A Chanceler da Alemanha, que nos últimos quinze anos combateu duas das maiores crises económicas e a maior crise de saúde em várias décadas, sairá do poder em setembro de 2021. E a Europa enfrentará, já sem ela, grandes desafios económicos, políticos e de união entre Estados-Membros.

Em Portugal, Merkel é, para muitos, a face mais dura da austeridade na crise de 2011/12. Mas se houve erros na forma como a Europa lidou com a crise financeira e a crise da dívida nos países periféricos, sobretudo relativamente à Grécia, também é verdade, que a Chanceler alemã teve um papel determinante na defesa da unidade da Europa e mais recentemente, na resposta a esta crise pandémica.

O programa de apoio extraordinário para fazer face à crise da pandemia foi um dos grandes feitos da Presidência alemã da União Europeia. A Alemanha conseguiu com sucesso ultrapassar os obstáculos colocados pelos Estados-Membros mais frugais, que queriam impor uma condicionalidade muito mais estrita do que a solução que foi efetivamente encontrada. Foi também a persistência da Alemanha que permitiu não deixar passar incólumes os atropelos ao Estado de Direito em alguns Estados-Membros, especialmente na Hungria e na Polónia.

A Presidência alemã conseguiu ainda preservar os ambiciosos objetivos ambientais, que muitos imaginavam que seriam varridos para debaixo do tapete com a crise sanitária, ligando os fundos à recuperação verde e garantindo a aprovação de metas mais ambiciosas sobre a redução de CO2, de 55% até 2030. Ainda no ambiente, a Presidência alemã conseguiu um acordo sobre a estratégia da biodiversidade até 2030, que tem sido o parente pobre das políticas ambientais.

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Na política externa, os dois acordos (ou princípios de acordo) concluídos à última hora em 2020 serão marcantes nos próximos anos. O acordo com o Reino Unido minimizará os efeitos seguramente nefastos do Brexit. No acordo com a China, existem benefícios óbvios para as empresas europeias, já que a China se comprometeu a reduzir as barreiras à entrada. Mas persistem dúvidas sobre como lidará a Europa com as violações dos direitos humanos.

No que diz respeito às migrações, a Chanceler marcou pessoalmente a política europeia, com a decisão de abrir as portas da Alemanha aos refugiados da crise na Síria em 2015. No entanto, as críticas internas e externas sobre esta decisão, em particular porque incentivava a imigração ilegal e a tomada de risco excessivo por parte dos imigrantes, mas também porque pode ter contribuído para o aumento de popularidade da extrema direita na Alemanha, acabou por reverter os aspetos mais liberais da política inicial. O acordo com a Turquia sobre os imigrantes acabou por ter o efeito indesejável de deixar a Europa nas mãos de Erdogan. O que complicou também a aprovação de sanções à Turquia sobre as operações não autorizadas no Mediterrâneo em 2020. A pandemia acabou também por limitar a capacidade da Alemanha de levar a cabo um novo pacto sobre a política de asilo e das migrações.

Os desafios para os próximos anos não serão menos difíceis. Basta referir apenas três exemplos: a implementação dos fundos, a relação transatlântica e a resposta às tendências populistas e iliberais.

A implementação do orçamento da UE e do pacote de apoio extraordinário Next Generation EU, não tem só uma dimensão técnica, mas também política. Se houver a perceção que os fundos foram desperdiçados, ou pior, se houver fraudes, a confiança dos cidadãos na própria União Europeia poderá ser afetada, especialmente nos países que mais se opuseram ao pacote extraordinário. Por isso é crucial assegurar a implementação eficiente dos fundos e monitorizar o funcionamento das instituições nacionais responsáveis.

Do ponto de vista internacional, a relação com os Estados Unidos, agora com um novo Presidente, poderá, paradoxalmente, tornar-se mais complexa. Durante os anos de Trump, a política relativamente aos Estados Unidos acabou por ser facilitada pela existência de um opositor comum. Agora, com o Presidente Biden mais próximo dos aliados tradicionais dos EUA, os Estados-membros terão de tomar posições comuns sobre temas difíceis. São exemplo disso as regras sobre a privacidade dos dados, a relação com os gigantes digitais, maioritariamente americanos, ou a definição política relativamente aos 5G. As relações com a China poderão tornar-se também um tema problemático, em particular porque é provável que o Presidente Biden mantenha a posição relativamente dura do Presidente Trump, embora de forma menos espalhafatosa.

Por fim, a resposta ao iliberalismo e aos ataques à democracia. Apesar de ter conseguido ligar o pacote de recuperação económica ao Estado de direito, o iliberalismo não desapareceu dentro da União Europeia. Para além disso, as fronteiras da Europa continuam marcadas pelos ataques ao liberalismo, nomeadamente na Bielorrússia ou na Rússia. Passada a emergência a União Europeia terá de ser mais firme na defesa destes valores, incluindo face a alguns Estados-membros. O alargamento aos países dos Balcãs seria também um sinal importante de defesa dos valores das democracias liberais, mas o alargamento não é isento de riscos. De tal forma que não foi possível abrir ainda as negociações com a Macedónia do Norte. No entanto o debate será inevitável nos próximos anos.

Este ano será marcado por uma grande incerteza política na Europa. O Governo holandês demitiu-se esta semana devido a um escândalo sobre a política de apoio aos imigrantes. Na Itália, o Governo está por um fio, porque o primeiro ministro Conte perdeu o apoio do partido de Renzi e não tem maioria no Senado. A Alemanha terá eleições em setembro. Em 2022, será a vez da França, o que limitará o incentivo para o Presidente Macron tomar decisões impopulares, mesmo que sejam em benefício da Europa. A Europa terá de enfrentar estes desafios, com muita incerteza política e sem a Chanceler Merkel, a personalidade que mais marcou a política Europeia durante os últimos quinze anos.