O Iraque provou que as intervenções ocidentais podem ser um desastre. A Síria provou que as não-intervenções podem ser um desastre ainda maior. Mais de cinco anos de guerra fizeram, até agora, meio milhão de mortos e milhões e milhões de deslocados, dentro e fora do país, com centenas de milhares de refugiados a entrar clandestinamente na Europa. E não foi preciso George Bush, nem “Neo-Cons”.
Aleppo, sob as bombas, é hoje o filme da imprevidência ocidental. Ao princípio, Barack Obama incitou a revolução síria. Depois, consentiu ao carniceiro de Damasco que pisasse todas as “linhas vermelhas”. Admitamos que inicialmente houve ingenuidade: depois do Egipto e da Líbia, julgou-se que as tiranias eram coisa fácil de empurrar. Lembram-se? Bastava ligação à internet: as revoluções eram no Facebook. Por fim, percebeu-se que era um pouco mais complicado. Apareceram então os mapas com o xadrez étnico e religioso do país, e as análises dos equilíbrios de poder na região. Aí, toda a gente desistiu. A guerra continuou.
Veio por fim a crise dos refugiados. Diz-se que despertou a consciência ocidental. Não, ao contrário: veio adormecê-la. As centenas de milhares de sírios que chegaram à Alemanha serviram para fazer esquecer os milhões que ainda estão na Síria, cercados e perseguidos pelos vários senhores da morte locais. Deixámos de falar da Síria para passar a falar das nossas sensibilidades, das nossas eleições, das nossas fronteiras. Assad destrói os hospitais de Aleppo, e nós discutimos o Tratado de Schengen. O que importa ao humanismo politicamente correcto são as dezenas sírios que num bairro alemão podem ser alvo de um olhar menos multicultural, não os milhares que em Aleppo estão a ser triturados pelos aviões de Putin e pela artilharia de Assad. É como se fora das fronteiras do Ocidente, os seres humanos não tivessem direitos.
A Síria é o segundo palco da nova guerra fria. Putin tirou as medidas aos ocidentais quando anexou metade da Ucrânia. Agora, está determinado em oferecer um triunfo ao seu cliente Assad na Síria. O Estado Islâmico cumpriu o seu papel de justificar a ingerência russa. Entretanto, Putin vai-se tornando um grande exemplo, já copiado dentro da própria União Europeia (na Hungria), e festejado por Trump nos EUA. Mas a Rússia de Putin, como já foi notado, tem um PIB do tamanho da Itália, e em declínio. A sua força consiste quase só na tibieza ocidental.
Estava então Obama errado? Sim, do ponto de vista humanitário e diplomático; não, do ponto de vista da política interna. Porque a moldura penal para o crime político por omissão é muito favorável. No caso do Iraque, a decisão de remover Saddam e os desacertos da ocupação militar causaram enorme controvérsia, justificaram marchas, deixaram um rasto infindável de artigos, livros e filmes. Sobre a Síria, não há nada. Bush pagará sempre pela “ invasão do Iraque”; Obama nunca responderá pelos massacres que deixou acontecer na Síria. Para um presidente Americano, a lição é clara: é sempre preferível lavar as mãos.
Estou a dizer que deveríamos fazer outro Iraque? Não, mas o contrário de fazer uma coisa não é não fazer nada. A marcação de “zonas de segurança” na Síria, para acolher a população civil, teria sido possível e poupado muitos sofrimentos. Mas sim, teríamos tido logo passeatas contra a “guerra imperialista”. Marx dizia que os acontecimentos se repetiam: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Mas há acontecimentos que não precisam de se repetir para serem farsa e tragédia ao mesmo tempo. A Síria é um deles. Um dia, há-de ser uma vergonha ter sido contemporâneo desta guerra.