórico-estrutural da governação europeia podem seguir vários alinhamentos possíveis. Trata-se, no fundo, de perceber melhor qual é a linha de rumo do sistema de administração geral da União, que oscila, como quase sempre, entre o excesso de empirismo dos interesses particulares, públicos e privados, e o défice de interesses políticos comuns, na senda do que se designa, genericamente, por união política europeia. Vejamos, a terminar, alguns desses alinhamentos possíveis:

  • Queremos caminhar, decididamente, para um sistema de governo europeu, institucionalmente consolidado, correspondente à democracia política pós-nacional, de base parlamentar e bicamaral, com poderes legislativos na câmara baixa e o Conselho Europeu convertido numa 2ª câmara ou senado europeu?
  • Queremos um sistema complexo de procedimentos de carácter funcional, cooperativo e regulatório, de geometria variável com a “comunidade de políticas”, que as circunstâncias e a relação de forças, em cada momento, for determinando?
  • Queremos, mais claramente, um modelo de administração regulatória, dotado de múltiplas agências intergovernamentais, de baixa dotação orçamental, no plano da “low politics”, e uma cooperação política, com múltiplas variantes, no plano da “high politics?
  • Queremos uma União Europeia na senda de um “estado em rede” dotada de uma wiki administration, igualmente variável com a “comunidade de políticas” que as circunstâncias e a relação de forças, em cada momento, for determinando?
  • Queremos, finalmente, uma espécie de “conglomerado político-institucional”, incaracterístico, navegando à vista, cada vez mais balcanizado (ligas, clubes e grupos) e dependente da relação de forças e da conjuntura em cada momento do ciclo económico?

No momento em que escrevo, discute-se na União a distribuição dos lugares políticos para liderar as principais instituições europeias, se quisermos, o muddling through habitual da governação europeia nesta circunstância. Quanto à discussão sobre os alinhamentos referidos e a sua importância relativa, a discussão marca passo, teremos de voltar ao assunto.

 Universidade do Algarve