As pessoas despedem-se, as crianças pedem para serem poupadas, e o mundo olha com a mais imperturbável indiferença. Bem sei: tudo é mais complexo do que algumas imagens dramáticas dão a entender. Mas noutros tempos ou noutras circunstâncias, nunca a complexidade dissuadiu clamores, protestos, manifestações. Talvez as crianças, as mulheres e os homens de Aleppo tenham apenas tido azar: o azar de estarem a ser bombardeados pela ditadura de Assad com a ajuda da Rússia de Putin, em vez de serem atacados, por exemplo, por Israel com o apoio dos EUA. Se fosse este o caso, não faltariam moções, votos, marchas. Mas não se trata apenas daquela velha duplicidade de critério que, desta vez, até um autor do radicalismo reconheceu. Há, aqui, algo de mais fundamental.

Aleppo é o resultado do desligamento dos EUA em relação ao mundo. Não é fácil apagar a pegada de um país que produz um quinto da riqueza mundial. Mas é possível, como fez Obama, reduzir a disponibilidade americana para tomar as dores dos outros. Após a controvérsia do Afeganistão e do Iraque, Obama reduziu as intervenções americanas a campanhas secretas, geralmente com drones. Ainda incitou as Primaveras Árabes, mas de longe — e apenas para deixar os manifestantes entregues à sua sorte. Na Síria, Assad pôde pisar todas as “linhas vermelhas”. Trump promete não ser diferente com o seu slogan “America First”. Os EUA parecem estar a conformar-se, tal como as potências europeias antes deles, com um mundo que não podem transformar. Mas isso tem consequências para o interesse ocidental pelo resto do mundo.

Durante décadas, os EUA viveram a ilusão, que já tinha sido a das potências europeias, de que deviam e podiam corrigir o mundo. O “fardo” da Inglaterra tornou-se o “destino” da América. Foi assim durante a Guerra Fria, mas também depois do 11 de Setembro. E numa espécie de providencialismo invertido, muitos ocidentais estiveram convencidos de que o célebre “imperialismo americano” era o único obstáculo à paz e à harmonia no planeta: sem os EUA, não haveria na terra nem ditaduras, nem guerras, nem, a acreditar no falecido Hugo Chávez, terramotos.

Mas da última vez que o mundo viveu sem a América, nos anos 30, não foi assim. Foi o tempo em que Estaline atacou a Finlândia, em que o Japão invadiu a China, e em que Hitler desfez a Checoslováquia – um mundo de anexações e correcções de fronteiras. Vão dizer-me que agora temos a ONU? Não mo digam mim, digam-no à população cercada em Aleppo. Nos anos 30, também havia a Sociedade das Nações. Só a força dos EUA permitiu que fingíssemos que havia uma lei e uma comunidade internacional. Os EUA também cometeram erros e crimes? Sem dúvida, mas esses erros e crimes foram denunciados nos EUA, discutidos nos EUA, julgados nos EUA. O mundo teve a sorte de a sua maior potência, desde há quase um século, ser um Estado de direito democrático e pluralista.

O desprendimento dos EUA não resultará apenas num mundo onde a razão e o direito não têm força. Resultará num mundo que, talvez por isso, nos começa a deixar indiferentes. Ontem, o New York Times veio muito espantado por os rostos e as vozes de Aleppo parecerem comover tão pouca gente. Mas sem os EUA, isto é, sem o sentimento de responsabilidade pelos outros sugerido pelo poder americano, o resto do mundo ameaça perder sentido para os públicos europeus e norte-americanos. Os EUA não estão em Aleppo? Não queremos saber de Aleppo: são todos maus, é tudo muito complicado. Começámos assim a ver em Aleppo o que será o mundo sem os EUA: um mundo sem lógica e sem interesse.

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