É possível que hoje um voto parlamentar à pressa, com um debate público só generalizado na véspera, autorize os médicos a provocar a morte de pacientes nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Como se chegou aqui?

A eutanásia faz parte do pacote de “causas fracturantes” com que as extrema-esquerdas americana e europeia substituiu o socialismo como arma de ataque contra a “sociedade burguesa”. O esforço é agora usar o Estado, não para nacionalizar as fábricas, mas para reconstruir a moral, erradicando a tradição judaico-cristã, especialmente no que tem a ver com a santidade da vida, a favor de uma ética secular e científica, sem mistério nem transcendência. É claro que os proponentes desta biopolítica não admitem as suas origens ideológicas, preferindo citar, como razão, o exemplo de doentes terminais supostamente mantidos em sofrimento pela medicina. Nada disso faz sentido, quando há cuidados paliativos e a possibilidade de interromper tratamentos. Não é a mesma coisa? Pois não, mas então não falem dos doentes terminais, e falem antes da ideologia da “morte racional”, da tese de que a morte deve ser decidida, e não natural, como um último acto de soberania do indivíduo puramente racional.

Acontece que este individualismo é duvidoso, porque a eutanásia  não é uma decisão individual, mas uma decisão partilhada, uma opção em que o paciente toma parte, tal como os seus familiares e sobretudo os médicos. De facto, a eutanásia assenta na presunção de que a ciência médica pode determinar sempre, sem erros, quem está condenado e quem vai sobreviver. É verdade: a morte será apenas uma opção no menu hospitalar. Mas ninguém sabe como essa opção pode transformar o menu, sobretudo se a “dignidade” começar a ser concebida como o contrário de qualquer debilidade ou sofrimento. De facto, a ideia da “morte com dignidade” serve apenas para cobrir a ideia da “vida com dignidade” – a ideia de que a vida só vale a pena ser vivida enquanto o indivíduo é jovem, saudável, e bem sucedido. A “eugenia”, que já fez parte dos programas da esquerda progressista inspirados pelo cientismo do século XIX, especialmente pelo chamado “darwinismo social”, como foi o caso da social democracia na Suécia, é o outro lado da eutanásia: para “morrer bem”, convém em primeiro lugar “nascer bem” (ver o ensaio de Richard Weickart em The Human Life Review). Os defensores mais coerentes da eutanásia foram sempre adeptos da selecção de quem nasce, de modo a eliminar os menos aptos. É o caso de Richard Dawkins.

As dificuldades da eutanásia são suficientemente óbvias para que só dois partidos definissem uma orientação de voto clara: o BE a favor e o CDS contra. Os outros, dividiram-se com mais ou menos habilidade. Prevendo talvez a apreensão suscitada pela “morte racional” num eleitorado idoso, o PCP decidiu votar contra mas, para manter um pé nas “causas fracturantes”, mandou os Verdes votarem a favor. PS e  PSD esconderam-se na “liberdade de voto”. Quem fez as contas, diz que a legislação, a passar, passará à tangente. Seja ou não assim, não seria mais decente, num assunto destes, tentar-se um acordo alargado, em vez da lotaria de uma votação apertada? A constituição impõe maiorias de dois terços para aprovar legislação em matérias fundamentais. António Costa já disse que gostaria de submeter os  grandes projectos de obras públicas a esse tipo de maiorias. Ora, não é a legalização da eutanásia um assunto mais grave do que um aeroporto? Não deveriam leis que têm a ver com a vida tão radicalmente ser tratadas, por acordo dos grupos parlamentares, como o equivalente de leis fundamentais, de modo a assegurar que correspondem a um consenso social? Mas isso, claro, é precisamente o que o Bloco de Esquerda e os seus satélites no PS não querem, porque tiraria à eutanásia todo o seu interesse político como “causa fracturante”.

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