Na maior parte dos países da Europa nenhum procurador-geral ou, melhor, nenhuma figura máxima dos respetivos ministérios públicos desfruta de um nível de proeminência mediática semelhante ao que sucede em Portugal, onde tal cargo se tornou num elemento de batalha política, com os partidos tradicionais (socialistas e sociais-democratas) permanentemente a querem afastá-la, mas sem coragem para frontalmente lhe retirarem a confiança política. Preferem os empurrões pelas costas…

O cargo de Procurador-Geral da República constitui o único do Ministério Público e da magistratura dos tribunais judiciais sujeito a designação pelo poder político, e que goza, ao longo dos seis anos que dura o seu mandato, de um estatuto de independência desse mesmo poder político. Em termos meramente formais, os nossos procuradores-gerais são independentes.

Por toda a Europa não encontramos nada parecido: os ministérios públicos ou encontram-se integrados, com autonomia funcional, nos poderes judiciais (Espanha e Alemanha) ou inserem-se nos ministérios da justiça (Países Baixos, França, Bélgica e Áustria). A média dos mandatos dos procuradores-gerais é de quatro anos e não de seis, e esses mandatos cessam quando os governos que os propuseram chegam ao fim. As funções desses procuradores-gerais são essencialmente penais. E basta.

Bem ao contrário é o que acontece entre nós, onde o Ministério Público interfere em quase tudo, desde matérias de constitucionalidade até penais, de família, cíveis e comerciais, passando pelas laborais e administrativas. A estrutura foi pensada para manter um certo corporativismo entre o poder do Ministério Público e o poder dos juízes, o que impede que haja um equilíbrio efetivo de poderes. Basta apenas observar a composição plástica de uma sala de audiência, onde o Ministério Público se senta à direita do juiz e numa posição de igualdade, ao passo que os defensores ocupam uma posição subalterna.

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Se olharmos para o passado – e não muito remoto – encontramos um Procurador-Geral que se manteve dezasseis anos abancado na cadeira do Poder (1984-2000), José Narciso da Cunha Rodrigues. E pergunto: foram anos felizes para a justiça? Não, não foram, e nem no futuro haverá melhor execução no exercício da justiça se não se repensar o estatuto do Ministério Público e lhe forem atribuídas as funções que desempenha em toda a Europa, ou seja, o exercício da ação penal.

E, já agora, outra pergunta: porque será que Portugal tem três órgãos superiores de gestão e disciplina de juízes e procuradores, a saber, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (que regula os juízes dos Tribunais Judiciais), o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (que regula os juízes destas jurisdições) e o Conselho Superior do Ministério Público (que regula os procuradores)?

Para o desempenho cabal das mesmas responsabilidades em Espanha é apenas necessário o Consejo General del Poder Judicial e na Itália o Consiglio Superiore della Magistratura, órgãos dirigentes tanto dos juízes comuns como dos procuradores.

Ao invés destes dois países, Portugal tem muito menos tribunais, muito menos procuradores, muito menos juízes, muito menos processos em qualquer jurisdição e uma população bem mais pequena. Pergunto ainda: será que precisamos de uma estrutura de justiça tão gigantesca, pesada e dispendiosa?

No passado, tivemos processos de corrupção como os casos Costa Freire e Melancia, mas, à época, não existiam instrumentos legais suficientes para recolha de provas, como, por exemplo, aceder às contas bancárias sedeadas no exterior, nem se conseguia analisar os fluxos financeiros nem havia investigação direcionada. Mas já beneficiávamos da inércia da nossa justiça lenta.

Hoje os tempos são outros, mas, no que respeita ao andamento dos processos, estamos como estávamos há 30 anos: os inquéritos judiciais prolongam-se e continua-se a ser arguido e a investigar em inquérito penal por tempo indeterminado. Não vi a atual Procuradora-Geral avançar para um novo paradigma do ordenamento jurídico-penal, designadamente nos Acordos Sentença (acordo celebrado com o arguido para a determinação do limite máximo da pena a aplicar, fundado na confissão e no ressarcimento dos danos).

Até agora, todos os procuradores vêm do mundo da justiça, ex-procuradores que ascendem à cadeira de sonho, a do topo da carreira. O cargo é de designação pelo poder político, e assenta na dupla confiança do Presidente da República e do Governo: a respetiva nomeação e exoneração são feitas pelo primeiro, sob proposta do último.

Para o exercício da função a escolha não está vinculada à área de Direito ou sequer a especiais requisitos de formação. Então, e pergunto enfim: porque não escolher como próximo Procurador-Geral da República uma figura fora da estrutura da justiça?

Não indico o nome, mas sim os perfis, que passo a descriminar: a) alguém com capacidade de liderança, alguém que seja capaz de influenciar e orientar com visão e ação; b) alguém que saiba impor capacidade de trabalho, a si e aos outros, alguém que saiba avaliar, tomar decisões estratégicas e lidar com os opositores de dentro da estrutura judicial; c) alguém que cumpra os objetivos da política penal do Estado; d) alguém que consiga retirar a ação da justiça dos gabinetes e explicar o que deve explicar; e e) alguém que, mais do que tudo, respeite os direitos humanos e imponha aos subordinados um escrupuloso respeito.

Como facilmente se depreende, é tarefa de monta! E será preciso consenso político para agir. Sem esse consenso, tudo o que se mudar é para que tudo fique na mesma.