Não saber, ou fingir não saber, é uma estratégia usada por muita boa gente para encobrir, para se alhear, para se distanciar. Para não ter chatices.

A violência doméstica é uma realidade que todos gostaríamos que ficasse ao largo e, quanto mais longe de nossa casa, melhor. De preferência que jamais nos entrasse pela porta e, se possível, que também não se ouvisse entre portas. Que nunca nos chegassem ao ouvido discussões conjugais entre vizinhos, nem se ouvissem gritos ou vissem cenas de ameaça à integridade física refletidas nos vidros das janelas.

Infelizmente isso não é possível. Quero dizer, felizmente, pois é por termos acesso a situações graves e por lermos sinais de grande sofrimento que podemos agir e evitar o pior. Permanecer na ignorância, lavar as mãos ou seguir o ditado popular que estabelece que entre marido e mulher ninguém se deve intrometer, sempre fez mal às vítimas. Sempre protegeu os agressores e agravou ainda mais a precaridade e a vulnerabilidade das pessoas agredidas.

Só nas primeiras 15 semanas do ano de 2019 morreram 12 mulheres, vítimas de violência doméstica. Estes números são um escândalo e têm que funcionar como alerta. Têm que nos fazer refletir sobre aquilo que está ao nosso alcance evitar. Saber que (quase) em cada semana uma mulher foi morta por um namorado ciumento, um marido enraivecido, um ex namorado ou ex marido que não aceitou ser deixado, tem que nos interpelar. Todos os homens que começam por usar a sua supremacia física para bater, violentar e ameaçar, de forma a garantir o silêncio destas mulheres, dão sinais e deixam marcas. É impossível não as ver e não as podemos ignorar, insisto.

Muitos destes homens sabem consciente ou instintivamente que as suas vítimas ficam tanto mais indefesas quanto maior for a escalada da sua agressividade para com elas e, no auge da sua raiva e descontrolo, podem acabar por matar. O pior é que alguns destes homens são pessoas aparentemente normais e, em certos casos, até conseguem parecer bons pais de família. Nunca esquecerei o dia em que os meus pais chegaram a casa devastados com a terrível notícia de que o pai de dois amigos nossos da escola tinha morto a mãe em frente dos seus próprios filhos. Eu era pouco mais que uma criança e conhecia bem aqueles dois irmãos. Brincávamos juntos no recreio, conhecia a mãe e o pai, achava-os até uma família muito querida e estava longe de imaginar que fosse possível uma tragédia assim. E, no entanto, aconteceu.

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Não eram ‘pessoas das barracas’, como tantas vezes se ouve dizer (a expressão é muito má), nem era um casal particularmente desavindo. Nunca soube o motivo daquele crime e também nunca mais voltei a ver ninguém que estivesse relacionado com a família. Só sei que no mesmo dia aqueles dois irmãos ficaram órfãos de mãe e pai. A mãe, porque foi morta, o pai porque foi preso. Nunca mais foram à escola onde todos estudávamos e não soube mais nada deles. Voltei a lembrar-me destes dois irmãos quando se soube da morte do triatleta Luís Grilo e se percebeu que foi morto pela mulher e pelo amante dela. Pensei no filho, que também ficou para sempre sem pai e sem mãe (não apenas por estar presa, mas porque lhe será extraordinariamente difícil confiar nela como mãe, ou olhar para ela sem recordar que foi por causa dela que ficou órfão de pai), e pensei como deve ser arrasador sobreviver a isto e continuar a existir, tentando encontrar em cada dia uma razão para viver.

É terrível olhar para os números, mas é ainda mais desolador conhecer as histórias por detrás dos números. Sejam elas de mulheres ou de homens, note-se. Embora os dados estatísticos sobre os homens agredidos e/ou mortos sejam infinitamente menores que os relativos às mulheres, todo e qualquer tipo de violência doméstica é abjeto e deve ser olhado como relevante. Não pode ser encoberto nem ignorado, sob pena de estarmos a contribuir para que haja mais mortes e, mesmo sem querermos nem sabermos como, acabarmos por nos tornar moralmente cúmplices destas mesmas mortes.

Tal como se pede que ninguém encubra um pedófilo ou abusador, também é urgente que ninguém ignore um agressor. Nos tempos que correm, em que todos nos associamos muito mais, todos estamos mais atentos e mais ativos, todos estamos mais disponíveis para criar movimentos reais e virtuais, apostados em cuidar do Planeta e das vítimas das catástrofes, é vital que a nossa ideologia também seja a ecologia humana. Temos que estar atentos ao mundo, mas também àquilo que acontece nas nossas redondezas. Àquilo que se passa no nosso quilómetro quadrado.

O problema é que, se é fácil conjugar esforços para resgatar pessoas e bens em realidades de catástrofe, em que tudo fica mais exposto aos olhares do mundo, nas situações de violência doméstica as pessoas não só não se expõem como se escondem e disfarçam. Muitas vítimas protegem os seus agressores até ao fim. Mascaram a realidade, inventam quedas e falam de assaltos imaginários para justificarem nódoas negras e braços partidos. De tanto se quererem proteger, desprotegem-se.

É importante perceber que a violência doméstica não começa no dia em que o homem ou a mulher agridem fisicamente o cônjuge ou companheiro. Começa muito antes, muito lá atrás. Por vezes começa no início do próprio namoro, com ataques, com ofensas verbais, com insultos, com uma inclinação para desvalorizar o outro, com um jogo de sedução que assenta no desdém, no menosprezo e num rebaixamento que leva à auto depreciação da vítima. Todos sabemos que os maus tratos não são apenas físicos e todos estamos conscientes de que a violência psicológica e emocional deixa ainda mais marcas que as agressões físicas. Pior, como não deixa vestígios pode ir a níveis tão criminosos como quem mata.

Destruir a segurança, trair a confiança, desvalorizar consistentemente o outro, isolá-lo da família e dos amigos, revelar ciúmes patológicos, desconfiar e ter atitudes de controlo permanente, levar o outro a acreditar que vale pouco ou nada, provocar desânimo crescente, dividir interiormente ao ponto de gerar sentimentos que levam à depressão, são apenas alguns dos sinais da violência psicológica que mata emocionalmente.

“Quem te ama não te agride” foi o mote da campanha contra a violência no namoro promovida pela CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, lançada em Fevereiro, a propósito do Dia dos Namorados. Esta e outras campanhas, como a que exibia jovens com cartazes interrogativos onde se podia ler “Qual é o teu curso? Licenciatura em Maus Tratos? Humilhação Aplicada? Mestrado em Sexo Forçado? Doutoramento em Controlo e Ciúmes?” são campanhas absolutamente urgentes, mas não chega fazer campanha nos Media e nas redes sociais. Todos temos que ficar alerta e encontrar os meios certos para denunciar os que maltratam. E, ao mesmo tempo, criar ou reforçar canais seguros para resgatar os maltratados. Ninguém se pode calar porque calar é proteger os agressores e a ignorância sempre fez mal às vítimas.