Há semanas o meu filho mais novo estava a construir coisas no minecraft. Bom, na verdade estava a destruir coisas, porque me mostrou, orgulhoso, um buraco profundo e interminável. Sucede que o petiz tinha explodido rocha para fazer o buraco mesmo ao lado de um rio, e eu disse-lhe que a fina parede entre as profundezas e a água não ia aguentar e o magnífico buraco ficaria inundado pelo caudal do rio. Garantiu-me que não, que a parede era feita de qualquer coisa qualquer coisa indestrutível, pelo que nada havia a temer. Meia hora depois veio informar-me que eu tinha razão, a parede desabara e o rio invadira o buraco.

O meu filho tem nove anos, e estava a brincar, pelo que se percebe a falta de cuidados nas construções. Mas olhando para a estrada que ruiu na segunda feira, perto de Borba, à altura que escrevo com dois mortos e três desaparecidos, é impossível não quedarmos boquiabertos por autoridades municipais e nacionais terem suposto que uma estrada empoleirada no meio de profundas escavações de pedreiras, com paredes verticais a poucos metros da dita estrada, poderia ser segura.

Não vale a pena estar a revisitar o processo todo, da reunião de há quatro anos onde terá sido assinalado o perigo ao presidente da câmara de Borba. Porque não se trata só do presidente da câmara de Borba. Afinal, diz, estava à espera de um relatório que ‘provasse’ que a estrada não era segura – porque não bastava olhar para lá e de imediato perceber. E, oh tão querido para a iniciativa privada, como as empresas que exploram as pedreiras não se entenderam na já famosa reunião, o autarca nada fez. As ditas empresas, segundo se sabe, respeitaram as normas de segurança legais – se as normas são suficientes é que por agora se duvida, porque permitir uma estrada a serpentear entre abismos não parece de legislador ou regulador com juízo e com responsabilidade. Em todo o caso, o autarca está de consciência tranquila, e o que precisamos nós mais que a calmaria de consciência do senhor? Não queremos nada que o desinquiete.

Contudo o problema perpassa Borba, o seu autarca e os seus serviços técnicos que não provaram que uma estrada evidentemente periclitante não era insegura. O problema é que, concluo, somos descartáveis para os nossos governantes, os de todos os níveis. A preocupação com a nossa segurança é risível. Lembremos Pedrógão e os mortos em dois fins de semana com condições meteorológicas propícias a incêndios florestais, em que uma ministra entendeu não por de prevenção meios para combater eventualidades. Lembremos as arribas da praia Maria Luísa no Algarve, que desabaram em 2009 e soterraram cinco pessoas. Atribui-se a Stalin a frase ‘uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística’. Por cá uma morte também aparenta ser estatística.

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Acidentes e imprevistos acontecem e, por definição, são inesperados. Ajudava a minorar-lhes os efeitos, quiçá, se as administrações locais e central cuidassem de manter em bom estado de conservação os espaços e equipamentos públicos – nem pedimos muito, satisfazia-nos que evitassem o risco de ruírem. Ou, não conseguindo, que os sinalizassem e interditassem. A Associação Nacional de Municípios garante que as câmaras não têm dinheiro para assegurar a manutenção das estradas. Que boa notícia. Ainda bem que nos avisam.

Sei bem que por estes dias parte da direita anda muito ocupada com assuntos mais importantes. Combater o politicamente correto – e, do que tenho lido nas redes sociais, e não apenas do maluquinho anónimo, politicamente correto agora é tudo o que existe sob o sol, desde as prestações sociais até escrutinar a retórica de um político eleito e as suas ligações económicas -, combater as malvadas feministas, execrar o marxismo cultural e o globalismo, glorificar um psicólogo clínico que debita bitaites com ar de autoridade sobre assuntos que claramente não domina, guerras culturais, odiar os opositores políticos, e por aí adiante.

Porém talvez fosse útil à direita repescar certos temas que o ar do tempo congelou. Como definir que funções queremos que o estado desempenhe. Porque não podemos ir a todas – os recursos são sempre escassos, e vivemos tempos de austeridade nos gastos públicos (e ainda bem). A segurança dos cidadãos é certamente uma das prioridades de qualquer estado, e deve passar à frente de outras – a decidirmos e a escolhermos. Queremos (dou só um exemplo deliberadamente provocatório) câmaras gastando dinheiro com touradas e praças de touros ou deixando esta atividade à iniciativa privada e aplicando os recursos que se libertam na manutenção dos equipamentos públicos?

É também surreal que nos milhares de institutos públicos (que resistem ainda e sempre ao invasor) não exista aparentemente nenhum cuja função seja diagnosticar perigos públicos deste calibre. A Infraestruturas de Portugal e as câmaras municipais alegadamente fazem-no. Alegadamente.

Se não for pedir muito, o CDS e o PSD (este se conseguir sair do estado comatoso) que exijam saber que tipo de avaliação e fiscalização é feita nas estradas, pontes, viadutos e túneis, tanto a cargo do IP como dos municípios. Se há mais excentricidades por aí, como a desta estrada empoleirada entre dois buracos até ao centro do mundo. Porque pessoas a morrerem por incúria dos serviços públicos? Desculpas? Menos, meus senhores.