Manuel Pizarro tomou posse como Ministro da Saúde enquanto era gerente de uma empresa de consultoria no sector da saúde. Três semanas após a tomada de posse, a situação mantinha-se e foi revelada pela comunicação social. A incompatibilidade é evidente e legalmente objectiva — é um daqueles casos sem zonas cinzentas e sem espaço para interpretações. No “Regime de funções por titulares de cargos políticos”, encontra-se explicitado que os membros do governo devem exercer as suas funções em exclusividade, o que é incompatível com quaisquer outras funções (remuneradas ou não) em entidades com fins lucrativos. Ou seja, ao tomar posse como Ministro mantendo-se gerente da sua empresa, Manuel Pizarro acumulou funções e pisou o risco. A única sanção prevista na lei é a demissão do Ministro.
Este caso é muito interessante enquanto exame à saúde das instituições democráticas do regime, desde logo porque a situação em si mesma não aparenta ter particular gravidade. Afinal, a incompatibilidade de Manuel Pizarro resume-se a uma questão formal, o próprio está ciente da sua existência e já iniciou a dissolução da empresa em causa. Na prática, a acumulação de funções de gerência da empresa com a de membro do governo não lhe trouxe qualquer benefício económico nem prejudicou a sua actuação como Ministro. Ou seja, reconhecendo-se a existência da incompatibilidade, a tentação é apontar no sentido de deixar o assunto passar como um desleixo inconsequente. Excepto num pormenor: a lei foi violada.
Dir-me-ão: a violação da lei é, neste caso, um mero formalismo. Talvez até seja. Mas o ponto é que, mesmo quando se trata de um formalismo, a lei é a lei — e a lei é para cumprir. Aliás, o bom funcionamento de um regime democrático assenta no respeito dos formalismos legais e institucionais, pois nesses formalismos habitam os freios e contrapesos que mantêm a separação de poderes e um saudável escrutínio contra abusos. Daí que a pergunta obrigatória seja esta: apesar de ser um caso de menor gravidade, apesar de ter sido por um breve período, apesar de politicamente ser prejudicial ao governo, a lei vai ser cumprida?
Numa democracia madura, a resposta seria curta, óbvia e espontânea: sim. Ora, não sendo a política portuguesa reconhecida pela sua maturidade, é a partir daqui que tudo se embrulha. Primeiro, o caso ficará refém da lentidão dos tribunais: compete ao Ministério Público propor uma acção para a demissão do ministro, junto do Tribunal Constitucional. Ou seja, estima-se que o processo se arraste durante meses, embora o caso seja de análise linear, sem qualquer complexidade, até porque o próprio Manuel Pizarro confessou a acumulação de funções e reconheceu a consequente incompatibilidade.
Segundo, o caso ficará nas mãos da política: na última vez que António Costa lidou com uma situação análoga, referente ao então ministro Siza Vieira, atirou tudo para debaixo do tapete com um golpe de teatro. Quando Siza Vieira se apercebeu que, por desconhecimento da lei (o que não o iliba), tinha passado meses em acumulação de funções (ministro e gerente de empresa), o caso arrastou-se nos corredores do Tribunal Constitucional até que o primeiro-ministro resolveu tudo com uma remodelação governativa. Siza Vieira passou de Ministro-Adjunto para Ministro-Adjunto e da Economia — e, com a nova tomada de posse, a análise do caso tornou-se “inútil” aos olhos dos juízes do Tribunal Constitucional. Uma semana após a sua nova tomada de posse, foi o próprio Siza Vieira quem solicitou o arquivamento do processo, com sucesso. É como se nada tivesse acontecido.
Infelizmente, aconteceu. Em 2017/2018, neste episódio com Siza Vieira, assistiu-se ao fracasso das instituições democráticas e a (mais) um exemplo de como António Costa não hesita um milésimo de segundo antes de contornar a lei ou atropelar a ética republicana. Agora, em 2022, com Manuel Pizarro, está a acontecer outra vez. E, assim, o regime tem uma oportunidade de redenção, uma segunda tentativa para mostrar que a lei é para ser cumprida, independentemente de dar ou não jeito ao governo. Se falhar novamente, lamento dizê-lo, desistam de chorar lágrimas de crocodilo pela ascensão dos populismos que só gritam que o regime está podre — porque, efectivamente, estará.