Lê-se um jornal ou vê-se uma televisão e é certo e seguro: uma boa parte da conversa gira em torno da culpa e da inocência, do ódio e do amor, dos pecados e da compensação devida pelos pecados cometidos, da inferioridade fáctica que é uma superioridade real e da inferioridade real que aparenta ser uma superioridade fáctica.
Tudo isso, como de costume, nos vem dos Estados Unidos. Não há certamente Império, mas na cabeça da maioria opinativa é como se houvesse, ao ponto de praticamente toda a gente se comportar como se tivesse uma dupla nacionalidade: aquela que o acaso lhe destinou e aquela que desejaria no fundo ter – a americana. Naturalmente, todas as tentativas de nos incutir a ideia de uma “cidadania europeia” esbarram contra esta pulsão básica, tão mais eficaz e poderosa quanto permanece em larga medida inconsciente e se manifesta o mais das vezes sob a forma negativa da detestação.
Um dos muitos problemas com esta atitude mental é que a adopção dos debates americanos nos chega com um atraso apreciável, numa espécie de mimetismo retardado, que a ocasional coincidência temporal – como, por exemplo, as manifestações por causa da morte de George Floyd ou a destruição das estátuas – não chega para disfarçar. A posterioridade faz parte da essência do mimetismo e a dúvida não incide nunca sobre o atraso em si, mas sobre o grau com que ele se revela (maior em Portugal do que na França ou na Inglaterra, por exemplo) e nas particularidades nacionais que o condicionam.
Lembrei-me (mais uma vez) disto na semana passada, ao ler dois livros publicados nos Estados Unidos no início dos anos 90: The Content of Our Character (1990), do académico conservador (negro) Shelby Steele, que foi bestseller do New York Times de outros tempos, e Culture of Complaint (1993), do grande crítico de arte (branco e australiano, embora tendo vivido grande parte da sua vida nos Estados Unidos) Robert Hughes. Nunca tinha lido nada de Steele, mas, em contrapartida, li, com invariável prazer, quase tudo aquilo que Hughes (para simplificar: um homem de esquerda) escreveu nos anos da sua vida.
O que me surpreendeu, por assim dizer, foi a dimensão do acordo que duas pessoas com pontos de vista em larga medida incoincidentes por relação à sociedade manifestam no que toca a certos temas essenciais. Mais genericamente, diria que as questões decisivas e fundamentais são aquelas em que indivíduos inteligentes e informados de esquerda e de direita partilham (sem que isso implique a adopção de um ponto de vista habermasiano sobre uma situação ideal de comunicação – uma ideia, de resto, interessante) preocupações comuns.
As preocupações de Steele, que é naturalmente sensível a todas as manifestações de racismo no interior da sociedade americana, giram em torno de todos os movimentos que se recusam a aceitar o facto de as oportunidades para os negros americanos terem, em larga medida graças à acção de Martin Luther King, aumentado exponencialmente. É a reacção negativa face a essa possibilidade que o preocupa. E o que ele vê, e mais teme, é a tendência a explorar um sentimento de vitimização, assente na convicção de uma inocência radical, que assegura ilusoriamente um poder fundado num sentimento de culpa branco. O orgulho racial apoia-se numa angústia, ou numa ansiedade, dos brancos face às suas malfeitorias passadas. Daí toda a conversa em torno da exigência de reparações (como se os sofrimentos daqueles que sofreram o horror da escravatura pudessem ser “reparados”) e as inúmeras consequências perversas da “acção afirmativa”. Não se trata de modo algum de negar que a memória da escravatura cria uma situação existencial e identitária que incute um sentimento doloroso de inferioridade – ao qual o “orgulho racial” aparece como um compreensível antídoto. O problema é que tal antídoto funciona igualmente como um veneno, e a “política da diferença” que promove desemboca, o mais das vezes, numa auto-segregação voluntária que tem como consequência uma recusa das possibilidades de bem-viver que a sociedade oferece, com consequências desastrosas, tanto a nível educacional como económico.
Pelo seu lado, Robert Hughes, não menos sensível do que Steele a todas as formas de discriminação, preocupa-se igualmente com a permanente manufactura de vítimas imaginárias que se tornou a moeda corrente na nossa sociedade e com a alucinação de extravagantes culpas que a acompanha. A manufactura das vítimas vai a par com o culto da “expressão pessoal” e da “auto-estima”, que funciona como uma potente barreira a toda a argumentação racional. Os argumentos, quando servem para alguma coisa, adquirem quase invariavelmente a forma do argumento ad hominem. Há uma espécie de irracionalismo triunfante, que se manifesta, entre outras coisas – e o exemplo é desgraçadamente muito actual -, na atribuição a Colombo de todos os males do mundo, tema a que dedica várias páginas excelentes, e nas delirantes construções teóricas “afrocentristas”, que colocam os povos africanos na origem de toda a cultura ocidental, em todos os seus aspectos: filosóficos, culturais e até tecnológicos (os africanos teriam, por exemplo, inventado os aviões). Tal como Steele, Hughes detecta aqui uma tendência voluntária para a auto-segregação (à sua maneira, a dialéctica da inferioridade e da superioridade também para ele se encontra em jogo, bem como o fantasma, transportado pela memória, de uma opressão passada) que se ergue contra a ideia de uma base cívica que, no contexto de uma certa multicularidade, nos deve unir.
Esta cultura da queixa e da acusação é, com mais ou menos elementos próprios e idiossincráticos, adaptada pelos diversos povos da periferia do Império. Os portugueses não são obviamente excepção. Também aqui a “memória-inimiga”, como lhe chama Steele, conhece os seus ímpetos furiosos. Um bom exemplo é toda a recente conversa em torno do “discurso de ódio”, que a ministra Mariana Vieira da Silva almeja “monitorizar”, com o auxílio precioso de um cavalheiro que dá pelo nome de Gustavo Cardoso, e, melhor ainda, a reacção de um vasto número de universitários ao recente livro de Riccardo Marchi sobre o Chega de André Ventura, um livro que vou comprar e ler mal possa, por causa deles e das duas entrevistas que li do autor, que me pareceram muito interessantes. “Contra a higienização académica do racismo e fascismo do Chega”, chamam eles ao seu pequeno manifesto. Todo o texto é um perfeito testemunho da lógica maniqueísta que apontei no primeiro parágrafo e que, à sua maneira, Steele e Hughes igualmente abordam. A “memória-inimiga” obriga-os a alucinar o passado no presente e a não ver no presente mais do que uma estrita repetição do passado. Ao ponto de uma pessoa se perguntar se, à falta dessa alucinação, algo mais teriam sobre o qual conversar. A mim, isto levou-me, curiosamente, ao místico sueco Emanuel Swedenborg. Swedenborg tinha a maravilhosa teoria segundo a qual, depois da morte, as pessoas, no Céu e no Inferno, levavam uma existência em tudo semelhante àquela que haviam levado nas suas vidas, apenas com a diferença que as percepções seriam mais intensas. O que as colocaria num lugar ou noutro seria a natureza das conversas que preferiam ter. Longe de mim a pretensão de imaginar a residência futura dos signatários do manifesto no Céu ou no Inferno, mas não creio ofender ninguém se manifestar a minha convicção que esta conversa sobre a iminência do retorno do fascismo arrisca-se a ocupá-los pela eternidade inteira.
Um último exemplo de certas particularidades portuguesas que ecoam a cultura do queixume de que fala Robert Hughes e a dialéctica da inferioridade e da superioridade à qual se refere Steele. Com tantos países da Europa, em particular o Reino Unido, a colocarem entraves à vinda dos seus cidadãos a Portugal, por causa da taxa de propagação lusitana do coronavírus, assistimos a mais uma repetição do momento-Ultimato, com toda a gente a reescrever mentalmente o Finis patriae de Guerra Junqueiro e a sonhar com lordes cortados às postas a boiarem no Tamisa. Aos sessenta anos já vi isto tantas vezes que não me surpreende. Inspirado no vocabulário do seu chefe António Costa – que, de resto, como uma barata tonta, oscila entre a submissão e a arrogância –, o ministro Santos Silva adapta de todas as maneiras possíveis as acusações contra os “repugnantes” e os “forretas” e põe-se a “exigir” tudo o que lhe passa pela cabeça a vários governos europeus, com indisfarçadas e temíveis ameaças. Queixamo-nos da inferioridade em que supostamente nos colocam, reivindicamos a mais radical inocência e pretendemos por este meio afirmar uma indisputável superioridade. É a nossa maneira de conceber um “manifesto destino” nacional.