Atento ao espírito do tempo, preocupado com as ideias perigosas que aleijam, julgo que é chegada a hora de modernizar a Bíblia e expurgá-la das vários trechos problemáticos que contém. Que não são poucos. Logo a abrir, por exemplo, temos uma demonstração implícita de racismo. Para apaziguar quem se possa sentir ofendido, sugiro que os primeiros versículos do Antigo Testamento passem a ser:
“No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Logo a seguir, apagou-a, pois entretanto chegou a conta e viu que também era cara”.
E assim descolonizamos o Génesis da perniciosa ideia supremacista ocidental de que a electricidade pode ser um bem acessível a qualquer um. Não pode. Fiat lux é um luxo.
Quem lê as notícias já percebeu que as previsões catastróficas dos profetas do clima estão cada vez mais perto de se realizar. Eles vaticinam um futuro negro e, com o aumento do preço da luz, aproxima-se mesmo a escuridão. Pelo menos a partir do dia 10 de cada mês, que é quando os Portugueses já gastaram o dinheiro guardado para a conta da EDP.
Num artigo de opinião publicado há três semanas, o Secretário de Estado da Energia apresentou a solução para este problema: A melhor resposta é acelerar o que estamos a fazer. Ou seja, se a electricidade está cara, avançamos ainda mais rapidamente o processo que está a encarecer a electricidade. Faz todo o sentido. É como um bêbado abrir mais uma garrafa de vinho para clarear os pensamentos. A não ser que o objectivo seja tornar a electricidade tão cara que uma pessoa vê-se forçada a deixar de usá-la, salvando a humanidade.
As energias renováveis são intermitentes (nem sempre há sol e vento) e não se conseguem armazenar (a capacidade actual das baterias não é suficiente para isso), o que obriga a que haja sempre um sistema de backup disponível, pronto a entrar quando há nuvens, ou nevoeiro, ou é de noite, ou não há vento, ou há vento a mais. Enquanto essas questões não forem resolvidas, gabar-se de ter energia 100% renovável é como gabar-se de saber andar de bicicleta com rodinhas. Ora, a aposta cada vez maior em renováveis implica a correspondente dependência cada vez maior em backups que estão caros por causa das taxas de carbono (a maioria são combustíveis fósseis) e porque funcionam ineficientemente (o pára-arranca é dispendioso). Junte-se a isto o aumento do preço do gás natural e a situação começa a aquecer. Metaforicamente, claro.
Por isso, quando João Galamba diz: “O que fazer? A conclusão é simples: a forma de reduzir o preço da eletricidade passa por minorar o peso dos fósseis e acelerar a descarbonização”, está no fundo a defender a fuga para a frente. Mas não uma qualquer fuga para a frente. Trata-se da fuga para a frente de um camião. Que vem embalado e sem travões. Conduzido por um motorista do Governo. E que, ainda por cima, é eléctrico, de maneira que não faz barulho a aproximar-se e apanha-nos desprevenidos.
Esta insistência nas renováveis, com evidente custo e sem qualquer benefício (a redução das emissões de CO2 do nosso país é microscópica no contexto mundial) é uma sinalização de virtude inútil. É como um pavão apostar na manutenção de uma plumagem exuberante num grupo onde só há pavoas cegas. É um peso muito grande que não traz mais-valia.
Supostamente, como os mais histéricos não se cansam de gritar, ainda nem sequer estamos a fazer tudo o que é preciso para atingir as metas de descarbonização a que nos propusemos. Mesmo assim, a electricidade já está a encarecer brutalmente. Imagine-se quanto vai custar cumprir os objectivos. Isto que o Governo defende não é bem uma descarbonização da economia portuguesa, é uma descarcanholização das economias dos Portugueses. Para pagar o Acordo de Paris, um dia ainda acordo em Paris. Emigrado.
Há dias, o Ministro do Ambiente veio garantir que o Governo tem “muitas almofadas” para contrariar o aumento da electricidade. Mas, sabendo que a última vez que Matos Fernandes falou em mitigar subidas de custo da energia foi para sugerir que as famílias contratassem a potência mais baixa – aquela que não permite ligar o ferro de engomar ao mesmo tempo que o micro-ondas – é possível que a almofada de que fala seja real e sirva para sufocar os Portugueses. Se Matos Fernandes quer oferecer enxoval de quarto, mais do que almofadas precisamos é de cobertores. Vem aí o tempo frio e já se percebeu que não vai dar para ligar o aquecimento.
Matos Fernandes e João Galamba não deviam fazer campanha contra o aquecimento global. Mesmo antes da subida de preço que aí vem, os Portugueses já são dos Europeus que têm mais dificuldade em pagar o aquecimento da casa. O aumento de temperatura, ainda que ligeiro, é a única maneira de não congelarmos.
Há quem diga que Matos Fernandes e João Galamba não têm vergonha, mas é uma acusação injusta. Optar por apagar a luz enquanto faz o que estes dois nos estão a fazer, é típico de quem até é muito envergonhado. Mas, se é assim que pretendem manter quentes os Portugueses, não se podem esquecer que esta estratégia só funciona verdadeiramente se no fim fizerem conchinha.