Os custos pessoais e sociais deste ano que agora termina podiam corresponder a uma espécie de redenção. Quer dizer, um sofrimento adicional ser agora compensado por uma alegria não esperada ou mesmo por uma alegria correlativa, uma espécie de alegria obrigatória, um prémio devido.

Todavia, a vida não é assim. Nem sempre a justiça acompanha os casos que dela precisam, ou a alegria preenche a ferida da tristeza.

Lembro todos aqueles que, para lá deste ano estranho, padecem de todos os males: fome, pobreza, guerra, doença, opressão. Que, antes, durante e depois da pandemia estão sujeitos a provas quotidianas para lá do que uma exigência de humanidade pode aceitar.

O silêncio dos que sem voz, morrem ou sofrem. Este ano que termina, parece que nos irmanou a estes sofredores, pois também sofremos, no corpo e no espírito, para lá do que seria expetável numa existência normal.

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O nosso normal. Com condições que nem sequer questionamos: casa, comida, trabalho, férias, roupas, carros, viagens. Este normal que nem sempre nos deixa perceber que há outras normalidades, assoladas por agressões, ausências e falta de condições básicas de sobrevivência. Repare-se que quem está nesta situação, recebeu o mal adicional da pandemia.

Por isso, não há irmandade possível. A distância continua, pois se quantificarmos sofrimentos, continuamos longe das situações limite.

Paradoxalmente, não dá para quantificar o sofrimento. Pode sofrer menos, dentro do seu coração, uma criança assolada pela guerra, frio e fome numa casa destruída na Síria, que uma rica parisiense no seu palacete, rodeada de servidores solícitos.

Mas ninguém negará que a criança merece cuidados primários que a parisiense dispensa.

Dentro de nós, sufocámos este ano que termina, a vontade do encontro, o abraço, a fruição do respirar e partilhar o oxigénio com a família e os amigos. Nunca o ar que respiramos se tornou tão ameaçador, tão poluído, para lá dos gases atmosféricos.

A urgência sanitária securizou os territórios físicos e morais, cerceou os passos, os pensamentos, as emoções. Abafou o abraço, o soluço, a proximidade dos olhares amados.

Sob as máscaras necessárias, criámos outras máscaras, parte de nós entrou em modo adormecido, como o hibernar dos ursos no Inverno, guardando-se para uma futura Primavera.

A prova não terminou. Não há vacina que cure, de imediato, o desemprego, a falta de casa e de trabalho ou as eventuais novas vagas virais.

Talvez não possamos socorrer os que sofrem no Líbano, na Eritreia, em Cabo Delgado (?).

E o que dizer dos milhares de concidadãos que, em Portugal, precisam de nós?

Bem sabemos que não é possível deixar ao Estado, em exclusividade, a responsabilidade de cumprir a solidariedade. Apesar de haver quem procure convencer-nos que o Estado pode tudo. Num país que continua a afastar-se da média europeia e a ser ultrapassado, em capacidade de criação de riqueza, por quase todos os que antes estavam atrás de nós, que tem uma das maiores dívidas externas do mundo e os mais baixos níveis de produtividade europeus, é difícil de demonstrar que a crescente estatização da nossa sociedade tem sido benéfica.

Nós, cidadãos, não podemos continuar adormecidos, numa altura em que a pandemia deu mais poder aos Estados e retirou margem de manobra à cidadania.

Nós, os cidadãos, não podemos continuar adormecidos, numa altura em que os equilíbrios de poder não têm compensação e se manifestam, no espectro partidário, por um excesso de presença da esquerda e extrema-esquerda e da extrema-direita e uma desaparição do PSD e do CDS, o primeiro por uma voluntária e estranha não comparência, o segundo por uma súbita autodestruição.

Nós, os cidadãos, não podemos continuar adormecidos, no ópio de clubes desportivos, telenovelas, videojogos e igrejas evangélicas.

Que este Ano Novo nos traga a energia suficiente, a alegria necessária, autoportante, interior, forte e solidária, que nos ilumine a vontade da luta pelos nossos direitos, por uma sociedade equitativa e por uma exigência crítica face ao poder.

Portugal é um país de medrosos. Poucos levantam a voz. E os que levantam, habitualmente, são silenciados pela cumplicidade da comunicação social com os poderes instalados e porque “quem se mete com o PS leva”. A maior parte dos portugueses tem muito a perder – o pouco que têm. Por isso, prefere o silêncio súbdito, face à majestade dos que mandam.

Nós somos como vamos. Vamos continuar a ser as ovelhas bem comportadas do rebanho socializante ou teremos a capacidade de levantar as cabeças e ser mais nós próprios, solidários, com voz ativa e alegria no olhar?

Porque a coragem é acompanhada de alegria e a solidariedade premeia os gestos. Não um prémio monetário, um prémio bem maior, o da valorização da dignidade humana.

Como homens e mulheres, somos capazes dos maiores feitos e dos maiores horrores.

Que este ano que agora começa demonstre capacidades existentes, embora adormecidas. Que sejamos mais presentes numa sociedade tão plena de ausências.

Nada está, definitivamente, escrito. As páginas em branco dependem, grandemente, da maneira como vamos.

Como iremos?

Que a paz interior e a vontade de participação cívica nos acompanhem.

Sabendo que nada nem ninguém pode substituir a nossa ausência.