O título deste artigo pode bem induzir o leitor mais incauto a pensar que a direita deve escolher entre abrir-se ao cosmos, ao outro e ao imenso, ou fechar-se entre os seus e caber num táxi; ou, vá, em dois ou três. Isso também é verdade, e até pode encontrar correspondência na segunda parte deste artigo (os fins), mas não é esse o ponto que pretendo explorar nesta primeira (os princípios).
Hayek, no segundo capítulo do seu Law, Legislation and Liberty, desenvolve um tema especialmente caro às direitas, que porventura nunca como agora – pelo menos nos últimos 50 anos – foi tão fracturante: a ordem.
De acordo com o autor, há dois tipos de ordem, uma emergente e uma imposta; cosmos e taxis, respectivamente, usando a terminologia grega. A primeira refere-se a uma ordem resultante da interacção dos indivíduos, orgânica, herdeira de tradições e costumes incorporados na sociedade, mas adaptável; uma grown order. A segunda refere-se a uma ordem criada, imposta em certo sentido, visando um propósito final previamente concebido; uma made order. A primeira de tradição anglo-americana, a segunda de tradição continental. A primeira doutrinal, a segunda ideológica.
Jaime Nogueira Pinto (JNP), que vale sempre a pena ler quando se fala de direita em Portugal, diz aqui que “[é necessário combater as esquerdas, que] induziram uma espécie de monopólio ou ditadura intelectual (…) que, entretanto, se tornou hegemónico e abertamente moralista e inquisitorial, com o policiamento do pensamento e do vocabulário (…).” JNP tem razão. Há de facto um combate cultural a travar, contra o niilismo, contra toda a espécie de neo-marxismo, contra o politicamente correcto, e contra a destruição de todas as tradições e suas instituições. Mas JNP entende que “estamos num tempo de reacção e a reacção começa pela negação do estabelecido e envolve uma certa radicalidade. Por isso, e porque as sínteses vêm depois das antíteses, só muito dificilmente se chegará agora à síntese. ”
E é aqui que o nosso caminho parece deixar de ser coincidente. Do mais explícito ao mais subtil, do que nos separa, temos a questão da síntese, do quartel e do propósito.
Da síntese, porque a direita não existe para ser a antítese da esquerda – reconhecendo-lhe com isso primazia –, mas antes para ser uma síntese dos seus valores essenciais com o espírito do tempo presente.
Do quartel, porque quanto ao combate cultural, ele deverá ser travado nas escolas, nas Universidades, na formação de magistrados, na formação e nas redacções de jornalistas, na actividade cultural e na sociedade civil e não nos partidos. Tudo espaços que a direita em Portugal ignorou – porventura com excepção da sociedade civil, graças à acção da Igreja Católica e de movimentos de leigos a ela ligados, e em poucos projectos jornalísticos – durante décadas, por desleixo, incompetência ou sobranceria.
É certo que JNP afirma que «o tempo não é, assim, de mera guerra político-partidária. [E que] Foi nos “salões” do iluminismo francês que se forjou o espírito da Revolução e nos “think tanks” americanos que se abriram caminhos para a revolução conservadora dos anos 80». Mas é no quadro de uma reflexão sobre o posicionamento dos partidos à direita do PSD que JNP o afirma. E os partidos são, nesta matéria, lugares de chegada e não lugares de partida.
Do propósito, porque onde parece haver uma intenção ideológica, eu prefiro uma abordagem doutrinária. A este propósito talvez valha a pena ver agora melhor a questão da síntese dos valores essenciais com o espírito dos tempos.
Concordo com muito do que JNP defende em matéria de valores – “a religião, a memória colectiva, a família” –, mas a adesão a esses valores deve ser voluntária, livre, já que aos valores tradicionais da direita, se junta – porque é também seu património inalienável – a Liberdade individual. E aqui, entre uma normatividade ideológica e uma adesão doutrinária, há diferenças importantes. Ademais, boa parte do eleitorado, da porta da casa para dentro e no íntimo da sua alma, quer é os partidos e os políticos à distância; inexorável marca conservadora que só nos pode merecer loas.
Já sobre o espírito do tempo presente, a discussão, à direita, é mais difícil. É possível encontrar um ramo que quer cortar com a “perdição” do presente e voltar a um passado idílico de ordem (reaccionarismo), e um outro que quer romper com este presente para construir uma nova ordem de um Homem Novo (vanguardismo). Nenhum deles, porém, como aquele que estima o presente como herdeiro das interacções humanas, das tradições e dos costumes, melhor pode fazer a síntese com as outras correntes da direita defensoras da Democracia Liberal; sobretudo porque as rupturas são não poucas vezes iliberais e raramente conservadoras. Mais: quer um regresso romântico a uma idade de ouro do passado, quer um avanço para um novo e perfeito futuro, são ambas pulsões de uma made order (taxis), de um projecto de engenharia social, profundamente ideológico, caminho vivamente desaconselhado pela História.
A natureza humana é intrincada, os fins da sociedade são da maior complexidade e, por isso, nenhuma simples disposição ou orientação do poder pode ser adequada quer à natureza do homem quer às características dos seus assuntos. Quando eu oiço a simplicidade dos esquemas que se propõem e que se louvam, em qualquer nova constituição política, não tenho dificuldade em decidir que os seus artífices ou são grandemente ignorantes do seu ofício, ou totalmente negligentes do seu dever. É com cuidado infinito que qualquer homem se deve aventurar a deitar abaixo um edifício que há muito tempo responde satisfatoriamente aos fins comuns da sociedade, ou aventurar-se a construí-lo de novo, sem ter ante os seus olhos modelos e padrões de utilidade comprovada.
Estas palavras – tão sábias que infelizmente não são minhas – são de Edmund Burke, o justamente considerado pai do Conservadorismo moderno; não por acaso, à época, repudiado por whigs e mal-aceite por tories, como hoje parecem ser os moderados. E se é verdade que as palavras eram dedicadas aos revolucionários franceses, pela forma e pelo teor, poderiam agora ser adequadamente aplicáveis a reaccionários e a vanguardistas. Porque é na ordem espontânea, socialmente emergente (cosmos), consolidada pelo somatório de interacções ao longo do tempo, que a política partidária deve agir; limitando-se. Nesta afirmação, Burke repudia a ideologização da política e qualquer espécie de ordem imposta por força de uma predeterminação. E podemos concluir que, nesta visão, aquilo que podia soar estranho, em matéria de costumes, em 1920, 100 anos volvidos, em 2020, tem de ser olhado de forma diferente, porquanto a sociedade o tenha já assimilado.
Não é, portanto, andando à frente do seu tempo, nem atrás do seu tempo, que a direita se deve posicionar, mas tão só no espírito do tempo presente; sem vanguardismos e sem reacionarismos. Ou, como dizia Miguel Esteves Cardoso, “Estamos todos presos no presente. O presente pode não ser perpétuo, mas existe. O futuro nunca aconteceu.”
[Veremos melhor, na segunda parte deste reflexão (os fins), qual o papel dos partidos.]