Eu abandono Roma
Os camponeses abandonam a terra
As andorinhas abandonam a minha aldeia
Os fiéis abandonam as igrejas
Os moleiros abandonam os moinhos
Os montanheses abandonam os montes
A Graça de Deus abandona os homens
Alguém abandona tudo
Tonino Guerra in O Livro das Igrejas Abandonadas

Há uma semana, no dia 9 de Junho, foi publicada a sondagem ICS/ISCTE para a SIC e para o Expresso sobre «o grau de satisfação com vários aspectos da vida em Portugal; a atenção que as políticas públicas dão aos problemas de diferentes grupos sociais; a influência política de diferentes grupos e instituições; a confiança nas instituições; e a opinião sobre possíveis reformas políticas».

A esmagadora maioria dos portugueses está profundamente insatisfeita com o governo e o que dele decorre: as condições de vida. E de modo transversal, do SNS à educação e aos impostos. O descrédito na classe política é evidente. Nem por isso se acredita ou prevê qualquer mudança nem sequer as mudanças desejadas.

Lido mal com esta apatia. Faz-me lembrar aquele poema do Tonino Guerra, Eu abandono Roma. Lido mal com sentimentos de impotência. Recuso partilhar do fundo melancólico português – há-de ser uma costela espanhola ou judaica. Vejo a sondagem e o espelho do que somos deixa-me à beira de lançar uma invectiva demostenesiana aos vinte anos de políticas de esquerda em Portugal, o único país onde a social democracia e os democratas liberais são tidos pelos seus detractores por extrema-direita. Contenho-me e decido escrever sobre Biden e o seu discurso do Estado da União, a 7 de Fevereiro último, sobre como a esperança pode ser devolvida àqueles que a perdem, sobre a oferta de reparação à invisibilidade da classe média das indústrias deslocalizadas, sobre a revalorização do trabalho, sobre como a redenção, mesmo política, é possível. Mas o pensamento é volátil.

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E eu parei na Terceira Filípica de Demóstenes quando nos vi ao espelho. Este homem que conhecemos quase anedoticamente, precursor de Eliza Doolittle com os seus berlindes na boca para aprender a pronunciar cada palavra de forma adequada – no caso de Demóstenes para ultrapassar a gaguez, e em vez de berlindes, seixos. Não me lembro quem contou que Demóstenes rapou metade da cabeça para se impedir de sair à rua enquanto trabalhava na superação destas suas limitações de discurso. Ou que terá copiado não sei quantas vezes A História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Enfim, derivo.

Penso em Demóstenes, na sua oposição a Filipe II, da Macedónia, enquanto este ia debicando as cidades e possessões gregas e avançava para sul sem que uma grande parte dos atenienses se lhe opusesse. Ora por interesses comerciais ou por evitamento de um conflito aberto. Ou por não se considerar, de facto, a ameaça que o pai de Alexandre, o Grande, trazia com os seus exércitos. Certo é que os atenienses foram, ano após ano, durante trinta anos, manietados por pactos políticos, tanto quanto pela própria indiferença e inacção. Penso naquele seu famoso e duríssimo discurso e em como os atenienses, inflamados e cheios de brios pretéritos, pegaram em armas e foram derrotados. Mesmo o próprio Demóstenes foi acusado de corrupção. Este é o ponto em comum connosco: estamos derrotados.

Depois do miserabilismo do Estado Novo, com um povo pobre e iletrado, uma classe média baixa dos serviços, e uma classe média alta dependente das boas relações com o Estado, todos em relações de dependência mais ou menos directa, de forma a que, não apenas a liberdade, mas a ideia de liberdade se via cerceada, transitámos através de uma revolução que, a bem da verdade, não foi popular, mas militar, para novas expectativas com antigos modos de funcionamento.

Sim, somos uma democracia. Sim, temos um regime pluripartidário, eleições livres, ainda que não tenhamos feito a reforma da lei eleitoral e estejamos presos neste vergonhoso ciclo de pequena política partidária. Sim, o índice de literacia é felizmente outro. Sim, temos iniciativa privada. Sim, fazemos parte da UE. Mas.

Esta sondagem confronta-nos tanto como aquela Terceira Filípica. Mas não nos conduz a qualquer acção. Nada que rompa a dormência. Como se todos os políticos e políticas se equivalessem, fossem permutáveis. Não são. Que sejam assim tratados é o princípio do fim da democracia.

Quando na madrugada de dia 7 de Fevereiro ouvi o discurso de Biden, e a despeito dos comentários de proteccionismo, achei-o inspirador. Ao contrário dos atenienses de Demóstenes, os norte-americanos não foram confrontados com os seus vícios, mas com as suas virtudes, uma por uma, sendo a maior delas a definidora ideia de «possibilidades».

É possível.