Há muita incerteza em relação à forma como esta crise se vai desenrolar. Mas há uma certeza que temos desde o início do confinamento: o Estado e as empresas vão acabar ainda mais endividados. E os bancos mais frágeis. Estado, empresas e bancos, uma trindade unida pela dívida. Uma trindade diabólica.
Há pouco mais de um mês, pensávamos que a crise da dívida estava ultrapassada. Em Dezembro de 2017, seis anos depois da chegada da troika, a dívida da República Portuguesa deixou o rating de ‘lixo’. Tínhamos saído do Procedimento de Défice Excessivo. Voltávamos a cumprir as regras europeias. Por volta de 2040, a dívida pública voltaria a representar 60% do PIB. Em Dezembro de 2019, celebrou-se o primeiro excedente orçamental da democracia. Foi tudo tão efémero. Quase não chegou a acontecer. Para 2020, as previsões optimistas do FMI apontam para um novo valor máximo da dívida portuguesa: 135% do PIB.
Infelizmente, o problema do endividamento da economia portuguesa não afecta apenas o Estado, estende-se às famílias e empresas. Em 2012, a soma da dívida daqueles três sectores representava 384% do PIB. Em 2019, tinha caído para cerca de 300% do PIB. As dívidas do Estado e das empresas representavam 118% e 110% do PIB, respectivamente. Continua a ser um monte de dívida.
Na crise das dívidas soberanas, a ligação entre o endividamento dos Estados e dos bancos revelou-se diabólica. Os bancos tinham os balanços cheios de dívida dos Estados. Os Estados, como o português, muito endividados e tendo de salvar os bancos, suscitaram dúvidas nos mercados sobre a sustentabilidade das suas dívidas. A especulação daí resultante desvalorizou a dívida dos Estados, fragilizando ainda mais o balanço dos bancos. Era um círculo vicioso. Aumentou assim a urgência de apoios do Estado à banca e acentuaram-se as dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida dos Estados. Em 2011, o Estado português deixou de ter acesso aos mercados.
Na crise covid-19, Estado, bancos e empresas poderão formar uma trindade diabólica. Apesar da venda de activos ao desbarato nos últimos anos, os bancos portugueses mantêm níveis de crédito malparado elevados, acima da média da UE. Depois de um longo e complexo processo de capitalização, os bancos estavam a regressar aos lucros.
A concessão de moratórias, as falências e situações de incumprimento de empresas e famílias são dramáticas para a situação financeira da banca. No entanto, os bancos contam com montantes de depósitos elevados face aos empréstimos concedidos. Por outro lado, o BCE anunciou na semana passada condições muito generosas de financiamento aos bancos, tão generosas que lhes paga até 1% dos créditos que lhes conceder.
O confinamento reduziu brusca e drasticamente as receitas das empresas. Nalguns casos, como os sectores da aviação, hoteleiro ou automóvel, a perda de receitas chega a atingir 100%. Muitas empresas ficaram assim sem condições de liquidez para poderem cumprir as suas obrigações. Um estudo de Nuno Tavares e Gabriel Osório de Barros conclui que em Portugal 25% das empresas não têm receitas para pagar um mês de salários.
Os Estados têm recorrido a um conjunto de medidas para compensar a perda de receitas das empresas. Por um lado, via apoio às medidas de lay-off. Por outro lado, através de linhas de crédito com garantias do Estado. Infelizmente, o Governo, rápido a anunciar, não tem tido capacidade de fazer chegar o dinheiro às empresas — o Simplex ainda não chegou aqui. Até ontem, teriam sido pagos apenas 190 milhões de euros relativos a situações de lay-off de cerca de 500 mil trabalhadores. No caso das linhas de crédito, no final da semana passada, menos de 100 milhões de euros tinham sido contratados entre bancos e empresas. Para muitas empresas, o problema de liquidez é já um problema de solvabilidade.
O resultado destas medidas é mais endividamento público e das empresas, e bancos mais frágeis.
Um dos grandes desafios da economia portuguesa – e da generalidade das economias — é evitar que a acumulação de dívida pelo Estado, pelas empresas e pelos bancos se transforme numa trindade diabólica.
O recurso das empresas ao endividamento, para compensar a perda de receitas, agrava a sua situação económico-financeira. Com uma recuperação lenta da economia, as empresas têm dificuldades em cumprir as suas obrigações bancárias, podendo entrar em incumprimento. O incumprimento nas linhas crédito garantidas pelo Estado pioram as contas públicas. Com a dívida pública em níveis muito elevados, o Estado pode ter dificuldades de financiamento nos mercados. O rating dos bancos será rapidamente contagiado. Os bancos terão mais dificuldade em financiar-se e em financiar as empresas, aumentando as situações de incumprimento e insolvência. O que agravará o desemprego, a estabilidade do sistema financeiro e a sustentabilidade das finanças públicas.
Para evitar o surgimento de uma trindade diabólica, é necessário mitigar o aumento do endividamento resultante dos apoios do Estado às empresas.
O Governo aposta no Fundo de Recuperação (FR) que a Comissão Europeia vai apresentar. Tem esperança que uma parte significativa do FR tome a forma de transferências a fundo perdido. A meu ver, seria bastante positivo que a CE assumisse a responsabilidade de projectos com impacto nas economias nacionais e que, em simultâneo, contribuíssem para a integração da UE. Por exemplo, o FR pode apoiar as companhias aéreas, como a TAP. O transporte aéreo de pessoas e mercadorias é um eixo fundamental da UE. Os Estados Unidos estão a apoiar as suas companhias com empréstimos convertíveis em acções. O Banco de Inglaterra financia directamente companhias inglesas.
Para conter o crescimento do endividamento público e privado, talvez seja necessário considerar instrumentos de capitalização das empresas por fundos financiados parcialmente pelo Estado. A CIP e o PSD estão a trabalhar em propostas nesse sentido. Em vários países estão também a ser consideradas, nomeadamente nos Estados Unidos. O aumento do endividamento público poderia ser contido com soluções deste tipo, desde que seja possível contabilizar as aplicações empresariais daqueles fundos no cálculo da dívida pública líquida. As aplicações destes fundos com capitais públicos seriam temporárias e teriam um calendário pré-definido de saída. Num país como Portugal, onde a captura do Estado por grupos de interesse tem um longo historial, propostas deste tipo têm maior probabilidade de sucesso se envolverem entidades externas como o Banco Europeu de Investimento ou a própria CE.
Para estancar o contágio da dívida entre empresas e Estado, os bancos terão um papel essencial na atribuição das linhas de crédito. Uma rigorosa avaliação da atribuição de crédito é uma condição para a sua recuperação pelos bancos. É também uma condição para a sobrevivência da economia portuguesa.
Dadas as assimetrias existentes na capacidade de financiamento dos Estados, poderemos chegar ao final desta crise com uma UE ainda mais desigual. Os países mais endividados, limitados na sua capacidade de apoio às empresas, poderão sair desta crise com um tecido produtivo mais enfraquecido e com perda de quotas nos mercados internacionais. Se isso acontecer, será ainda mais difícil pagarem as suas dívidas. Quantos anos seriam precisos desta vez para recuperarmos a confiança dos mercados e dos portugueses?