À medida que a realidade diverge cada vez mais das previsões e promessas do PS e que o descarrilamento das contas públicas face aos objectivos traçados para o défice e para a dívida se torna cada vez mais evidente, não surpreende que a discussão sobre o agravamento de impostos esteja na ordem do dia. É verdade que esse agravamento de impostos viola também o que o PS prometeu aos eleitores mas desde o início de funções do actual governo se percebeu que a inversão das políticas anteriores e a distribuição de benefícios pelos grupos e interesses favoritos da “geringonça” implicaria o agravamento da factura apresentada aos contribuintes. Nada de novo ou particularmente surpreendente nesta frente, portanto.

Aquilo em que a exibição de Mariana Mortágua numa conferência promovida pelo PS constituiu novidade foi a forma como a discussão sobre o aumento da carga fiscal que se perspectiva foi colocada. Com retórica mais própria de um assaltante à mão armada do que de um parlamentar numa democracia liberal, a deputada Mortágua não podia ter sido mais clara nas instruções que deu à sua audiência socialista: “a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”.

Não é uma declaração irrelevante porque o Bloco de Esquerda já não é apenas um partido de protesto que integra vários movimentos de extrema-esquerda. Não é irrelevante porque com a “geringonça” o BE – tal como o PCP – passou a ser um partido com influência directa sobre a governação do país. Não é irrelevante porque a retórica inflamada e revolucionária de Mariana Mortágua foi aplaudida pela audiência presente na conferência organizada pelo PS e porque a liderança desse mesmo PS não se demarcou de imediato dessas declarações (ainda que, honra lhes seja feita, ainda resistem algumas vozes dentro do PS que o fizeram).

Mas Mariana Mortágua foi ainda mais longe: proclamou bem alto a necessidade de uma alternativa ao capitalismo e explicou que a causa da pobreza é a existência dos “ricos”. Queixou-se de que as suas declarações foram distorcidas uma vez que taxar riqueza acumulada não seria a mesma coisa que taxar poupança. Em sentido estrito, trata-se de uma afirmação verdadeira: se a riqueza acumulada em causa for resultado de um crime – por exemplo, de um assalto a um banco – não estamos perante poupança. Mas, no contexto das actividades económicas lícitas, a acumulação de riqueza dá-se precisamente por via da poupança.

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O ataque de Mariana Mortágua contra a poupança esconde por isso um outro julgamento: o de que a generalidade da actividade económica no contexto dum sistema capitalista é intrinsecamente ilegítima. Só isso justifica a condenação generalizada da acumulação da riqueza. Juntem-se as declarações de Mortágua à afirmação por parte de Catarina Martins de que comprar casa não é investimento e aos planos para dar acesso ao fisco aos dados de quem tenha contas bancárias que superem os 50 mil euros e ficamos com uma ideia mais clara das intenções e objectivos da “geringonça” neste domínio.

Sinalizar que se pretende, em última instância, expropriar por via fiscal as poupanças acumuladas pelas famílias (sejam sob a forma de depósitos bancários, casas ou outras) não é apenas economicamente irracional e financeiramente suicidário para o Estado português na situação actual. É também sintomático do movimento de radicalização da esquerda que a “geringonça” colocou em marcha. Já não se trata “apenas” de uma questão de maximizar o saque fiscal no contexto de uma economia de mercado com pesada intervenção do Estado. Com a “geringonça” a discussão está gradualmente a mover-se para campos progressivamente mais radicais: trata-se agora de colocar na ordem do dia da governação as ambições revolucionárias de longa data da extrema-esquerda.

Em 2009, o socialista João Galamba ainda se demarcava claramente das ideias, propostas e métodos da extrema-esquerda: “É uma fantasia achar que se resolve o problema da pobreza e das desigualdades criando um escalão de 45% de IRS e um imposto sobre as grandes fortunas. Os nossos problemas também não se resolvem nacionalizando a banca, os seguros e o sector energético — e muitos menos se resolvem introduzindo mecanismos de controlo administrativo e burocrático dos juros. Em tudo o que cheire a economia a solução do BE é sempre a mesma: estatismo e penalização da iniciativa privada.”

Em 2016, o primeiro-ministro António Costa já não tem qualquer pudor – Mariana Mortágua certamente terá aplaudido a falta de vergonha – em descrever o seu modelo de sociedade usando deliberadamente terminologia marxista e o PS parece estar num processo de bloquização acelerada. Pelo caminho, o PS atira para o caixote do lixo o seu próprio legado na construção do actual regime democrático contra a mesma extrema-esquerda revolucionária de que passou a depender para se manter no poder. Um caminho que pode arrastar Portugal para um desfecho bem mais grave do que um segundo resgate.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa