Os resultados da primeira volta das presidenciais francesas assustaram muita gente no resto da Europa. O Presidente Emmanuel Macron venceu com 27%, mas não convenceu que tenha uma reeleição segura. Os franceses são notoriamente difíceis de governar e mais ainda de reformar. A França já vai na V República e, desde a sua fundação, em 1958, só três presidentes foram reeleitos: De Gaulle, Mitterrand, Chirac. Já Marine Le Pen, com 23%, teve o melhor resultado da direita radical nacionalista neste tipo de eleição na França do pós-guerra. Na segunda volta ela será a única alternativa à reeleição do presidente francês em exercício, visto por muitos franceses como demasiado elitista, reformista e atlantista. O Le Monde cita um diplomata europeu que diz: “é um susto, mesmo que não queira pensar que a França possa ser liderada por uma aliada do Presidente Putin. Como explicar esta possibilidade?

Se Le Pen for eleita, isso será por causa de problemas em França e não da Rússia e da sua invasão da Ucrânia. Como por regra acontece em eleições, a grande maioria dos franceses deposita o seu voto em função de queixas domésticas. Isto não significa que a invasão a Ucrânia não esteja a ter um impacto nas presidenciais francesas, mas ele é indireto: através das sanções e do consequente aumento acentuado dos preços, em particular do combustível e outros bens essenciais. Aliás, Le Pen, ao contrário de Eric Zemmour, fez um esforço mínimo, ao nível da sua retórica, para se distanciar de Putin e da sua invasão. Porém, sabemos que a candidata tinha incluído no seu programa eleitoral uma entente, um novo entendimento estratégico com a Rússia de Putin. Sabemos que o seu partido recebeu um empréstimo de 9 milhões de euros de um banco russo para financiar a sua campanha presidencial em 2017. Sabemos que Le Pen quer sair do comando militar integrado da Aliança Atlântica. Isto não é suficiente para afastar dela os eleitores franceses? Veremos na segunda volta, mas não foi suficiente para uma percentagem significativa na primeira volta.

A verdade é que a Rússia não é automaticamente o inimigo na cultura estratégica francesa. O Império Russo foi até, a partir de 1891, a primeira entre as grandes potências a aliar-se à jovem III República, numa Europa que ainda olhava a França republicana com grandes reservas. Uma Europa em que a Alemanha, unificada em 1871, se afirmava como uma ameaça crescente para os interesses de Paris e de São Petersburgo. A França foi também, logo em 1924, das primeiras potências ocidentais a reconhecer a nova União Soviética. E não é por acaso que as tentativas de degelo nas relações entre os blocos durante a Guerra Fria ficaram conhecidas por uma palavra francesa: détente. De Gaulle foi o primeiro chefe de Estado ocidental a visitar Moscovo, em 1966. O que de Gaulle nunca teve foi ilusões sobre a natureza do regime soviético ou sobre a forte tendência expansionista do nacionalismo russo, e a necessidade de firmeza para se lidar com ambos, sem cortar todas as pontes.

Em suma, quando Putin ataca a hegemonia global norte-americana ou a arrogância anglo-saxónica, não tem a mesma rejeição em França do que nos EUA ou na Grã-Bretanha. Muita coisa é ainda incerta nesta guerra e nestas eleições francesas, mas não há dúvida de que a eleição de Le Pen seria uma vitória para Putin e para a sua estratégia de dividir para reinar na Europa, investindo na polarização identitária e no iliberalismo. É verdade que já temos Órban. Mas a França não é a Hungria. A França é membro permanente do Conselho de Segurança, está no G7 e no G20, e é, na UE, a maior potência militar, a única potência nuclear e o segundo maior país em tamanho da população e da economia. Não creio que Le Pen no Palácio do Eliseu pudesse alinhar completamente com o Kremlin, mas poderia complicar seriamente a frente unida que tem sido tão importante para fazer pagar a Putin um preço muito elevado por esta guerra de agressão. Criaria também um problema muito sério no funcionamento da UE. E complicaria as coisas à política externa portuguesa, que tem investido muito, nos últimos anos, numa convergência diplomática com Paris.

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