É tempo de contar a história de Bernardo Lapa, tão verídica quanto o país. Ainda muito novo, Bernardo Lapa desconfiou que via o mundo de modo diferente. Três oftalmologistas garantiram tratar-se de astigmatismo, mas um tio ligado à mediação de seguros e às artes (participou em três “colectivas” de pintura e visitou outras dezasseis) falou-lhe no “olhar artístico” e desde então Bernardo Lapa não mais deixou de procurar a própria “voz”. Sempre era melhor do que procurar emprego.
No final da adolescência, a par do curso de Antropologia, Bernardo Lapa já havia percorrido inúmeras formas de expressão, da banda desenhada à fotografia, do candomblé à olaria, da acupuntura ao batuque. E causou brado, junto de dois primos, a sua fugaz aparição na curta-metragem “Mariana, ou da Natureza das Coisas”. Aos 21 anos, julgou ter descoberto o seu habitat no universo literário, que depressa abandonou ao perceber que, além de conceber o romance “A Côdea” (o relato de um flautista de rua que convence um gestor de activos a tornar-se flautista de rua), teria também de escrevê-lo. O rigor burguês e acomodado da gramática não o seduzia.
Aos 24 anos, após sucessivos retiros num mosteiro budista e no sofá-cama da namorada, Bernardo Lapa optou por romper com quaisquer abordagens tradicionalistas e dedicou-se a promover instalações. Embora nunca tenha instalado um ar-condicionado ou uma torneira de passagem, ficou relativamente célebre a ocasião em que se instalou num restaurante do Chiado, engoliu um arroz de tamboril com vinho branco e, no momento de pagar a conta, denunciou aos berros a perseguição aos artistas. Nessa época, repetiram-se os berreiros e as greves de fome, nenhuma superior a quatro horas.
A caminho dos 30 e a meio caminho entre a casa dos pais e as vigílias por causas sortidas, Bernardo Lapa viu um mendigo sem pernas e, ao contorná-lo a sete metros, teve uma epifania: só havia uma arte capaz de retratar sem constrangimentos os abismos para que se precipitam as almas, as brechas nos muros da incomunicabilidade, a complexidade da existência, enfim. Nesse instante, permanentemente acometido de uma forte consciência social, Bernardo Lapa comprou duas Sagres Mini e decidiu dedicar a vida ao teatro de marionetas.
Um ano depois, a companhia Cabaça dos Mafarricos, que Bernardo Lapa fundara com um amigo e cinco bonecos, adquirira largo prestígio no eixo Príncipe Real-Campo de Ourique. Restava um problema: estava-se em 2012 e a austeridade “neoliberal” restringia selvaticamente os subsídios à “Cultura”. Por motivos óbvios, a sra. Merkel e Pedro Passos Coelho não queriam expôr o povo ao exacto tipo de conhecimento patente nas obras da Cabaça dos Mafarricos. A peça inaugural, “Presos Por um Fio”, descrevia justamente (nos dois sentidos) a angústia de um licenciado em malabarismo – Tomás – que, por intervenção de um poder maligno e avesso à criatividade, se vê forçado a descer a trabalhos típicos da ralé. No derradeiro acto, desesperado pela falta de apoios, Tomás lança-se de um rés-do-chão e magoa-se um bocadinho. Na estreia, os seis espectadores aplaudiram de pé.
Nessa época, a contestação de Bernardo Lapa não se limitou aos fantoches. Politizado, marchou quase diariamente contra Israel, as touradas, a destituição daquela senhora brasileira, o exílio do cançonetista Tordo, o consumo de bacalhau, o aquecimento global, o arrefecimento global, o sr. Trump, a proibição das drogas, o boicote ao Haiti, perdão, a Cuba (ele confundia-os), o Belenenses e, claro, cantou a “Grândola” nas imediações de cada ministro da “direita”. Afinal, Bernardo Lapa era um homem da “Cultura”.
E foi enquanto homem da “Cultura” que Bernardo Lapa celebrou o advento de um governo de esquerda. Finalmente, julgou, o Estado assumiria a responsabilidade que lhe cabe no sector, distribuindo os rendimentos da população bronca pelos “agentes” susceptíveis de a iluminar. No princípio, tudo correu bem. Através de uma ou duas “cunhas”, a Cabaça dos Mafarricos obteve o financiamento de “Um Furúnculo em Setembro”, crítica implacável do turismo nas grandes cidades. Recentemente, porém, Bernardo Lapa soube que a encenação seguinte, ainda com título, tema, enredo e bonecos a definir, não conseguira a subvenção que ele e a humanidade naturalmente esperavam. Num ápice, tirou a conclusão inevitável: o governo de esquerda quer igualmente matar a cultura.
Nos últimos dias, Bernardo Lapa tem-se desdobrado em protestos. Perante as câmaras televisivas, empunhando um cartaz com o slogan “Só a ditadura não gosta da Cultura!!”, explicou às massas que a arte não pode depender do gosto delas, mas apenas do dinheiro. O vídeo, com 374 “visualizações” (e 41 “gostos”), tornou-se viral. Na sexta-feira, Bernardo Lapa desfilou ao lado da dona Catarina do BE, ruidosa adversária do Orçamento que aprova na AR. Começa a falar-se dele para um lugar na Direcção Geral das Artes ou até no ministério. Assim os deuses permitam, já que a “Cultura” é um direito divino.
Notas de rodapé
1. O sr. Lula? Sinceramente, custa-me a crer que um sujeito com passado ilustre no comunismo, no sindicalismo e na apresentação de livros assinados por José Sócrates esteja envolvido num dos maiores esquemas de corrupção da história dos esquemas de corrupção. Se calhar, os tipos fizeram mal as contas e não desapareceu um tostão. Ou então é mesmo má vontade e há uma data de gente interessada em prejudicar a democracia, o progresso social, a paz, o pão, a habitação, etc. Entretanto, espera-se que resultem os esforços dos nossos “media” na beatificação do ex-metalúrgico: é que todos os dias entram por aí brasileiros assustados e convencidos de que esse santo é o demónio em forma de analfabeto. E o modo como o santo evitou entregar-se às autoridades para forçar baderna e sangue mostra que os brasileiros têm alguma razão. O sr. Lula não será o demónio, mas é dos maiores canalhas disponíveis no mercado.
2. Inúmeros desmancha-prazeres pedem a demissão do presidente do Sporting. Nem a brincar. O sr. Bruno de Carvalho é das raras fontes de diversão que o país possui. Deve ser um dom natural, mas a verdade é que tudo o que o homem diz ou faz tem graça. Ontem, foi a suspensão do “plantel” em peso. Amanhã, será a transladação para os Jerónimos da sua vivíssima pessoa. Querer acabar com isto, e com o gozo alheio, é coisa de malucos. E ainda juram que o maluco é ele.