Os acontecimentos dos últimos dias têm vindo a mostrar como o combate ao terrorismo deve ser uma prioridade máxima dos governantes e que esse combate necessita de ser feito de uma forma preventiva, proactiva, cooperante a nível internacional e dotada de meios altamente sofisticados.

No princípio de Outubro tivemos conhecimento de um acórdão do Tribunal Constitucional, ao qual foi dada pouca importância, mas que agora merece a nossa melhor atenção. Trata-se de um acórdão que julgou inconstitucional a Lei que aprovou o regime jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP).

De acordo com esta proposta de Lei, os serviços de informação promovem atividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações com o objetivo de prevenir o terrorismo, a sabotagem, a espionagem, a criminalidade altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que constituam uma ameaça ao Estado de Direito democrático. A polémica está no n.º 2 do art. 78.º que previa que, para esse efeito, os agentes dos serviços de informação podiam aceder a informação bancária, fiscal, a dados de tráfego, de localização ou comunicações.

Há duas questões que são particularmente sensíveis. A primeira diz respeito ao facto de estas competências estarem aparentemente em sobreposição com as que estão atribuídas à Polícia Judiciária, com a agravante de os serviços de informação estarem na dependência direta do governo.

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A segunda tem a ver com o facto de a intrusão na privacidade dos cidadãos ser feita fora de um processo criminal e, consequentemente, sem o controlo do um poder judicial. É certo que foi prevista uma Comissão de Controlo Prévio, composta por três juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, designados pelo Conselho Superior da Magistratura. No entanto, entendeu-se que este controlo prévio genérico não é equivalente ao controlo existente num processo criminal concreto.

De uma forma um pouco simplista podemos dizer que a Constituição prevê que um direito fundamental, como o direito à privacidade, só pode ser limitado quando tal for necessário para salvaguardar outro direito fundamental de valor equivalente. No âmbito de um processo criminal, alguns direitos fundamentais podem ser restringidos, pois a própria existência do processo pressupõe a ameaça a um outro direito fundamental, bem como a existência de um controlo judicial.

Creio que esta decisão do Tribunal Constitucional subvaloriza dois aspetos. Por um lado, a existência do SIRP tem um fundamento constitucional e visa proteger bens jurídicos com dignidade equivalentes àqueles que são protegidos pelos processos criminais. Por outro lado, a ameaça de terrorismo que hoje vivemos não se coaduna com uma atuação reativa que só é desencadeada após a existência de suspeitas concretas.

Se mantivermos este modelo tradicional, pode ser que qualquer dia se chegue à conclusão de que a investigação começou tarde de mais. Esta decisão ainda parte do pressuposto de que o combate a este tipo de criminalidade se faz a partir de suspeitas da prática de um crime concreto que levam à instauração de um processo criminal para punir os autores desse crime. Acontece que, no caso da ameaça terrorista, é função do Estado assegurar um trabalho de investigação orientado à identificação dos autores antes destes atos serem consumados.

O aumento exponencial da informação produzida diariamente por todos nós e a complexidade crescente das organizações, associados à gravidade da ameaça eminente, obrigam a uma atuação preventiva muito mais forte. Nos dias que correm é impensável uma atuação preventiva sem um sistema de informação poderoso que reconheça padrões de comportamento e que desencadeie alertas para situações suspeitas. Em face desses alertas, cabe então aos vários órgãos de investigação aprofundar as situações e, se necessário, consultar informação de natureza privada dos cidadãos, ainda que mediante supervisão do poder judicial. Não parece, por isso, fazer sentido insistir no modelo clássico do processo criminal como pressuposto para a limitação do direito à privacidade.

Apesar do exposto, é compreensível que o Tribunal Constitucional tenha entendido que se foi longe de mais. Mas o argumento deveria ter sido o de que o regime proposto era demasiado aberto, não definindo com clareza os critérios e limites impostos à SIRP. E também é preciso ter em consideração que esta atividade precisa de um controlo mais rigoroso, sobretudo se tivermos em consideração a proximidade em relação ao Governo. Esta é em traços gerais a posição de um dos juízes do tribunal constitucional que a manifestou num voto de vencido naquele acórdão.

Em face desta decisão do Tribunal Constitucional, impõe-se a preparação de nova legislação que dê meios aos serviços de informação para combater o terrorismo de forma preventiva, mas em moldes que sejam compatíveis com os princípios constitucionais. E não é necessário que surja o primeiro atentado concretizado em Portugal. Este é um tema que devia estar já na ordem do dia.

Sabemos que a forma como deve ser assegurada a luta contra o terrorismo não é minimamente consensual entre os partidos que pretendem viabilizar uma alternativa de governo. Talvez por isso este tema não seja abordado nos documentos assinados entre aqueles partidos. Além disso, no documento aprovado pela Comissão Política do PS como “proposta de programa de governo” (apesar de ainda não haver governo do PS) pouco se adianta nesta matéria além de generalidades. Será por não estar nas suas prioridades ou por serem incompatíveis as posições dos três partidos? O desafio é conseguir implementar uma estrutura eficaz de prevenção do terrorismo que não seja inconstitucional e uma política de segurança menos austera. Será que aqueles partidos estão à altura deste desafio?