No passado dia 29, a Igreja celebrou São Pedro e São Paulo, fundadores da Igreja de Roma. Os dois eram oriundos da Ásia menor e foram mártires, nos finais do século I, pelo que ambos são fundadores da Igreja que preside à Cristandade. Se a Roma pagã teve, como seus lendários iniciadores, os irmãos Rómulo e Remo, que foram amamentados pela mítica loba, a Roma cristã nasceu de dois irmãos na fé, Pedro e Paulo, que se alimentaram do Corpo e Sangue de Jesus Cristo.

Não obstante a fraternidade espiritual dos fundadores da Igreja romana, são muitas as diferenças entre Pedro e Paulo. Enquanto o primeiro, Simão, filho de Jonas, era um pacato pescador da Galileia, que recebeu de Cristo o chamamento para o seguir, Saulo de Tarso era um judeu da diáspora, formado aos pés de Gamaliel e extremamente zeloso no cumprimento da Lei. Foi um dos principais mentores do martírio de Santo Estêvão, um dos primeiros sete diáconos. No seu propósito de exterminar o Cristianismo, obteve do Sumo Sacerdote credenciais para prender os cristãos que houvesse em Damasco.

É a caminho dessa cidade que se dá a sua conversão: “ao aproximar-se de Damasco, subitamente o cercou uma luz fulgurante vinda do Céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, porque me persegues?’ Ele disse: ‘Quem és tu, Senhor?’ Ele respondeu: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues’” (At 9, 3-5).

É chamativa a insistência de Jesus na afirmação de que Saulo o procura: não só o diz quando o interpela, mas também quando, a seu pedido, se identifica. Na realidade, Saulo não perseguia Cristo pois, para ele, era óbvio que estava morto, por mais que os seus discípulos insistissem na sua ressurreição. Quem perseguia, então, Saulo de Tarso? A Igreja, ou seja, os cristãos. Portanto, Jesus devia ter-lhe perguntado por que perseguia a sua Igreja, ou os seus discípulos. Não o fez, contudo, porque Jesus Cristo não apenas ‘está’ na Igreja como ‘é’ a Igreja e, por isso, os fiéis são membros do seu Corpo, como a eclesiologia de Paulo se encarregará de afirmar: “do mesmo modo que o corpo é um e tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, embora sejam muitos, são contudo um só corpo, assim é também Cristo” (1Cr 12, 12). O Jesus da História é o Cristo da fé, que subsiste na Igreja católica, onde está realmente presente na Eucaristia e age através dos Sacramentos e da acção santificadora dos seus ministros.          

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A analogia com o corpo de Cristo é também válida para explicar a diversidade orgânica dos diversos membros da Igreja: embora todos os fiéis tenham, em comum, a fé e estejam chamados à mesma santidade, têm, no entanto, diferentes funções eclesiais e, por isso, há diversidade de ministérios e vocações, embora todas sejam para a santidade e o apostolado. “A verdade é que são muitos os membros e um só o corpo. O olho não pode dizer à mão: ‘Não necessito do teu serviço’, nem a cabeça pode dizer aos pés: ‘Não me sois necessários.’ Antes, pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos, são os mais necessários (…). Ora vós sois corpo de Cristo, e cada um, por sua parte, um dos seus membros” (1Cr 12, 20-22. 27).

Não obstante a igual dignidade de todos os cristãos, nem todos são chamados ao matrimónio, como também não é para todos o sacerdócio ministerial: só os que receberam o Sacramento da Ordem estão habilitados para o exercício de certos ministérios, que, como o termo indica, são na Igreja sobretudo serviço. Mas os principais santos venerados pela Igreja católica não são os apóstolos, nem os mártires, nem os papas, nem os bispos, nem os padres, nem os religiosos, mas dois leigos, por sinal casados: Maria, a mãe de Jesus de Nazaré, e seu marido São José que, por feliz iniciativa do Papa Francisco, foi nominalmente acrescentado a todas as orações eucarísticas, depois de sua mulher e antes dos apóstolos. Ambos precedem, na liturgia católica, todos os santos, porque são mais excelentes do que os milhões de sacerdotes e religiosos que viveram o celibato sacerdotal, ou a virgindade consagrada, e que também são venerados como santos.      

A Igreja é, sobretudo, comunhão, mas também é um corpo orgânico, ao qual corresponde uma cabeça visível: o Papa. O primeiro a receber esta dignidade foi Simão, que por isso se passou a chamar Pedro, por ser a pedra que serviu de fundamento à edificação eclesial.  É curioso que, para esta missão, Cristo tenha escolhido Simão, que confirmou nesse ministério, mesmo depois de este discípulo o ter negado três vezes. Talvez, deste jeito, o Mestre tenha querido fazer ver que Deus se serve de instrumentos ineptos, para que se veja que é ele quem actua por seu intermédio. Por isso, da mesma forma como os primeiros cristãos souberam amar e obedecer ao Papa que, por três vezes, tinha negado o Senhor, todos os fiéis devem também estar unidos ao seu sucessor, mesmo que lhes possa parecer menos digno de presidir à Igreja universal, como aconteceu, mais por via de excepção, no passado.

Quer isto dizer, então, que os católicos se devem abster de qualquer crítica ao Papa? Com certeza, com uma única excepção: quando assim o exija a fé, ou o bem da Igreja. É sabido que, nos primeiros tempos, alguns fiéis queriam manter todas as práticas judaicas, enquanto outros defendiam que a vida cristã dispensava esses rituais: o Concílio de Jerusalém veio dar razão a estes, contra os judaizantes, entre os quais se contou, pelo menos durante algum tempo, Pedro. Foi, por esta razão, motivo de repreensão.

Como relata Paulo na sua carta aos gálatas: “tendo vindo Pedro a Antioquia, eu lhe resisti na cara, porque merecia repreensão, pois que antes que chegassem alguns de Tiago, ele comia com os gentios, mas depois que chegaram, retirava-se e separava-se dos gentios, com receio dos que eram circuncidados. Os outros judeus imitaram-no na sua dissimulação, de sorte que até Barnabé foi induzido por eles àquela simulação. Porém eu, tendo visto que eles não andavam direitamente, segundo a verdade do Evangelho, disse a Pedro, diante todos: ‘Se tu, sendo judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a judaizar?’” (Gl 2, 11-14). Não é fácil saber o que mais admirar: se a coragem e liberdade de espírito de Paulo, ou a heróica humildade de Pedro, ao aceitar a repreensão de um ex-perseguidor da Igreja, a quem teria podido calar e, até, excomungar!

Ultrapassada esta divergência, Pedro e Paulo voltar-se-iam a encontrar na capital do império, a sede episcopal do Papa: Roma. A sua fraternidade na fé de Cristo, por ambos professada heroicamente, ficou selada pelo seu comum martírio. Esta é a mais excelente prova de fé, a mais heróica expressão da esperança cristã e da caridade, porque “não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13).