Se Pedro Sánchez fosse um general romano, teria montado um desfile desde as Puertas del Sol, em Madrid, e mandado erguer um arco triunfal junto à Moncloa, a sede do governo espanhol, eventualmente derrubando o que lá está a celebrar a vitória franquista sobre os republicanos. Não sendo, o chefe de governo de Espanha limitou-se a deixar chegar às redações e às redes sociais as imagens da salva de palmas exuberante com que ministros e funcionários o receberam quando regressou a Espanha, no final do enorme Conselho Europeu, de 17 a 21 de Julho, com o orçamento e o fundo de recuperação europeus acordados. Só faltou um Olé!. Se toda aquela cena se passasse numa taberna portuguesa ainda se teria ouvido, em fundo, alguém dizer “vai buscar, Rutte”. Ou pior.

Sánchez, de facto, triunfou. Espanha vai receber vários milhões da União Europeia e conseguiu evitar, pelo menos parcialmente, o tipo de controlo sobre o uso futuro dessas verbas que os holandeses e demais frugais diziam que queriam. Mas Sánchez é, também, ou deveria ser, um líder europeu e não um general no regresso de um combate com o inimigo. Mas foi assim que se quis apresentar. E, em boa verdade, a maioria dos restantes chefes de Estado e de governo fez parecido, embora a maioria tenha sido mais discreta.

Pelo contrário, Merkel, por pragmatismo convicto, e Macron, por convicção e necessidade, falaram sobretudo em nome da Europa. Eles sabem que os seus eleitores esperam que eles liderem a Europa. Os restantes, não.

O último Conselho Europeu provou as características contraditórias de que a história da construção europeia é feita. A “Europa” não existe. O que existe é uma construção política assente em Estados que decidem cooperar quando acham mais útil do que prejudicial. Ou quando não têm alternativa. E, ainda assim, ou por isso, vai-se integrando cada vez mais. Nem que seja para conseguir ganhos nacionais imediatos. Foi o que aconteceu.

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A diferença entre a proposta inicial da Comissão Europeia para o orçamento europeu e para o plano de recuperação e o que os líderes europeus aprovaram, depois de 90 longas horas de negociações, foi toda a benefício financeiro de cada um dos Estados e a expensas do que era mais europeu. Com exceção de a dívida ser comum e do controlo de uns sobre os outros, que irremediavelmente soa a centralização e a mais Europa.

Os ditos frugais, afinal, o que queriam era pagar menos. Os famosos rebates. E, no caso específico dos holandeses, guardar receitas cobradas no fundamental porto de Roterdão. Conseguiram-no. Os do Sul (os necessitados, chamemos-lhes assim, para se perceber), queriam receber tudo o que tinha sido prometido. Conseguiram-no, mesmo que com mais empréstimos e um pouco menos de subsídios do que inicialmente previsto. Os de Leste queriam não perder verbas por não terem, pelo menos por enquanto, sido tão prejudicados pela pandemia. Conseguiram-no e conseguiram que o controlo do Estado de Direito ficasse uma coisa gelatinosa.

Ganharam todos? Ganharam. De resto, ainda bem que sim. No dia em que um chefe de Estado ou de governo regressar de um Conselho Europeu como um derrotado, assumindo que foi submetido pelos demais, esse será o último dia da União Europeia e o primeiro de outra coisa qualquer. Uma massiva desagregação ou um novo Estado unido. É por isso que, por agora, enquanto a União Europeia necessitar, depender, da adesão democrática dos povos, tem de ser assim. Não há povo europeu, há 27 Estados e os seus povos.

O que se passou com a Grécia, ou mesmo Portugal, durante a Troika tem tudo que ver com isto. Ao contrário do que muitos pensam, a Troika era uma coordenação entre credores, não era um instrumento da União Europeia. E os credores têm poderes sobre os devedores que os sócios de uma organização política não têm. Foi isso que os da coesão quiseram tentar evitar. O que só parcialmente conseguiram, porque a necessidade impõe limites.

Se é verdade que o balanço final do Conselho foi a benefício dos Estados-membros e às custas das políticas mais europeias, como mais investimento na investigação e inovação, ao mesmo tempo aprofundou-se a integração europeia. A federalização, à falta de melhor termo.

A ida da Comissão Europeia aos mercados para financiar-se nos montantes em que o vai fazer é absolutamente transformador. Não se trata da mutualização das atuais dívidas de cada Estado-membro, mas é dívida nova emitida em conjunto. Ou seja, ninguém (de entre os ricos) aceitou partilhar o risco pelo pagamento das enormes dívidas que já existem, mas aceitaram que a Comissão se endivide em nome de todos. E que logo se veja como é que isso se vai pagar.

Por mais que se diga que é uma vez sem exemplo, está aberta a porta para o futuro financiamento do orçamento europeu por outras vias que não as contribuições de cada Estado. Mais, ainda, com o aumento dos ditos rebates. Os custos que isso terá, e as guerras que trará, por causa da harmonização fiscal, serão enormes. Mas vêm aí.

E é aqui que está a enorme contradição europeia. Cada líder presente na cimeira de Bruxelas fez contas de política interna. À crise que tem, à pressão eleitoral dos extremos e dos populistas, à manutenção do poder, aos ciclos eleitorais. Mas, ao mesmo tempo, todos eles aceitaram um salto em frente na integração, que terá profundas consequências.

Para compreender de forma simples, basta dizer que o fundamental do orçamento que Portugal terá para responder à crise terá de ser usado de acordo com critérios definidos e em projetos aprovados pela União Europeia. A Alemanha, também. Com a diferença de que o dinheiro europeu terá muito menos peso na resposta dos alemães, que têm muito mais folga orçamental que nós.

A Comissão Europeia é, compreensivelmente, e como se viu nesta discussão, a única instituição verdadeiramente europeia. Não lhe falta legitimidade democrática. Tem toda a que decorre de quem a nomeia. O que lhe falta é um povo. Tem 27. Tal como o Parlamento Europeu.

A tese de que o Parlamento é a verdadeira sede da democracia europeia tem dois desafios. Além de o Conselho também ser democrático, porque os governos são escolhidos democraticamente (se alguém invocar a Polónia e a Hungria para desfazer este pressuposto abre o caminho para o verdadeiro fim da União Europeia como existe), os deputados respondem perante eleitores nacionais. E quem disser que isso se resolve com listas paneuropeias, terá de explicar a quem é que os deputados liberais holandeses, socialistas suecos e dinamarqueses, ou populares austríacos, eleitos nessas listas, iriam obedecer neste caso. Fosse a quem fosse, alguns eleitores sentir-se-iam enganados.

Compreensivelmente, de novo, o Parlamento quer mais fundos gastos em programas europeus. São aqueles que pode controlar. Só que os partidos europeus não os podem querer às custas das verbas da coesão, do dinheiro que vai diretamente para os países dos seus eleitores. É por isso que o Parlamento pede mais. Porque tem duas preocupações. Os eleitores de um lado, e o que fiscaliza, do outro.

Um dos problemas centrais da Europa é a falta de incentivo dos decisores políticos para responderem para além das suas fronteiras.

Uns dirão que é necessário dar o salto em frente e superar os Estados, ignorando a História antiga e a recente. Outros, querem ir andando de facto consumado em facto consumado. Têm tido sucesso. Outros, ainda, dirão que a legitimidade da proposta política da UE tem de ser dupla: por um lado, tem de ser um valor acrescentado ao que os Estados dão. Por outro, tem de dar um destino, um significado.

Os povos não pediram para ser europeus unidos. Para alguns, para os federalistas, isso é um problema. Não tem de ser. Por mais Erasmus, Horizontes 2020, Schengen, mercado interno, fundos europeus ou mesmo Euro, os europeus não se sentem europeus antes de serem cidadãos nacionais. Por outro lado, tem de lhes dar, aos europeus, uma visão do mundo. Ser europeu tem de ter um significado. Não é apenas o progresso económico, é a representação de um modo de vida. E tem de ser assumido pelos políticos que são sempre, antes de tudo, nacionais. Como os que se reuniram em Bruxelas, naqueles 5 dias.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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