Uma semana depois da farsa eleitoral na Catalunha, ninguém ainda se cansou de dar conselhos ao governo de Espanha: devia ter negociado um referendo, não devia ter enviado a polícia para a Catalunha, etc. De facto, o governo espanhol podia ter feito muita coisa: por exemplo, abandonar imediatamente à sua sorte os milhões de cidadãos espanhóis que vivem na comunidade autónoma, deixando-os à mercê do bando golpista que montou o carnaval referendário de 1 de Outubro. O que ninguém ainda explicou ao governo de Espanha foi como um Estado fundado no direito e na democracia deve reagir à subversão do direito e da democracia sem o risco de parecer ou ineficaz ou brutal.

Na Catalunha, o Estado está num dilema. Se nada fizer, deixará constituir-se um poder paralelo e ilegal, que o privará de qualquer autoridade; se tenta obstar à conspiração separatista, aqui d’ el-rei que não quer “dialogar” e é “autoritário” — “como Franco”. O golpe separatista na Catalunha mostrou como o mito da “independência” contrabalança, em muitas cabeças, o facto da ilegalidade, e como uns episódios de “violência policial”, largamente ampliados com imagens falsas nas redes sociais, bastam para fazer parecer pouco importante a destruição do Estado de direito e da democracia.

Os separatistas na Catalunha não têm do seu lado, nem a maioria da população, que em eleições gerais nunca votou neles, nem a Constituição de 1978 ou o Estatuto de Autonomia de 2006, aprovados pelos cidadãos em referendos legais. Mas têm muita gente organizada e decidida a vir para a rua, e controlam o governo local e os comandos da polícia, que a de 1 de Outubro se abstiveram de defender a lei. O “pronunciamento” passivo dos Mossos d’ Esquadra explica o à-vontade dos separatistas e abre horizontes perigosos: a divisão da força armada foi geralmente a condição preliminar de todas as guerras civis. O separatismo, embora minoritário, conseguiu assim criar uma situação em que a vontade da maioria e o respeito da lei parecem vulneráveis e irrelevantes.

Do outro lado, a divisão partidária em Madrid embaraça a iniciativa do Estado. A extrema-esquerda está exaltada com a ideia de uma revolução chavista na Península. Os socialistas ainda não decidiram se devem simplesmente aproveitar a crise catalã para tentar deitar abaixo Mariano Rajoy. Rajoy, empenhado na coesão do regime perante o separatismo, demora em recorrer a meios decisivos, como o artigo 155 da Constituição, que lhe permitiria suspender o governo autónomo na Catalunha. Fora de Espanha, há declarações num sentido e no outro. Mas é difícil exagerar a gravidade, para a União Europeia, da desintegração de Espanha através de um golpe. A integração europeia nunca mais será a mesma se, ao contrário do que muitos espanhóis e portugueses acreditaram na década de 1970, deixar de parecer segurança suficiente da legalidade e da democracia nos Estados membros.

O que o golpe na Catalunha revela é a imensa fragilidade do Estado democrático e de direito numa Europa em que a crise financeira e o jihadismo têm abalado instituições e consensos. A lição catalã é severa: um bando golpista que consiga infiltrar algumas instituições do Estado, como neste caso um governo autónomo e a polícia local, e que disponha de umas centenas de milhares de activistas bem organizados para a luta de rua, pode impor-se à lei e à vontade da maioria, com o aplauso dos idiotas úteis de todos os países, a quem umas fotos falsificadas no Facebook bastam como argumento. Tudo voltou a ser possível, especialmente o pior.

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