António Costa atribuiu há dias um upgrade à sua geringonça. Condu-la com uma habilidade malabarística a que se têm rendido muitos cépticos que há dois ou três meses nem o benefício da dúvida lhe concediam, mas que actualmente, ofuscados pelo virtuosismo do primeiro ministro e quase já vendo nele um mago digno do Panteão Nacional, depressa se esqueceram da pergunta essencial, que permanece sem resposta: conduz-nos para onde?
A Moody’s louvou o OE corrigido por Bruxelas, e o Barclays congratulou-se com a solidez da “unidade de esquerda” que superou o desafiante teste de o aprovar. A poderosa agência, todavia, manteve Portugal na categoria de “lixo”. Primeiro porque a nossa credibilidade é lixo mesmo. Depois porque esta aparente contradição convinha a Bruxelas. O louvor sancionava os escrúpulos técnicos e a condescendência política da Comissão; o “lixo” descrevia adequadamente a cotação da nossa Dívida e mantinha a geringonça sob a conveniente pressão para moderar a sua congénita propensão para os excessos.
Segundo as palavras de António Costa, a geringonça continua a ser uma geringonça, mas merece um “triplo A”! Mantém-se de pé na peleja contra os seus inimigos internos, nem mais nem menos os partidos que a “apoiam”, o Bloco e o PCP. O Bloco fica para mais tarde – é um fenómeno novo, a considerar no contexto do radicalismo populista que se tem imposto na Europa do Sul. Ao PCP estamos habituados: não muda, e, contra as aparências, continua a dar exuberantes provas de que permanece igual a si mesmo, e igual a si mesmo permaneceria ainda que toda a população terrestre se transferisse para Marte.
O PCP pura e simplesmente não dispõe de ferramentas para entender o novo mundo globalizado em que se atreveu a meter o pé com esta preliminar e tímida experiência de colaboração condicional com um PS subordinado à lógica populista do Bloco de Esquerda. Não entende sequer as mais elementares regras do euro, decorrentes da correlação entre crescimento económico e deficit orçamental. Recordo o ar aflito com que Jerónimo de Sousa, no rescaldo das últimas eleições, confessava na televisão que após consulta de quatro ou cinco economistas, presume-se que dos mais abalizados, ainda não conseguira perceber por que motivo a UE estabelecera o limite do deficit nos 3% do PIB, em vez de situar a fasquia nos 4 ou 5%, por exemplo. Imagino que menos perceberá por que razão Bruxelas capricha agora em impor 0% de deficit. Ainda vamos ter saudades dos 3%! Na altura em que este valor foi fixado, certamente bem antes de o euro entrar em circulação, o crescimento médio do PIB europeu era estimado em 3%, num tempo de optimismo e fé nas potencialidades do Velho Continente. Tudo isso se esfumou. O crescimento económico europeu estagnou à roda de 1% e predomina o fundado receio de que tenda para zero. Não havendo crescimento, não pode haver deficit.
Toda a gente percebe o que levou o PCP a aventurar-se pelo ardiloso terreno da “democracia burguesa”. Numa perspectiva genérica, a permanência obstinada no isolamento, se garantia a pureza dos seus princípios intangíveis, por outro lado poderia desesperar os fiéis, fatigados por décadas de abstinência e pela espera dos amanhãs triunfais que não há maneira de raiarem. Os milenarismos laicos, mesmo alicerçados sobre “profecias científicas”, não beneficiam da devoção inexaurível e da fé inabalável que sustentam milénios de esperança na chegada do Messias divino. Na Rússia de hoje em dia, os cristãos ortodoxos não duvidam de que Jesus Cristo descerá segunda vez à terra no solo da Moscóvia, berço dos czares todo-poderosos, “soberanos de todas as Rússias”, que erigiram Moscovo na Terceira Roma, herdeira e sucessora da Primeira, destruída pelos bárbaros, e depois de Constantinopla, conquistada pelos turcos. Quanto aos judeus, em Israel e em todo o mundo, esperam e esperarão, imunes à impaciência, pela vinda do seu verdadeiro Messias.
Mas ao PCP impuseram-se sobretudo considerações mais palpáveis. A privatização dos Transportes, em vias de se consumar, constituiria um golpe profundíssimo para a sua Intersindical. É certo que lhe pertencem os sindicatos da Função Pública, mas, se exceptuarmos a Educação e tendo em conta que a Saúde é mais difícil de manipular, uma greve do que geralmente se entende por Função Pública não incomoda ninguém e quase ninguém dá por ela. Mas basta uma paralisação dos transportes de Lisboa, ou até mesmo as greves do metro que se sucediam com a regularidade dos dias e das noites, para transtornar a vida de milhões de pessoas. Acrescem outras privatizações, feitas, em vias de ser feitas ou a fazer, que não só enfraquecem o poder da Intersindical, e portanto a capacidade política do PCP, como constituem dolorosas facadas na doutrina, de entre cujos mandamentos se destaca a apologia das nacionalizações como parte da ofensiva contra o Capital, o Mercado e a Iniciativa Privada, três pilares do diabólico capitalismo.
A reversão das privatizações mais lesivas, bem como a expansão da presença do Estado no maior número de empresas possível, são exigências do PCP que visam, prioritariamente, fortalecer a Intersindical e, idealmente, convertê-la num efectivo contra-poder. O chamado “reforço da contratação colectiva” serve o mesmo desígnio, visando erigir a Central no interlocutor privilegiado do governo. Sim, do governo, não das confederações patronais, como se julgaria mais próprio. Acontece que a Intersindical tem uma tradição de asco e desprezo pelo patronato e suas agremiações. Também deste ponto de vista a geringonça, sobretudo com “triplo A”, vem mesmo a calhar. O que não se conseguir à mesa da concertação social, consegue-se pela porta maior do Parlamento (e, portanto, do governo), inaugurando uma espécie de ditadura parlamentar sobre a regulação das relações “contratuais” entre o Trabalho e o Capital. António Costa, de resto, já durante as famigeradas negociações das “posições conjuntas” se antecipara aos justos anseios do PCP, proclamando urbi et orbi que a concertação social não seria uma suposta “Segunda Câmara” (ou Câmara Alta ou Senado) com pretensos poderes legislativos: as confederações patronais seriam ouvidas, mas teriam de se mostrar razoáveis e cordatas, e resignar-se a uma posição subalterna, sob pena de serem expeditamente ultrapassadas pela Câmara Baixa do nosso sistema unicameral.
Para a Intersindical, porém, está reservado ainda um outro papel da maior relevância política. À frente da central encontra-se um verdadeiro apparatchik, gélido e imperturbável, daqueles a quem se poderia confiar um campo siberiano. Se dantes Arménio Carlos ainda se escondia por trás da figura do dirigente, se bem que intrepidamente “unitário”, actualmente fala e comporta-se como se fosse dono daquilo tudo, um novo ddt de outra massa e género. É o homem certo para o lugar certo, para a função certa e no momento certo. É o indispensável rosto estalinista do velhíssimo PCP nosso conhecido. Desde que a geringonça entrou em funções, endureceu. “Este não é um governo de esquerda e ainda terá de trabalhar muito para chegar a ser de centro-esquerda.” Arménio não lhe dará descanso. A sua função básica e essencial consiste em tranquilizar as bases mais façanhudas do PCP a respeito da inflexibilidade ideológica e da valentia política do “partido”; não dar azo a que em nenhum devoto se insinue a dúvida de que o “partido” se conspurcou ou possa conspurcar na companhia da direita – o PS sempre foi de direita – ou possa ser ludibriado e ultrapassado pelas habilidades do Bloco, já entretido a “preparar o day after” da geringonça. (Público, 20.2.2016)
Metodicamente, Arménio começou por colocar a casa em ordem. As tendências não comunistas organizadas e toleradas dentro da Intersindical (católicas e socialistas) deverão d’ora em diante submeter-se a uma disciplina “unitária” ainda mais rigorosa. A sua representação nos órgãos executivos é e continuará modesta. A central terá de falar a uma só voz. Carlos Trindade, dirigente da tendência socialista, fala de “fechamento”, queixando-se de que o monolitismo se vem reafirmando com mais vigor. Os bloquistas, muito minoritários mas aspirantes a alguma voz activa, esbarram na muralha d’aço com que Arménio protege a esmagadora hegemonia da sua linha sindicalista. O Bloco e sobretudo o PS dificilmente compreendem como possa Arménio desprezar o novo quadro político desenhado no Parlamento, que a ver deles justificaria da parte da Inter uma atitude mais cooperante e dialogante com um Poder deferente para com os trabalhadores e generoso com os mais desfavorecidos. Mas Arménio não vê motivos para contemplações – a menos que o governo trabalhe muito e se aproxime do centro-esquerda…
O novo quadro político, algo ironicamente, corre o risco de criar a nefasta ilusão de que o Poder está agora ao serviço dos trabalhadores. Por isso mesmo, mais necessário se torna ainda que estes se “movimentem e intervenham” para impor as suas “exigências”. Arménio explica: “Estamos disponíveis para dialogar, mas com um apelo à mobilização dos trabalhadores.” Ou seja – como já vem acontecendo – a Intersindical está disponível para negociar, mas negociará sempre sob a ameaça de convocar greves que levem o patronato, e sobretudo o governo, a vergar a cerviz. “O espaço da Assembleia da República tem de ser potenciado […] E, depois, o espaço de negociação bilateral com o governo e com as confederações patronais e a concertação social.” Nada disto é isento de riscos: “Ao longo dos próximos quatro anos poderá haver focos de confronto.” (Público, 26.2.2016)
Confrontos contra um governo apoiado pelo PCP? Pois claro: a Intersindical é uma organização independente e autónoma. Só a ela cabe avaliar, em cada conjuntura política, como, quando e quanto carrega no acelerador reivindicativo, decidindo ou não, “em último caso, avançar para o confronto”. Os que não leram Lenine ou os manuais básicos do comunismo, pensarão que os sindicatos servem para lutar pela melhoria das condições laborais dos trabalhadores. Puro engano. Os sindicatos, no dicionário comunista, são escolas de formação e órgãos de direcção política que utilizam a massa dos trabalhadores para os fins políticos superiormente ditados pelo partido, a vanguarda da classe operária. Assim, como Arménio confessou nas entrelinhas, no tempo de Passos Coelho a virulência da acção sindical era “para destruir” (Público, 28.2.2016). No tempo da geringonça, é para a pressionar e obrigar a chegar-se para a esquerda, ao mesmo tempo que “serve de contrapeso à base mais radical do PCP” (Carlos Trindade). E ao mesmo tempo que o partido, segundo leio na imprensa, expede comissários para os ministérios, supõe-se que para arrancar mais uns retoques no Orçamento – antes da discussão e aprovação na especialidade.
No Parlamento, o PCP desempenha a comédia burguesa. Na Intersindical, agride e chantageia o governo. Escrevi em tempos que o “partido” espremeria António Costa até ao tutano. Não parece que me tenha enganado. Já colocou em cima da mesa a reestruturação da Dívida, um assunto que para o PS não poderia ser mais inoportuno e embaraçoso. O Bloco, claro, em reunião recente da chamada “Plataforma Unitária”, considerou-o “prioritário”, e Catarina Martins confirmou que o programa do Bloco exige, hélás, “um confronto com Bruxelas”. Esperemos que Bloco e PCP não entrem em competição pelo destrambelho da geringonça, sobretudo depois que o primeiro ministro lhe atribuiu um glorioso “Triple A”.