Miguel Torga, no seu conto “O Alma Grande”, descrevia que o “abafador”, nas aldeias, era chamado para sufocar os moribundos em agonia quando já não havia nada a fazer. Esta sinistra figura, naquela história, acabou por morrer às mãos de um dos moribundos que acordou do seu derradeiro sono e se virou contra o seu executor. É uma história de que me lembro sempre a propósito da eutanásia.

Em pleno estado de emergência, com um número diário de mortes nunca antes registado, milhares de infectados, hospitais à beira do colapso e uma economia arruinada persistiu-se na ideia de discutir e votar na especialidade do diploma da eutanásia. O CDS ainda conseguiu o adiamento, mas a votação ficou suspensa apenas por alguns dias. E o diploma acabou, despudoradamente, por ser aprovado, quando o país se debatia então com a pior semana de sempre da pandemia, quer em número de mortos, quer em número de infecções.

Tenho participado, nos últimos tempos, em debates sobre o tema e, na sequência disso, alinhei alguns argumentos.

Este não é um debate confessional e muito menos um debate esquerda-direita, havendo, de resto, posições opostas dentro dos diversos quadrantes políticos. Há também muita desinformação. O que está em causa neste diploma não é a eutanásia passiva (suspender os tratamentos ou “desligar a máquina”) perante doença irreversível ou terminal, levada a cabo pelo médico num acto de compreensível compaixão pelo seu doente. Do que se trata não é apenas despenalizar a eutanásia (o diploma foi designado hipocritamente por “despenalização da morte medicamente assistida”), mas regular o modo de o Estado disponibilizar meios para matar a pedido.

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A defesa da eutanásia nada tem de progresso civilizacional: é, aparentemente, mais simples, mais rápido e mais barato legalizar a eutanásia do que adoptar medidas que possibilitem adequados cuidados de saúde aos mais vulneráveis para que possam ter um fim de vida com dignidade. Ou seja, é o reconhecimento do nosso fracasso como sociedade, criando-se uma cultura de normalização da morte a pedido, que pressionará decerto aqueles que têm menos recursos económicos, os deficientes ou os velhos a pedir a eutanásia, com a consequente disrupção social: significa abdicarmos do princípio da inviolabilidade da vida.

Argumentam os seus defensores que se trata de uma questão de auto-determinação individual, que não existe o dever de viver e que, por outro lado, se pretende terminar com o sofrimento. Para isto, afirmam que a eutanásia será permitida apenas em casos supostamente excepcionais e com regras estritas, como doenças terminais ou incuráveis (o diploma aprovado fala em “em situação de sofrimento e com doença incurável”). Contra isto argumento com o seguinte: 1) a maior parte das situações de obstinação terapêutica são resolvidas através da legislação existente: a lei do testamento vital, a lei dos direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, a lei dos cuidados paliativos. Fora das situações estarão casos absolutamente excepcionais, pelo que estamos a legislar para o caso concreto. Além disso, essa excepcionalidade nunca existe quando a lei utiliza conceitos indeterminados, susceptíveis das mais variadas interpretações (qualquer jurista sabe o que é um conceito indeterminado). 2) com a rapidez da evolução da ciência, uma doença incurável hoje pode ser tratável ou curável amanhã (recorde-se o drama dos pais de Lorenzo, no filme Lorenzo’s Oil).

De acordo com a lei penal portuguesa actual, o acto de matar, a pedido, é crime. A vida humana é inviolável e indisponível, sendo este um princípio universal consagrado não só na nossa Constituição, mas também em convenções internacionais. Cabe ao Estado respeitar a vida das pessoas e assegurar a sua conservação. O que se perspectiva com a legalização da eutanásia é a desvalorização da dimensão ética da vida humana, permitindo-se a intervenção de um terceiro – o Estado, através dos seus agentes – com o propósito de causar a morte. A vida humana passa a ser violável, ficando aberta a porta para a consagração da pena de morte quando estejam em causa certos crimes de maior gravidade e atribui-se à esfera do Estado o poder de actuar sobre a vida dos seres humanos, tal como acontece nos estados totalitários. Ou seja, o Estado passa a ter o poder de matar. E alguém pode confiar num Estado que passa a ter o poder e o dever de matar pessoas, ainda que a pedido?

O argumento da auto-determinação individual baseia-se numa ideia de liberdade. Contra-argumento: a liberdade, numa escala de valores, está numa posição de infra-ordenação em relação à vida. Basta ver que, no nosso sistema jurídico, é possível a aplicação da pena privativa da liberdade, mas não da pena de morte, pelo que não se pode absolutizar e hipervalorizar a vontade e a liberdade individual. Esta liberdade não é absoluta: confere-se ao Estado – a uma comissão – o poder de decidir se estão preenchidos os critérios legais para o direito a morrer. Pelo que este argumento falece por si: se fosse uma questão de liberdade, deveria bastar a vontade individual e não seria necessária uma hetero-avaliação. Não se trata, pois, de dar ao cidadão o poder de decidir, mas sim de dar ao Estado o poder de determinar o que é a “boa morte”.

Surge ainda o problema de saber como é apreciada essa vontade, a declaração que contém o pedido formulado pelo doente (o diploma prevê que “o processo de morte assistida é interrompido se o doente ficar inconsciente, só sendo retomado se ficar de novo consciente e mantiver a decisão”). Todavia, alguém que declara que quer morrer é verdadeiramente livre? Atendendo ao desespero insuportável que o doente experimenta, podemos afirmar que ele está em condições de formar uma vontade livre, esclarecida e sem vícios? Geralmente, o doente não está em condições de decidir em liberdade, perante uma doença terrível, em sofrimento, perante dificuldades financeiras para suportar tratamentos ou em agonia psicológica. As dores, a depressão, a emoção violenta e o desespero sofridos pelo doente comprometem a formação perfeita da vontade que, de resto, é mutável. Juridicamente, se o declarante sofre alguma condicionante essencial na formação da sua vontade, a declaração está viciada e, portanto, enferma de invalidade.

Ninguém que esteja no pleno uso das suas capacidades quer morrer. Faz parte da nossa natureza querer viver. Os defensores da eutanásia dizem que esta é uma afirmação paternalista e que as pessoas é que devem tomar a decisão se querem viver ou não. Todavia, quando lemos os relatos de casos de pessoas que pediram a eutanásia, verificamos que todas elas estavam em profundo sofrimento interior e que, se pudessem decidir sem condicionantes, preferiam cá ficar. Lembro aquela arrepiante cena final do filme Million Dollar Baby em que a rapariga, quando leva a injecção letal do treinador, verte uma lágrima.

Acresce ainda o argumento da inversão de prioridades. Vamos assegurar o direito a morrer sem que previamente estejam assegurados os cuidados paliativos para os nossos velhos e doentes? Antes de discutir esta opção “progressista”, é indispensável que se crie uma rede de cuidados paliativos abrangente, o que não está hoje assegurado. A admissibilidade da eutanásia é susceptível de gerar uma conspecção utilitarista ante situações de onerosidade terapêutica: poupa-se nas despesas do SNS e alivia-se o orçamento da segurança social. Portanto, apesar de o argumento ser ad terrorem, a funesta verdade é que a eutanásia não resolve o problema do sofrimento, mas resolve o problema das contas e dos recursos materiais que são escassos.

Por fim, a eutanásia não se reconduz a um mero problema jurídico ou axiológico-normativo. Coloca-se também no plano ético e deontológico dos profissionais de saúde, que se vincularam pelo Juramento de Hipócrates. As normas deontológicas têm, de resto, natureza transnacional. O propósito de o Estado, por via legislativa, procurar reconfigurar essas pautas reguladores de actos de uma determinada profissão, menoriza os profissionais (ainda que o diploma preveja a objecção de consciência) e transforma-os em meros instrumentos ao serviço do poder político, o que se assemelha em muito ao que sucede e sucedeu nos regimes totalitários.

Termino com algumas considerações finais.

No essencial, as entidades consultadas emitiram parecer desfavorável ou com reservas aos projectos da eutanásia: as Ordens – Advogados, Psicólogos, Enfermeiros, Médicos – a Comissão de Saúde, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, o Conselho Superior da Magistratura. Não se atendeu a estes pareceres.

Fala-se em rampa deslizante. Basta ver que na Holanda e na Bélgica são inúmeros os casos em que se pratica a eutanásia sem consentimento expresso do doente, a menores, a pessoas saudáveis simplesmente cansadas de viver ou desiludidas com a vida. Na Suiça, há clínicas privadas onde se pratica o suicídio assistido a pessoas que não sofrem de nenhuma patologia em especial: simplesmente, querem ir embora e isso basta.

Não se mediu o sofrimento dos que cá ficam: os filhos, os netos, os familiares e os amigos.

Há que admitir a hipótese do erro de diagnóstico, o que é gravíssimo, porque uma decisão a este respeito é irreversível.

Não sejamos indulgentes com esta pressa dos defensores da eutanásia ou com os que se demitiram desta discussão, numa altura em que se assiste à sobrecarga dos hospitais, ao adiamento de cirurgias, atrasos de que, tão cedo, não iremos recuperar. É simplesmente desumano! Se esta triste lei entrar em vigor, não há, neste momento nem nos tempos mais próximos, médicos para a porem em prática. Ou os requerentes da eutanásia vão passar à frente dos doentes COVID, dos doentes com cancro ou dos outros doentes graves? Espero, sinceramente, que nenhum doente tratável seja preterido em nome da alocação de recursos para a eutanásia, sendo certo que é muito mais fácil e expedito administrar uma injecção letal e despachar o assunto do que fazer uma cirurgia complexa e morosa, com a “vantagem” de se libertar a cama do “eutanasiado” para possibilitar que venha outro.

Devemos ter muito cuidado com estas complacências a ideias supostamente “civilizadas” e atentar aos efeitos perniciosos de ordem social e cultural que podem daí advir, entre as quais o caminho para a prepotência e a arbitrariedade.

Escreve segundo a ortografia antiga.