Gosto muito de ver aqueles grupos de adolescentes que, antes ou depois dos concertos dos seus ídolos nesses festivais rock que hoje em dia há em todo o lado, são entrevistadas pela televisão e cantam as músicas favoritas deles. Naquelas idades, a experiência da música é muito a experiência da repetição e, sobretudo, a experiência de uma comunidade de gosto que é quase uma exigência de unanimidade, que, de uma maneira geral, governa as amizades nessa altura. E aquele entusiasmo que se vê naquelas caras e naquelas vozes diz precisamente isso nos seus momentos felizes.
Com a idade, essa exigência de unanimidade vai-se, graças a Deus, perdendo, embora subsista sempre em nós, em matéria de gosto, uma reivindicação tácita de universalidade, que aprendemos, pelo menos na aparência, a dominar. Noutros domínios, como o político, a exigência de unanimidade é mais superficial, menos originária, e mais facilmente controlável. E, quando não o é, o feroz desejo de um acordo integral conduz a resultados que não são nunca bons, para falar delicadamente.
O meu desconhecimento da música pop contemporânea roça desgraçadamente o absoluto, embora de vez em quando faça um esforço ridículo para ganhar alguma ciência no capítulo. De qualquer maneira, isso não interessa. Li no outro dia, numa história da música soul, o excerto de uma entrevista de uma cantora gospel (gosto muito de música gospel), Cissy Houston (a mãe de Whitney Houston), onde ela dizia que “quando se fala sobre uma coisa viva – e eu acredito que a música é uma coisa viva, que respira – temos de compreender que ela avançará e mudar-se-á para sobreviver”. A música pop de hoje em dia, sobre a qual nada sei, passado há muito o transcendente saber dos meus treze anos, é certamente o resultado dessas metamorfoses necessárias à sua sobrevivência. As formas desenvolvem-se, sem que seja por qualquer necessidade própria determinável, mas a partir de invenções de profundidade variável, umas a partir das outras. O importante é que dêem prazer.
Mas voltemos ao princípio, à exigência de unanimidade. Ela é natural na idade certa e no lugar certo, que é o das miúdas de que falei no princípio. E, nesses casos, tem a graça própria ao natural. Transposta para outros contextos, há nela qualquer coisa de inquietante e de ameaçador. Ora, vivemos em tempos mediáticos de uma exigência de unanimidade como não me lembro de alguma vez ter vivido, isto é, tempos de regressão sistemática e generalizada. Na maior parte das vezes, uma exigência de unanimidade negativa, definida a partir da obrigação de detestar – e detestar integralmente, sob a forma da radical abominação – pessoas tão diferentes como Trump, Bolsonaro ou Boris Johnson. Qualquer acordo, por mais pontual que seja, com algo que tenham dito ou escrito, é anátema e faz com que passemos a “trumpistas”, etc. Não é bom viver assim.
Nos últimos tempos surgiu, no entanto, na figura de Greta Thunberg, um novo objecto de unanimidade, desta vez positiva. É muito curioso. Não por causa da questão das “alterações climáticas” em si – uma questão importante e interessante, entre outras coisas, porque toda a controvérsia é “impura”, cruzando elementos científicos e políticos numa proporção extrema –, nem sequer porque há um óbvio drama humano ali, um drama que só muito dificilmente terá um final feliz. É curioso porque esta nova exigência de unanimidade em torno de Greta Thunberg representa uma exigência de regresso à faceta mais negra do pensamento adolescente, a outra face, a lunar, da moeda do comportamento das miúdas que cantam na televisão as canções dos seus heróis musicais. E porque há um coro de adultos (excepção feita a Trump, diga-se a verdade), a começar por António Guterres, que fazem a triste figura da mais declarada inferioridade e mostram o mais acabado temor reverencial.
O discurso de Greta Thunberg na “Cimeira do Clima” foi um momento de perfeito horror. Primeiro, porque, patentemente, a “emoção” foi friamente encenada do princípio ao fim, algo que saltava aos olhos do mais distraído dos humanos. Não havia um átomo de veracidade naquela intervenção, se exceptuarmos, concedo, um ódio cego e monomaníaco. Confesso que, nunca tendo ouvido um discurso dela, a coisa me surpreendeu: a terrível simulação surpreendeu-me. Depois, porque todas as palavras transportavam ameaças de vingança divina. O natural dogmatismo da adolescência assumia ali as proporções do fanatismo e do “tudo ou nada” mais extremo. “Como se atrevem?”, diz o doce anjo da vingança, que acusa os seus passivos auditores de lhe terem “roubado a infância” com as suas “palavras vazias”. Eles que não contem jamais com o seu perdão.
Ao ouvir aquele discurso, a luz fez-se no meu espírito. O fanatismo – todos os fanatismos – não vive de nenhum sentimento absoluto da verdade do que se crê ou diz, de onde qualquer cepticismo se encontra arredado: vive do puro desejo de impor a sua crença aos outros. Por outras palavras, um fanático não precisa de se encontrar capturado por uma qualquer iluminação fantástica. Define-se sim pela necessidade de fazer crer que foi tocado por essa iluminação, como meio para a impor aos outros. É o desejo de a impor, e não qualquer efectiva expressão do seu íntimo mais profundo, que o move. Para mim, foi essa a inesperada lição de Greta Thunberg.