Não sou historiador, nem economista, nem nunca tirei curso algum sobre a chamada “construção europeia”. O que, em princípio, me aconselha alguma prudência em matéria de opiniões próprias sobre a evolução da União Europeia. E tento ter a tal prudência. Para mais, embirro com argumentos dialécticos, no sentido particular de argumentos suportando visões muito gerais (“fim da história”, etc.) que não são verdadeiramente susceptíveis de análise. Mas confesso que, quando leio ou ouço propósitos sobre a necessidade do “aprofundamento” (horrível expressão) da construção europeia, o que sinto é medo, medo das consequências péssimas que daí podem advir. Porque me parece que esses propósitos, belos e puros que sejam, ignoram o grosso dos ensinamentos empíricos dos últimos anos.
Tome-se, por exemplo, a carta aberta aos presidentes da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, do Conselho Europeu, do Banco Central Europeu e do Eurogrupo, subscrita por Vítor Bento e vária outra gente. Nela se defende, entre outras coisas, “a criação de uniões bancária, orçamental, económica e política”, e se pede “uma visão clara e ambiciosa para o futuro da Europa”. Não se seguir esse caminho conduziria, quase fatalmente, ao declínio europeu e ao aumento do populismo, do nacionalismo e da xenofobia. Estes propósitos, é claro, são tudo menos originais. De facto, são mesmo uma espécie de ortodoxia no contexto das discussões sobre a União Europeia. Para utilizar a metáfora de Delors, a bicicleta deve andar cada vez mais depressa.
Porque é que isto me parece arriscadíssimo e contrário à boa política? Porque a ideia de uma cada vez maior unidade e de uma quase fusão dos povos europeus por ela implicada é algo ao qual a realidade resiste com todas as suas forças. E, entre vários outros pontos que conviria desenvolver, o populismo, o nacionalismo e a xenofobia são em grande medida, no presente contexto, o resultado de uma já excessiva unidade e não o produto de um seu insuficiente “aprofundamento”. Mais “aprofundamento” traria consigo, quase de certeza, mais nacionalismo, populismo, etc. Alguém ouviu falar do Podemos e do Syriza? Uma grande fuga para a frente faria com que o Podemos e o Syriza parecessem brincadeiras de meninos de coro.
O que é que leva os adeptos do “aprofundamento” a suporem que, como resultado do dito, os nacionalismos e outros pecados afins tenderiam a desaparecer? Não se vislumbra – eu, pelo menos, não vislumbro – nenhum argumento substantivo. Tal suposição parece resultar mais de um acto de fé do que de outra coisa. O mais que se consegue ver é uma convicção, profunda na fé e superficial na substância, segundo a qual o que é perfeito – como uma União Europeia devidamente “aprofundada” inevitavelmente seria – por si mesmo resolveria todos os problemas e não deixaria margem para o erro, o desvario e as manifestações sortidas do mal em geral.
Mas é muito mais lícito e sensato julgar que os nacionalismos reaparecentes são em grande medida o produto da percepção que os povos têm da falta de soberania dos seus Estados. A inimizade política e a atribuição de “caracteres” aos povos (os gregos são isto, os finlandeses aquilo, os alemães aqueloutro), algo que se tornou o pão nosso de cada dia nas actuais discussões europeias, são bem o resultado desse movimento geral para a integração que tende a anular a possibilidade de deliberações substantivas nos vários Estados europeus. E a situação de fragilidade interna de muitos governos europeus é também ela consequência dessa perda de soberania. Convém sempre lembrar a lição básica dos grandes teóricos da soberania, como, por exemplo, Hobbes. A perda, tendencial ou efectiva, da soberania externa dos Estados repercute-se numa perda da sua soberania interna, que se manifesta, entre outras coisas, numa crise da representação.
Claro que os adeptos do “aprofundamento” são cegos a este facto tão palpável. E em primeiro lugar pelo utopismo que subjaz à sua posição. O utopismo funda-se na ideia de uma perfeição que, pelos seus tão evidentes méritos, conteria em si mesma o princípio da sua necessária passagem à existência. E a sua passagem à existência conduziria, sem falhas, a uma definitiva resolução das várias agruras e atribulações do nosso rugoso mundo real. A energia de crença necessária para que tal convicção exista é enorme, mas ela encontra-se sempre disponível na cabeça das pessoas. E os adeptos do “aprofundamento” estão longe, nesta matéria, de qualquer excepcionalidade. O problema é que as utopias – a quase única excepção é a utopia do trabalho científico cooperativo, formulada por Francis Bacon no início do século XVII – tendem declaradamente a acabar mal. Algumas, muitas, muito mal.
A historiadora americana Barbara W. Tuchman publicou, em 1984, um livro admirável, cujo título roubei para este artigo, The March of Folly. Nele analisa vários modos como os Estados prosseguem políticas contrárias ao seu interesse próprio. O arquétipo dessas políticas é o dos troianos, que conduzem o cavalo de madeira dos gregos para o interior das suas muralhas. No que me toca, sou tudo menos anti-europeísta e estou até longe de acreditar que o euro, com todas as suas deficiências, seja algo a forçosamente abandonar. Mas o movimento utópico daqueles para quem a bicicleta de Delors deve acelerar a sua marcha a velocidades loucas faz medo, por mais simpáticas e sapientes que sejam as pessoas que pensam que assim deve ser.
A cura para as presentes maleitas não pode estar aí. Porque os efeitos secundários que produz – inimizades e nacionalismos – arriscam-se a ser fatais. Mas se calhar é por aí mesmo que, para nosso mal, vamos. Barbara Tuchman explica porquê: “Aprender com a experiência é uma faculdade quase nunca praticada”. E: “Uma política fundada sobre o erro multiplica-se, nunca volta atrás. Quanto maior é o investimento e quanto mais envolvido nele se encontra o ego do seu promotor, mais inaceitável é a desistência”. Ora, o investimento é sem dúvida grande e para muita gente a coisa tornou-se quase uma razão para a vida. Vamos precisar de ter sorte.