Até há poucos dias, 1984, para mim, era o que sempre fora: um livro de George Orwell, lido nos tempos prodigiosos da adolescência, quando o mundo se estende páginas fora. Escrito em 1949, ainda por entre os escombros deixados pela Segunda Grande Guerra, enquanto a Europa se dividia em dois blocos separados pelo que Churchill denominou «a cortina de ferro» e enquanto a União Soviética absorvia a Hungria e a Checoslováquia. Na adolescência, a única idade feita de certezas de que me lembro, sabia que a Oceania era a União Soviética de Estaline como sabia que Goldstein, o traidor, era Trostksy. Portanto, até há poucos dias, 1984 era um livro relido ao início da idade adulta, repensado em 2015 com Boualem Sansal, e cuja Oceania vira as fronteiras redefinidas. Mas há poucos dias vi o filme 1984, de Michael Radford. E doravante 1984 será também um filme.

Fiquei a pensar. Nos Estados Unidos e na União Soviética, no mundo bipolar que sucedeu à Segunda Grande Guerra. No mundo unipolar pós-queda do Muro de Berlim. Na sua decadência e nos custos e nos riscos dessa decadência; na multipolaridade de hoje; naquilo que compõe o tecido de uma ordem social internacional. Em Putin. E no caos, orgânico, ou introduzido e controlado como na guerra. Como na guerra levada à Ucrânia. Como nas sementeiras de guerras híbridas. Na guerra subsidiada pela Oceania, em simultâneo seu substrato e garante. Isto é, no caos como garante da ordem e meio promotor dos interesses de quem o gera.

Freud, que como terapeuta me interessa muito pouco, mas como filósofo me interessa muitíssimo, tem uma mundivisão enquadrada por um discurso. Nesse discurso percebemos que a ordem, que se cria por oposição ao caos e para controlo deste, é dele que se alimenta: a lei, as regras, são competências, e exigências, do Super-Ego que se alimenta das forças caóticas, porém formidáveis, do Id, do inconsciente. A guerra da Oceania é exactamente a mesma guerra de Putin. É profunda tanto quanto civilizacional. E creio que essa profundidade se manifesta pela forma como nos dividimos. Há aqueles, entre os quais me incluo, que repudiam desde o primeiro momento a acção da Rússia de Putin e a responsabilizam. Há os que atribuem à NATO e aos Estados Unidos a responsabilidade pela invasão Russa da Ucrânia.

Enquanto para os falíveis Estados democráticos o espaço internacional, a ordem social internacional num mundo multipolar, servirá, como sempre serviu, à promoção dos interesses de cada um dos Estados mas também à criação, e reconhecimento e validação de instituições, pouco rígidas, que garantam esse equilíbrio precário, nos Estados não democráticos, o espaço internacional é o caos onde se favorece a ordem nacional e os interesses nacionais, é o lugar do crescimento e da consolidação do poder do Estado. Um poder mais rígido – rígido não é sinónimo de conservador ainda que use alguns dos seus sinais.

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A necessidade de ordem social na vida pública e privada é proporcional à intrusão do caos nessa mesma vida e à forma como ele se constitui ou não, como é percebido ou não, como uma ameaça. Ainda hoje, no século XXI, usamos uma metáfora viva desde os tempos medievais para o compromisso entre o caos e a ordem: o Carnaval, o tempo da desordem social auto-circunscrita. As autocracias são pouco tolerantes ao caos interno mas alimentam-se do caos externo e por isso promovem-no. As democracias são mais tolerantes ao caos interno. O que, não há bela sem senão, as torna mais vulneráveis. Não há melhor exemplo do que a eleição de 2016 nos Estados Unidos.

Putin, por formação, KGB, sabe avaliar um adversário, identificar as suas fraquezas, manipulá-las a seu favor. E por disciplina, Judo, sabe usar a força do adversário em seu próprio benefício. A decadência do poder norte-americano no mundo e as suas divisões internas têm sido sistematicamente exploradas – Obama, ainda que estivesse certo quando, de olhos postos na China, arrumou a Rússia como um «poder regional», esqueceu que esse poder regional fora um poder imperial, depois uma força secular, e faz fronteira com a Europa e com a Ásia, e não há nada de regional nisto, nem na sua vocação expansionista nem no seu desejo de retoma hegemónica na «sua» zona de influência. Nos Estados democráticos ocidentais tem-se verificado a mesma metódica e sistemática exploração. Do Reino Unido do Brexit à França de Le Pen e Mélenchon. A fragmentação social, a polarização política, a ausência de debate público, favorecem o caos. Ou, em linguagem orwelliana: «war is peace, freedom is slavery, ignorance is strenght». Quando o caos se agiganta, chega a ordem. Rígida, empobrecida, Oceânica.

A resposta será difícil mas ainda é exequível.

Internamente é preciso reforçar a democracia e os mecanismos que a garantem – mesmo que isso exija um modelo televisivo como o utilizado nas audições que a comissão de inquérito da Câmara dos Representantes está a levar a cabo para a averiguação do assalto ao Capitólio. E aproveitar a lição ucraniana: a não cedência dos valores aspiracionais da democracia e a defesa intransigente desses valores de forma concertada com os países democráticos.

Talvez Putin, à semelhança de Obama, tenha subestimado o contágio dos valores da hegemonia norte-americana.

Externamente, creio que quem ofereceu uma parte significativa da solução foi Y. N. Harari: os grupos humanos, ao longo dos milhares de anos da espécie sobre a terra, são cada vez maiores. A política internacional, esse território tradicionalmente hobbesiano, como recentemente Putin tem demonstrado à saciedade numa guerra contra todos, terá de ser um dos desígnios das políticas nacionais – obviamente não me refiro à vida diplomática. Já o é em pequena escala, temos a ONU, a NATO, por exemplo. Temos conceitos transversais de soberania ou de direitos humanos, por exemplo. À semelhança destes, porém com mais eficácia, terão de surgir outros poderes reguladores, suficientemente fortes para a aplicação da lei, e suficientemente abrangentes e lassos para que vivamos com eles.

O caos e a ordem são a mesma fome: se não os equilibramos, devoram-nos.

A autora escreve segundo a antiga ortografia