Porque é que me sinto sempre ligeiramente desconfortável ao escrever sobre o Bloco de Esquerda? Não preciso de pensar muito para descobrir, a razão é fácil: porque é preciso dar ao Bloco uma importância que ele, não fosse o arranjo que António Costa inventou para chegar a primeiro-ministro, nunca teria tido e, na substância política, de facto não tem. Isto, como ver Catarina Martins na televisão com ares de poder, cria um sentimento de irrealidade que provoca o tal mal-estar. Será o Bloco de facto relevante? Merecerá ele que se perca algum precioso tempo a levar a sério a sua existência, com os modos graves e profundos de um comentador televisivo de futebol? Não estaremos a atribuir demasiada realidade a uma dúbia ficção da nossa imaginação?

Seja como for, é a situação presente que conta. E a situação presente dá-lhe efectivamente importância. Por isso não é inútil averiguar o que pensa de si e da sociedade. E a comemoração dos seus vinte anos forneceu da parte dos seus membros algumas declarações instrutivas na matéria, condensadas num artigo (“Estamos aqui para a luta toda”) do esquerda.net, que, sem dúvida por censurável preguiça, será a minha única fonte neste texto. Ora vejamos.

Catarina Martins, com a subtileza de quem resume O Anel dos Nibelungos à história dos problemas de uma família disfuncional, dá-nos num traço rápido a sua visão geral da sociedade. O essencial consiste na luta permanente entre o público e o privado, que deverá idealmente terminar com a definitiva e justa vitória do primeiro sobre o segundo. O privado é uma espécie de dragão fumegante que se alimenta de eucaliptos e mata a sede em poços de petróleo. Contra ele ergue-se o justo herói público, com a invencível espada da nacionalização. A espada mágica vai dizimando tudo à sua volta até que no terreno de batalha reste apenas o Estado, lugar da virtude e da beleza. O herói público possui, além da espada, um eficaz arsenal que o ajudará a combater o asqueroso animal: as “greves feministas” e as “greves climáticas” são também elas “trovões” –  trovões “anti-capitalistas, socialistas, ecosocialistas, feministas, anti-racistas, internacionalistas” – que põem em debandada os “inimigos poderosos” da “elite financeira”.

Todas as lutas são elementos harmoniosos de uma mesma luta, da “luta toda”. É o que a jovem Gabriela Morais, recorrendo a um vocabulário académico, chama “a interseccionalidade das lutas” contra o dragão capitalista. Tal interseccionalidade evidencia uma proposição avançada por Fernando Rosas: “o capitalismo repousa na exploração do capital, mas também no patriarcado, no sexismo, na perseguição das minorias sexuais”. “Tudo comunica”, como diz a dona de casa (oprimida) do Mon oncle de Tati. Vê-se aqui que os trovões do Bloco, para falar como Catarina Martins, fazem, de um só golpe, tremer o vasto conjunto de alvos que os fulminantes raios que os acompanham têm por missão destruir.

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Essa destruição, explica Francisco Louçã, é também a destruição de “uma estética da infelicidade, da solidão”. Não é difícil imaginar que para Louçã o não reconhecimento da “interseccionalidade das lutas” contém em si as raízes da infelicidade e da solidão. Daí que a missão do Bloco seja unificar: as suas causas não são, é ele quem nos diz, fracturantes – são “causas unificantes”. A “luta toda” do Bloco, que traz o “sorriso” e a alegria, tem por inimigas a diversidade e a pluralidade que conduzem supostamente à miséria humana. Marisa Matias – cuja genuína felicidade inspira, de resto, efectiva simpatia – enumera também ela algumas lutas nas quais descobre a urgência da unificação, do Sahara Ocidental à Argentina, passando por Lampedusa e Calais. “Tudo comunica”, com efeito.

E tudo tem um sentido unívoco. Não deve haver nada que se passe no mais insignificante atol do Pacífico que, para o Bloco, seja equívoco, merecedor de dúvida e não explicável em função do que se passa numa qualquer outra parte do mundo. Se há, de facto, algo que parece ser comum às intervenções celebratórias dos vinte anos do Bloco é essa ideia maciça de uma unificação generalizada sem margem para qualquer indeterminação. Realidades que podem conviver sem apresentarem entre si qualquer ligação interna (“perseguição das minorias sexuais” e “exploração do capital”, por exemplo) aparecem mágica e alucinatoriamente dotadas de uma unidade indisputável. A única coisa que secciona este vasto mundo é a oposição do dragão do mal e dos príncipes do bem. Aí a oposição é absoluta e só pode terminar com a vitória dos princípes do bem, isto é, com uma recusa universal da pluralidade e da diversidade, com tudo o que elas têm de incerto e indeterminado.

Há em tudo isto uma tão grande infantilidade que as dúvidas que exprimi no início parecem ter alguma razão de ser. Será mesmo para levar a sério? Acontece que, infelizmente, pelo oportunismo de António Costa, essa infantilidade produz múltiplos efeitos concretos na nossa sociedade, e esses efeitos estão, no seu conjunto, longe de serem bons. Sob a capa da defesa da liberdade, militam activamente contra ela. Como costuma acontecer com os discursos e as acções de bandos de iluminados para os quais nada há de indiferente e tudo, sem excepção, participa de um plano único. Que nenhuma democracia sobrevive se um tal sistema de pensamento, através da “luta toda”, tomar conta do poder, eis algo que não é difícil explicar.