O primeiro centro de sondagens da União Soviética foi criado 1987 a mando do Mikhail Gorbachov. O reformador comunista estava ciente de que os dirigentes soviéticos não percebiam “as massas” e a sociologia, que tinha sido desprezada até aí como uma “pseudociência burguesa”, foi resgatada para procurar respostas.

Para dirigir o Centro de Toda a União para a Investigação da Opinião Pública foi escolhido Yuri Levada, um sociólogo que o próprio regime obscurecera depois de este ter dado um conjunto de lições em Moscovo, em 1966, que se tornaram um enorme sucesso. Diz-nos Joshua Yaffa, correspondente da New Yorker em Moscovo, que o seu conteúdo não era subversivo – apenas teórico e inócuo – mas as lições eram tão populares que cedo começaram a incomodar o regime. Depois da Primavera de Praga, Levada foi obrigado a retirar-se da academia e a continuar os seus estudos em silêncio.

Essa experiência dos anos 1960 levou Levada a formular uma tese que, depois da queda do Império Soviético, se veio a confirmar através dos inquéritos de opinião que foi autorizado a fazer: os dois traços mais distintivos dos russos eram “a timidez do indivíduo soviético e a sua servidão perante o estado”. Ambos eram “produto quer do medo da repressão quer da incapacidade de cada um se imaginar sem a presença do estado nas suas vidas”. Em suma, aquilo a que Levada chamou “a simbiose paternalista”. Houve uma esperança momentânea de que os russos tomassem o destino nas suas próprias mãos, mas o que sobrou do Homem Soviético foi o Homem Astuto, “um tipo de indivíduo com inclinação para se adaptar aos requisitos que lhe fossem impostos”. Independentemente do regime, seguiam a intuição do espírito de “sobrevivência”. Estava estabelecida uma relação de séculos e séculos entre o Império Russo/a União Soviética/a Rússia e o indivíduo, que seria muito difícil de quebrar.

Foi assim que Vladimir Putin se encontrou com a Federação Russa em 2000. Prometeu estabilidade e poder de compra a um povo que perdeu quase tudo para os oligarcas na década de 1990 e conseguiu, em poucos anos, equilibrar as finanças com ajuda dos petrodólares. A população percebeu que, de todos os líderes que tinha tido, nenhum lhe trazia uma vida tão tranquila e confortável como este.

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A partir desse momento juntaram-se duas tendências: a identificada por Yuri Levada e reforçada por Alexander Dugin, um dos mais proeminentes (e o mais assustador) ideólogos do regime de Vladimir Putin. Em 2013, no Financial Times, num artigo intitulado O mundo precisa de perceber Putin, Dugin escreveu que o líder russo – reeleito presidente pela terceira vez, depois de um mandato como primeiro-ministro –reconvertera a política interna num nacionalismo conservador largamente apoiado pela opinião pública, “em grande parte pela popularidade doméstica inerente [de Putin] e a relação única da massas russas com os seus líderes”.

A segunda tendência é esta, indicada pelo próprio Dugin: o nascimento e desenvolvimento de um nacionalismo ressentido que impregnou a população russa, através de propaganda continuada, muito anterior à invasão da Ucrânia. A narrativa do Kremlin é a seguinte: há mais de 30 anos, a Rússia é vítima do Ocidente que, apesar de ser uma civilização decadente, devido ao liberalismo e à democracia que deram origem à degeneração social e a uma política externa errónea, despreza e humilha permanentemente a Federação Russa e o seu povo. Não só o desfecho da Guerra Fria foi a maior catástrofe do século XX, como desde então os Estados Unidos tudo têm feito para impedir o regresso da Rússia à sua condição natural, a de Grandeza.

A forma de combater esta humilhação permanente tem duas vias: por um lado, robustecer a nação por dentro, através das virtudes russas – o conservadorismo, a crença no divino (especialmente no que respeita à Igreja Ortodoxa), o enaltecimento da família tradicional, e a união dos russos à volta do seu líder, o único capaz de devolver ao povo a dignidade interna e externa que merece.

Por outro, é preciso uma ação externa assertiva. Não só a Rússia tem de reestabelecer os seus domínios, mesmo que seja apenas sob a forma de esferas de influência, como tem de voltar a ganhar um papel de relevo na política internacional. As duas questões estão, aliás, ligadas. “Recuperando” a Ucrânia (e antes a Crimeia, e antes a Ossétia do Sul e a Abcásia) e estendendo a sua influência ao Médio Oriente, a Rússia ganha território, poder, e prestígio (uma ambição pessoal de Putin), e amputa os Estados Unidos e os seus aliados do mesmo que ganhou. É um jogo de soma-nula, que os russos acreditam que ainda estão a ganhar – e talvez estejam.

Daí que não seja uma surpresa que os níveis de popularidade do presidente Putin tenham atingido os 83 por cento esta semana. E que a maioria dos russos apoiem a Guerra da Ucrânia, pelo menos na versão oficial, altamente distorcida. Putin está a cumprir uma promessa ou, como diriam os mais fervorosos do regime – e não são poucos –, a cumprir um desígnio nacional de grandeza que os russos, na sua generalidade, acreditam que é seu por direito.

A diferença entre o passado de Levada e o presente de Dugin é que este projeto não é unipessoal (apesar de ser altamente personalizado – daí o sentimento da maioria que Putin é insubstituível). Não é da elite do politburo. É apresentado como sendo um projeto verdadeiramente coletivo. Se os russos se acomodaram à dependência do estado, o regime de Putin aprendeu a devolver-lhes um verdadeiro sentido de pertença e a vontade de participar, estoicamente se necessário, do esforço coletivo. Em estreita e especial relação entre as massas e o seu líder, um traço estrutural na história russa, às vezes alimentado pelo medo, às vezes pela esperança no futuro, quase sempre com ressentimento. Tal como perceberam os sociólogos soviéticos já nos anos 1960.