O European Council on Foreign Relations publicou recentemente dois policy briefs com resultados muito curiosos. O primeiro aborda a Alemanha “depois de Merkel” e o segundo reflete no tema “guerra-fria” entre os Estados Unidos e a China. Os policy briefs são o resultado de inquéritos de opinião em 12 países europeus (no qual Portugal está incluído devido ao apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

O primeiro mostra que a esmagadora maioria dos europeus avalia com simpatia os dezasseis anos de Angela Merkel à frente dos destinos da Alemanha e da Europa. Nunca se diz no estudo, mas subentende-se, que a Alemanha é o país que lidera informalmente a Europa e que o fez bem nas áreas da economia (os países do sul parecem reconciliados com a austeridade) e da defesa dos direitos humanos e dos valores europeus (os países do centro parecem reconciliados com a crise das migrações). O entusiasmo é tão grande que se tivessem de escolher entre dois hipotéticos candidatos para “Presidente da Europa”, e maioria votaria em Angela Merkel em detrimento de Emmanuel Macron.

Mas aqui começam os problemas. Segundo o estudo, parte da razão por que a chanceler seria preferida relativamente ao presidente francês é pelo seu conservadorismo. Macron parece ser demasiado progressista para o gosto europeu que se habituou a uma Europa de discurso triunfante mas de passinhos de bebé. Como escrevi noutra ocasião, este ritmo está longe de se coadunar com as necessidades de um sistema internacional em competição. Mais, os europeus não confiam na Alemanha para a construção de uma política externa comum. Os autores do estudo, Piotr Buras e Jana Puglierin, dizem, e com razão, que a liderança informal alemã terá de se reformar para originar uma Europa mais competitiva. Merkel serviu bem o seu tempo, argumentam, mas o que vem aí requer uma política mais ousada. Atribuem ainda a desconfiança europeia na política externa ao facto de Berlim ter conduzido, nos últimos anos, uma diplomacia mais voltada para o seu interesse nacional do que para o interesse europeu.

Parece razão exígua, até porque nem sempre foi assim. Há duas questões prévias no espírito das opiniões públicas europeias, que podem surgir de forma intuitiva, mas estão lá. A primeira é a recusa de que a Alemanha se torne a potência hegemónica da Europa, ainda que de maneira informal – Merkel, aliás, concordaria com os europeus, uma das razões pelas quais vai deixar saudades. Mas poderá bem vir a ser uma necessidade. A Europa precisa de uma alavancagem, que só pode vir de Berlim, se quiser ter peso na política internacional. Não existe poder sem grandes potências e a única grande potência europeia é a Alemanha (ainda que, evidentemente, esta questão ponha uma série de problemas que não há espaço para tratar aqui). Mas os europeus não gostam da ideia.

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A segunda razão está espelhada no segundo estudo, What Europeans Think about U.S.-China Cold War?, da autoria de Mark Leonard e Ian Krastev. Os europeus acreditam efetivamente que há um conflito bipolar em curso do qual não fazem parte, nem querem fazer. Acreditam também, em percentagens maioritárias, que os Estados Unidos da América são um “parceiro indispensável” em vez de um “aliado”.

Ora razões externas explicam esta situação: a Europa está meia-abandonadas pelos Estados Unidos há 20 anos e a passagem de Donald Trump pela Casa Branca desmoralizou os defensores da relação transatlântica. À data da recolha das opiniões ainda não tinha havido nem a retirada do Afeganistão nem o anúncio do AUKUS. O que mostra que a atitude de Biden ao querer reavivar os laços entre democracias, destacando as europeias, pouco ou nada disse às opiniões públicas que parecem achar que são imunes ao mundo lá fora.

Mas há ainda uma razão mais de fundo. A opinião pública assimilou de forma surpreendente a narrativa francesa, reproduzida pela Comissão Europeia, de que a União é – e tem de continuar a ser – uma unidade geopolítica com “autonomia estratégica”, equidistante dos problemas centrais das grandes potências, e simultaneamente cada vez mais próxima de cada uma delas sem hierarquias ou preferências (leia-se Estados Unidos, China, Índia e Rússia).

Talvez fosse um bom plano se a Europa tivesse uma potência hegemónica determinada politicamente e a sua segurança dependesse de si só. Não é o caso. Num antigo anterior escrevi que a América precisa de amigos. Agora digo que a Europa precisa ainda mais, sendo que não há substituto para a aliança com os Estados Unidos, que nos garante a segurança há mais de 70 anos. Além disso, a Europa precisa de acabar de uma vez por todas com narrativas gloriosas e grandiloquentes em relação às quais não tem a mínima condição de estar à altura. Os europeus parecem convencidos que a Europa pode ser tudo o que quiser pelo simples facto de proclamá-lo. Um dia perceberão que, sem poder efetivo, a Europa pode proclamar o que quiser que nada sairá dessas proclamações. Caso a ambição não desça ou a capacidade não aumente (por aliança ou qualquer outro método) a desilusão vai ser profunda. Com sérios riscos para a integridade da União.