Será ingenuidade minha, ou algo pior, mas ainda me consigo surpreender com coisas vindas do Governo. Com poucas, é verdade, porque a maioria se limita a confirmar algo que já se tinha a obrigação de saber, como, por exemplo, a nova importância dada pelo ministro da Educação ao “conhecimento do corpo” pelos alunos do ensino secundário. Já se tinha a obrigação de saber que este Ministério da Educação morre de amores por qualquer coisa que cheire a folclore “progressista” e o “conhecimento do corpo” é um candidato evidentemente bom a um lugar de relevo. Até porque o espírito, representado pelo português e pela matemática, duas disciplinas caracteristicamente fascistas, fica assim posto no seu lugar merecidamente subalterno. Mas há coisas que, de facto, surpreendem. Uma delas foi a nota do Ministério das Finanças protestando contra o acordão do Tribunal da Relação que obriga a entrega dos relatórios da auditoria da Caixa Geral dos Depósitos ao Parlamento.
O que diz o Ministério das Finanças? Muitas coisas, mas sobretudo uma que devia pôr os cabelos em pé mesmo à criatura menos hábil para seguir as voltas e voltinhas todas deste tipo de inquéritos. O Ministério avisa que a revelação do conteúdo dos relatórios acarretaria “uma quebra de confiança irreversível” na Caixa. Leram bem: “uma quebra de confiança irreversível”. “Irreversível”. É certo que tal quebra de confiança é a quebra de confiança por parte dos maiores devedores a esta nossa colectiva instituição, os responsáveis pelas célebres “imparidades” que vamos todos compensar com o nosso dinheiro. E, devedores ou não, o direito ao sigilo bancário, é um bem que, salvo circunstâncias excepcionais, deve ser preservado. Mas situação é excepcional e a quebra de confiança que aparentemente, segundo o Ministério das Finanças, resultaria da divulgação de certos documentos é obviamente também a quebra de confiança por parte dos portugueses, que presumivelmente tomariam assim conhecimento dos delirantes créditos que a Caixa teria concedido durante anos e anos, em particular durante os anos do magnífico Sócrates, e que a conduziram à triste situação em que se encontra. Uma quebra de confiança não menos “irreversível” do que a outra e certamente de consequências mais vastas e duradouras.
Esta situação dá que pensar. O Ministério das Finanças crê ser nobre política não revelar o que se passou na Caixa sob o estupendo argumento segundo o qual saber o que se passou seria demasiado terrível para nós todos. Desejar saber revelaria não apenas uma curiosidade impertinente como um impulso suicida do qual o Governo, na sua enorme benevolência, tem a caridosa obrigação de nos preservar. Uma pessoa apanha-se a sonhar. É mais ou menos como se tudo conspirasse para nos ocultar a existência de grupos de assassinos que circulassem por aí sob o pretexto de que ter conhecimento do facto nos provocaria medos e pânicos com os quais não é bom viver. Bom é que nos sintamos bem e acarinhados e que não se fale demasiado de facadas e tiros.
O que este tipo de raciocínio revela é uma concepção paternalista do Estado, que nos trata como crianças às quais, para seu bem, muitas coisas não devem ser contadas. Note-se que o Estado cada vez mais nos trata como crianças nos múltiplos aspectos da nossa vida, um facto que, para sua eterna glória, Tocqueville, em meados do século XIX, previu com um rigor que nunca será excessivo sublinhar. E note-se também que a existência da arraia-miúda que somos se encontra cada vez mais coscuvilhada nos seus mais ínfimos detalhes. Mas confesso que este paternalismo perverso no que toca ao nosso conhecimento do que se passou na Caixa excede largamente o anteriormente conhecido no capítulo. Somos mesmo convidados a preferir não saber, para nosso bem e repouso.
Qual a confiança que podemos depositar em gente que nos trata assim, como crianças impertinentes? Nenhuma. Este episódio, mais do que todos os outros, marca um ponto decisivo na relação dos indivíduos com o Estado. A saída mais airosa que se pode conceber é mesmo termos acesso à percepção mais rigorosa possível do universo que gerou a presente situação. Isto é: conhecermos as redes de influências que permitiram que fossemos colectivamente aldrabados. Tudo o que fique aquém disso é declaradamente insuficiente e os argumentos usados para justificar a ausência do escrutínio público só podem ser argumentos espúrios. Tudo o que assente no pressuposto da nossa infantilidade irredimível deve ser inteiramente rejeitado. A única maneira de manter algum respeito pelo Estado é o Governo jogar o jogo da forma mais limpa que puder.
Caso contrário, o sentimento de estarmos a ser lançados às feras vai-se generalizar ainda mais. Com a agravante de as feras serem anónimas e invisíveis, o que multiplica o medo, tornando-o difuso e universal. A democracia não deve ser dominada por paixões dessas e deve permitir que se veja o mais claro possível o que se passa à nossa volta. Não é coisa de crianças ou de adolescentes ocupados em trabalhos escolares destinados a aprimorar o “conhecimento do corpo”, ao contrário do que parece pensar o Governo. É, ou devia ser, uma coisa de adultos que julgam tratar-se do regime que melhor garante a sua liberdade, a sua independência, a possibilidade de cada um construir o seu próprio projecto de vida no respeito pelos outros e em solidariedade com eles. O contrário desta treta que, a propósito da Caixa, nos andam a querer vender e de que o Governo e os partidos que o apoiam, francamente, andam a abusar muito para lá do tolerável. O fosso entre “nós” e “eles” existe quase fatalmente, mas não convém torná-lo num abismo intransponível. Depois venham com um ar sério e preocupado falar de populismo.