No primeiro dia na nova Legislatura (a XV), e à semelhança do que fizera na anterior, o Bloco de Esquerda (BE) voltou a apresentar um projecto de lei que “regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal” (Projeto de Lei 5/XV/1).

É, para mim, incompreensível esta obsessão do BE com a despenalização e legalização da morte a pedido. O que verdadeiramente motivará os deputados do BE nesta sua incessante e compulsiva defesa da morte de vítimas inocentes?

Não deveríamos estar todos, nos tempos que correm, angustiados, chocados e revoltados com a morte de tantas vítimas inocentes, seja por doença, seja por falta de assistência médica, seja por abandono, seja pela guerra? Pelos vistos, os deputados do BE não estão, querem mais.

Em vez de se preocuparem em garantir que todas as vidas, em particular aquelas que mais precisarem, são medicamente assistidas, estão obcecados (não tenho outra palavra mais apropriada) com a promoção e institucionalização da morte medicamente provocada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sim, porque é isso que aqui está em causa: essas mortes não serão medicamente assistidas, mas sim medicamente provocadas, ponto final. Executadas as mortes, seja pela via do homicídio a pedido da vítima (vulgo «eutanásia»), seja pela ajuda ao suicídio, essas condutas continuarão a ser criminosas apesar de não serem puníveis se realizadas no cumprimento das condições estabelecidas na lei que o BE quer ver aprovada.

Importa, por isso, atentar nos motivos expostos pelo BE no projecto de lei agora apresentado, a fim de se tentar perceber o que subjaz a esta sua iniciativa legislativa.

Começa o BE por alegar que o processo legislativo da morte a pedido “já é longo, iniciado por um grande debate público (que teve vários aprofundamentos ao longo do tempo, no parlamento e na sociedade portuguesa)”, e que “é um processo rico  e tornou claro que não é aceitável, à luz de um princípio geral de tolerância e da articulação constitucional entre direito à vida, direito à autodeterminação pessoal e direito ao livre desenvolvimento da personalidade, negar o direito de, dentro de um quadro legal rigorosamente delimitado, se ver atendido o pedido para antecipação da morte sem que tal gere a penalização dos profissionais de saúde que, fieis ao comando de acompanhar os seus pacientes até ao fim, ajudem à satisfação de um tal pedido”.

A narrativa motivadora do BE impressiona. Como é que se pode afirmar que este processo legislativo é um processo rico? Onde está a riqueza em legislar sobre a antecipação e provocação da morte de seres humanos?  Que tolerância poderá existir no acto de matar ou provocar a morte de uma pessoa?

E onde está o rigor de um procedimento administrativo (e não clínico) onde, para ser dada execução à morte pedida, bastará o parecer favorável de (quaisquer) dois médicos e de uma comissão administrativa (com apenas um médico entre os seus membros e que terá só cinco dias úteis para se pronunciar), sem qualquer efectiva fiscalização a priori, i.e, antes da morte ser executada, e cuja avaliação da aplicação da lei será feita somente a posteriori pela mesma comissão que a autorizou?

Se alguma coisa mostrou este processo legislativo e o, ainda manifestamente insuficiente, debate público ocorrido é que a maioria da sociedade portuguesa (e das entidades institucionais que se pronunciaram) é contra a despenalização e legalização da morte a pedido.

Como demonstrou igualmente que do direito à vida, pressuposto essencial e condição sine qua non de todos os demais direitos, decorre quer a obrigação (negativa) do Estado não provocar intencionalmente a morte de ninguém, nem permitir que terceiros o façam, quer a obrigação (positiva) de adoptar as medidas necessárias à protecção da vida das pessoas, em especial, as mais vulneráveis.

Não existe autodeterminação pessoal e livre desenvolvimento da personalidade sem vida, nem existe um direito a morrer.

E os profissionais de saúde que forem realmente fiéis ao comando de acompanhar os seus pacientes até ao fim nunca ajudarão à satisfação de um pedido de antecipação da morte, pois o quadro legal, ético e deontológico a que estão submetidos e obrigados a isso os impede. Matar uma pessoa ou ajudá-la a suicidar-se não é, nem nunca será, um acto médico por contrariar o fim da própria medicina.

Mas, da exposição de motivos deste projecto de lei, aquilo que importa chamar a atenção é a tentativa do BE em convencer, ou em convencer-se, que esta iniciativa legislativa em bom rigor não dá origem ao início de um novo processo legislativo, antes se traduzindo num mero acto de conclusão do processo legislativo anterior, interrompido pela dissolução da Assembleia da República (AR), e cuja conclusão foi impedida pelo veto político do Presidente da República.

Segundo é alegado pelo BE, “o Decreto da Assembleia da República 199/XIV é, pois, a base substancial da presente iniciativa. As pequeníssimas alterações que a esse texto são feitas decorrem da superação das objeções colocadas no veto presidencial de 29 de novembro de 2021. Na verdade, só formalmente se inicia um processo legislativo com esta iniciativa pois a sua substância advém totalmente do percurso, debate e diálogo realizado na XIV Legislatura. Contudo, para eliminar qualquer indeterminação jurídica que poderia advir de, numa nova legislatura, se proceder à superação de um veto presidencial que transita de uma legislatura anterior, é apresentada esta iniciativa legislativa”.

A intenção do BE é clara: tentar que este diploma venha a ser discutido e aprovado com toda a celeridade, sem que previamente sejam seguidos os passos normais dos processos legislativos, muito em particular a solicitação de pareceres às entidades institucionais que sobre o mesmo devam pronunciar-se e, bem assim, a audição das entidades da sociedade civil que se queiram pronunciar.

Sucede, porém, que, ao contrário do que errónea mas por certo propositadamente defende o BE, o projecto de lei 5/XV/1 por si apresentado dá início, formal e substancialmente, a um novo processo legislativo, com tudo o que isso significa e acarreta nos termos constitucionais e regimentais. Esta nova iniciativa legislativa não é, assim, apresentada para eliminar qualquer indeterminação jurídica, mas sim por imposição jurídica.

Com efeito, é preciso ter presente, desde logo, que as iniciativas legislativas que estiveram na origem do anterior processo legislativo ocorrido na XIV Legislatura, que culminou no Decreto da Assembleia da República 199/XI, caducaram no passado dia 28.03.2022 com o termo da anterior Legislatura. Essa caducidade sempre aconteceu no passado, quer no termo das legislaturas normais, quer inclusive no caso do termo das legislaturas decorrente da dissolução da AR  (recorde-se, por exemplo, o precedente dos vetos do Presidente da República Jorge Sampaio exercidos em 31.01.2002).

Caducando as respectivas iniciativas legislativas, caducou igualmente o referido Decreto da AR e todo o processo legislativo, nada transitando para a nova Legislatura, nem o percurso, nem o debate, nem o diálogo, nem os vetos presidenciais (quer o veto por inconstitucionalidade, quer o veto político).

Não deixa, aliás, de ser surpreendente que o BE venha agora (erradamente) defender que só formalmente se inicia um novo processo legislativo, pretendendo que “tudo” quanto foi feito no anterior processo transite para o actual, quando nada disso aconteceu (nem o BE o defendeu) no processo legislativo iniciado em 2019, na sequência de o BE ter apresentado no 1º dia da XIV Legislatura um projecto de lei com idêntico objecto ao do que havia apresentado em 2018  (chumbado, como se sabe, conjuntamente com outros, no dia 29.05.2018). Refira-se que, no programa eleitoral do BE às eleições legislativas de 2019, o Bloco havia assumido “o compromisso de apresentar na próxima legislatura uma proposta de despenalização da morte assistida nos mesmos termos do que apresentou em 2018”, o que fez efectivamente, com pouquíssimas alterações relativamente ao texto de 2018.

Deste modo, independentemente de onde advém a substância da iniciativa legislativa agora apresentada pelo BE, a mesma corresponde a uma nova iniciativa legislativa e como tal deverá ser tratada pelos deputados e pelo parlamento, dando origem a um novo processo legislativo, com tudo o que isso implica, nomeadamente em termos da necessária auscultação e audição das entidades institucionais e da sociedade civil que devam e/ou queiram pronunciar-se.

Os deputados da nova e reconfigurada Assembleia da República, com mais de um terço de novos deputados relativamente à anterior legislatura, têm tanto direito, como os anteriores deputados, a analisar esta nova iniciativa legislativa na posse de todos os elementos e informações relevantes a produzir no âmbito do processo legislativo por si iniciado, pois só assim estarão em condições de discutir e votar a mesma, quer na generalidade, quer na especialidade, de acordo com uma vontade que seja actual, séria, livre, informada e esclarecida.

Mas, se necessário fosse, que não é, existem ainda outras razões ponderosas para tratar este processo legislativo como aquilo que ele é – um novo processo legislativo, iniciado numa nova Legislatura -, uma vez que, ao contrário do que (erradamente) alega o BE, não só o projecto de lei 5/XV/1 contém uma alteração revelantíssima relativamente ao texto do Decreto da AR 199/XIV, como essa alteração, além do mais, nem sequer acarreta a superação de todas as objecções colocadas no veto presidencial de 29.11.2021 (sobre este veto político vide o meu anterior artigo “A morte da Lei da Eutanásia”).

E essa alteração absolutamente determinante de todo o regime legal em causa é a seguinte: o BE abandonou, como requisito do pedido de “antecipação” da morte, a existência de uma “doença incurável e fatal”, para passar a exigir apenas a existência de uma ”doença grave e incurável”. O BE deixa cair a exigência de um diagnóstico e um prognóstico de uma doença que, sendo incurável, tinha de ser fatal – i.e, uma doença que irá causar necessariamente a morte de uma pessoa, embora, ao contrário das doenças terminais, a fatalidade pode vir a ocorrer em momento incerto ao fim de muitos anos -, bastando-se com um diagnóstico e um prognóstico de uma doença grave e incurável. O BE substituiu, assim, a doença fatal por doença grave. Como se sabe, a lista de doenças graves e incuráveis é interminável …!

Deste modo, pretende agora o BE que a morte medicamente “assistida” possa ser pedida por quem, dotado de uma vontade actual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, se encontre numa das seguintes situações: ter uma “lesão definitiva de gravidade extrema” ou padecer de “doença grave e incurável”.

Ora, se com esta alteração o BE respondeu efectivamente a uma das solicitações feitas no referido veto presidencial, clarificando quais são as causas do recurso à “morte medicamente assistida”, no entanto, não respondeu às outras duas importantes solicitações feitas pelo Presidente da República: a de ser justificado o abandono da exigência de “doença fatal” e a reponderação dessa alteração.

Mas, apesar de o não o ter feito, o propósito do BE com esta alteração é, para mim, totalmente evidente: tentar desligar ou, pelo menos, afastar, tanto quanto for possível (como já o fez, aliás, em relação ao requisito da “lesão definitiva de gravidade extrema”), o regime da “morte medicamente assistida” do facto que supostamente o caracterizaria e justificaria – o de que a morte em causa, por ser certa, “apenas” seria antecipada -.

No fundo, aquilo que o BE verdadeiramente pretende é que seja suficiente ou bastante, para que a morte de uma pessoa seja “antecipada”, a formulação de um pedido nesse sentido por quem se encontre numa situação de sofrimento por si considerado de intolerável, sem que a causa física do mesmo (doença ou lesão) tenha natureza fatal (e muito menos terminal). A inconstitucionalidade deste propósito é por demais ostensiva, manifesta e inaceitável.

Seja como for, quer a alteração agora introduzida, quer a existência de um artigo com definições, impõem que entidades como, por exemplo, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Psicólogos Portugueses, a Ordem dos Advogados, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, o Conselho Superior do Ministério Público, o Conselho Superior da Magistratura, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e a Associação Nacional dos Cuidados Continuados, entre tantas outras entidades da sociedade civil, sejam chamadas a pronunciar-se sobre o projecto de lei 5/XV/1.

Em suma, quer por razões formais, quer por razões substanciais, estamos perante uma nova iniciativa legislativa, que deu início a um novo processo legislativo, processo esse que deverá seguir todos os seus passos normais, nos termos constitucionais e regimentais, sob pena de se ter de acrescentar às múltiplas inconstitucionalidades que este diploma já possui outras inconstitucionalidades e ilegalidades.