Abordo um tipo específico de agressão: a agressão verbal no espaço público.
O espaço público, apesar de não ter hoje uma fronteira definida face ao espaço privado, é coisa diferente, nomeadamente, no que concerne ao debate político.
E as agressões verbais no espaço público contemporâneo – em que, amiúde, as contendas ocorrem entre atores com níveis desproporcionais de poder – merecem reflexão.
É normal, na arena democrática, que os cidadãos profiram insultos, chistes, ironias, relativas aos políticos. O espaço público democrático autoriza-o, exige-o.
Estas disposições cidadãs, feitas, por exemplo, no grupo de amigos, no café, frente à televisão, em família, ou mesmo no âmbito de uma manifestação pública, correspondem a um exercício de liberdade e, dentro dos limites do razoável, é importante que sejam aceites como tal.
Coisa diferente é a agressão verbal praticada por detentores de poder político, seja entre eles, seja à comunicação social ou aos cidadãos.
O cidadão comum não tem acesso à arena parlamentar, à emissão televisiva, à vasta panóplia de meios que os líderes políticos têm para comunicar.
Assim, o livre exercício da opinião, a agressão verbal do cidadão a figuras públicas, faz parte do jogo político justo.
Não é desequilibrado, colocar num prato da balança mil vitupérios proferidos por cidadãos comuns em cafés de todo o país à frente das televisões, e no outro prato uma decisão política e o seu responsável. Pode a decisão ser a mais adequada para dada situação e os ditos proferidos nos cafés despropositados. Mas a balança da democracia exige que os responsáveis públicos aceitem a liberdade de expressão – mesmo quando usada para dar opiniões sectárias ou preconceituosas. Depois, há a possibilidade do contraditório – e é deste debate que se faz a democracia.
Também não é desequilibrado colocar num prato da balança democrática uma mão cheia de colunas de opinião críticas e no outro um frase infeliz proferida por um decisor político.
Não é desequilibrado, porque o poder detido por decisores públicos de topo, numa sociedade democrática, merece escrutínio e está aberto à crítica, como parte essencial das dinâmicas que colocam a liberdade como elemento fundador das sociedades plurais.
Já as agressões verbais entre detentores de poder político, ou dos detentores de poder político contra cidadãos, ou contra a comunicação social, quando reiteradas e excessivas, descredibilizam o debate político e geram medo – e não poucas vezes, há políticos que usam a agressão verbal como técnica geral de descredibilização do debate e forma de silenciamento. Os bons argumentos, as críticas sérias, envolvidas por um clima de agressividade verbal, diluem-se, perde-se o seu sentido, o seu espaço.
Vem esta reflexão a propósito da seguinte situação: no passa dia 30 de Julho, na sua conta pessoal do Twitter, João Galamba, Secretário de Estado Adjunto e da Energia, a propósito de uma entrevista à SIC Notícias de Clemente Pedro Nunes, professor catedrático jubilado do Instituto Superior Técnico e especialista em energia do hidrogénio, diz o seguinte: “É um aldrabão e um mentiroso do pior. Não há outra forma de descrever este cavalheiro. Chama-se Clemente Pedro Nunes e é um aldrabão encartado.”
Esta situação é noticiada pelo Jornal Económico e pelo ZAP Notícias a 31 de Julho. A 5 de Agosto, Camilo Lourenço escreve a sua crónica no Jornal de Negócios sobre este assunto. Também o faz, a 8 de Agosto, João Miguel Tavares na sua crónica no Público.
Um governante chamar “mentiroso” e “aldrabão encartado” a um cidadão é normal?
Creio que podemos concordar que chamar a alguém “mentiroso” e “aldrabão”, salvo prova feita da afirmação, é insultuoso e danoso. Mais, independentemente de prova, é aceitável um governante usar esta linguagem no espaço público?
O facto destes insultos proferidos por João Galamba terem sido escritos na sua conta pessoal do Twitter, no passado dia 30 de Julho, desculpabilizam ou diminuem a sua responsabilidade no que disse?
De maneira nenhuma.
Quando se está no Governo, qualquer afirmação feita em público – e uma conta no Twitter é espaço público – vale como afirmação oficial.
Um Secretário de Estado Adjunto e da Energia, que na sua conta pessoal do Twitter comenta um assunto, por sinal o mais importante da sua agenda política enquanto membro do Governo – a chamada Estratégia Nacional para o Hidrogénio –, insultando um especialista em assuntos de energia que falara publicamente criticando a Estratégia, não está, certamente, no domínio da sua esfera privada.
Por isso, é exigível uma explicação do Governo e do próprio governante para este comportamento.
Enquanto cidadão, esperei, na sequência da evidenciação deste comportamento impróprio de um membro do Governo, uma declaração sobre o assunto do próprio João Galamba, do ministro de que ele depende ou do Primeiro-Ministro.
Esperei, também, que houvesse mais indignados no espaço público, nomeadamente, declarações relativas a este assunto, dos partidos da oposição.
Mas o tempo passou. E nada.
Perguntei-me: estarão todos de férias? O que se diz no Verão fica no Verão?
Fui à conta pessoal do Twitter de João Galamba ver se ele se tinha retratado nos últimos dias. Há uma avalanche de tweets seus sobre hidrogénio. Mas relativamente aos insultos proferidos, nada. Fui à página oficial do Governo ver se havia alguma nota sobre o comportamento devido por membros do Governo em público, a propósito desta situação grave. Nada. Fui à página oficial do Ministério do Ambiente. Nada. Percorri as notícias desde 8 de Agosto até hoje, para saber se tinha havido declarações públicas sobre o assunto por parte do Governo ou da oposição. Nada.
Pois. É esta uma das estratégias habituais do Governo Costa face à debilidade da nossa sociedade civil e da nossa oposição. A sociedade civil não protesta, a oposição não se pronuncia, deixa-se o assunto desaparecer na comunicação social e nas redes sociais sem emitir declarações ou fazer comentários – é uma questão de dias, é como se não tivesse acontecido. A maior parte das vezes, o método resulta.
E este não deve ser caso excecional. Mais uma semana e ninguém se lembrará deste assunto, exceto João Galamba e outros responsáveis governamentais que apontarão o meu nome no caderninho dos indesejáveis, para memória futura (porque, como dizia Jorge Coelho, “quem se mete com o PS, leva”).
João Galamba insultou agressivamente um professor universitário especialista na área em que se pronunciou, um cidadão português merecedor de respeito no trato por um governante. Por situação similar, saiu João Soares do Governo de António Costa.
Talvez se lembrem: João Soares prometeu bofetadas no Facebook a Augusto M. Seabra por declarações que este tinha feito a seu respeito.
O mínimo que se podia esperar, agora, eram as exigíveis desculpas de João Galamba pelo que disse. E uma declaração do ministro da tutela ou mesmo do Primeiro-Ministro, lamentando as declarações infelizes deste membro do Governo e prometendo que tal não se voltaria a repetir.
Ao nada disto ter acontecido, António Costa validou o insulto proferido por governantes como comportamento admissível, como arma de arremesso político.
Amanhã, será viável a ministra da Justiça insultar um juiz, o ministro da Educação um professor primário, a ministra do Trabalho um sindicalista e por aí fora.
A elegância verbal em política, sinal de respeito no espaço público, deixa de ser relevante.
Afinal, porque não?
Só gente ignorante – aldrabões encartados, mentirosos, está visto – podem contrariar, publicamente, as luminosas políticas deste Governo, o caminho único, inexorável, brilhante, que fará de Portugal uma nação farol no concerto das nações.